quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

A Mula



Eastwood demonstra sua maturidade como mestre

Aos 88 anos, veterano cineasta traz vigor para A Mula,
no qual atua e dirige

Por João Paulo Barreto

O estilo de direção que Clint Eastwood traz para seus filmes é notório. Mesmo, claro, tendo conseguido alcançar marcos dramáticos como em Menina de Ouro, de romantismo com As Pontes de Madison e de delicadeza tenra com Um Mundo Perfeito, sua trajetória como cineasta é refletida por muito do que vemos de áspero nas histórias que ele dirige. Neste modo de fazer cinema, famoso por trazer o hábito de não iniciar uma tomada com vozes altas proferindo “ação!” ou finalizá-la com “corta!” (costume que trouxe dos faroestes, quando tais gritos podiam assustar os cavalos), o veterano ator e diretor consegue construir em A Mula uma trama direta, sem floreios, e que, por isso, chama atenção pela honestidade com que o trabalho é apresentado ao espectador.

Voltando a atuar sob a própria batuta após um hiato de dez anos, Clint dá vida a Earl Stone, um bem sucedido e simpático floricultor com um carisma que mantém todos ao seu redor, mas cujas brincadeiras e sorrisos constantes escondem um pai ausente e um marido cuja negligência arruinara seu casamento. Corta para uma década depois e seus negócios com flores vêm a falir, sua filha o ignora e sua ex-mulher joga em sua cara todos os erros que ele cometeu na vida a dois. Apenas sua neta mantém-se próxima a ele. Quebrado emocional e financeiramente, acaba por aceitar a proposta de servir como transportador de drogas (a mula do título) para o cartel mexicano. A história é direta e nos coloca em um movimento fluído que remete ao mesmo modo errático com que Earl conduz aqueles últimos momentos de sua vida. E é no equilíbrio entre a aspereza citada e a delicadeza de um homem diante de um reencontro tardio com sua família que reside a beleza do longa.

Earl e seu momento de encontro com o fim da jornada

ADAPTAÇÃO E MOVIMENTO

Neste processo, o filme rege outro encontro: o da geração de Earl com os tempos atuais. E isso de modo a fazer o público refletir acerca das razões pelas quais aquele homem optou pelo o que fez. Earl passa por diversos momentos nos quais sua vida é colocada à prova no quesito experimentações. O sucesso financeiro que reflete na compra de uma caminhonete de luxo; a opção de ajudar o dono de um restaurante em decadência; o contato com garotas de programa; a possibilidade de poder ajudar a neta em seus estudos. Todos estes pontos levam o homem a perceber-se diante de uma encruzilhada, algo que o faz transformar em rotina um trabalho que seria apenas uma ocasião única, tudo por conta da percepção de que, agora, aquilo é o que o move. E nada mais apropriado do que usar como metáfora a premissa do movimento constante à frente em sua pick up recheada de drogas até o momento em que a estrada não permite mais que ele siga adiante.  

O roteiro de Sam Dolnick, inspirado em um artigo publicado no NY Times acerca de um idoso real que, aos 90 anos, se tornara uma mula do cartel mexicano, constrói de modo pertinente o choque entre os Estados Unidos da geração de Earl e os tempos atuais. Aqui, o idoso se surpreende ao ver os mais jovens sempre com os olhos voltados para telas de celular. Em outro momento, age com naturalidade e sem qualquer malicia ao tratar um casal afro-americano por um termo pejorativo, do mesmo modo que brinca com o fato de que dois mexicanos causam estranheza aos clientes caucasianos de um restaurante no Texas. Sendo Clint um notório republicano, não deixa de ser curioso observar um filme dirigido por ele desenhar um retrato tão preciso da preconceituosa América de Trump, como quando a tal cena do restaurante acontece ou quando um policial para os dois mexicanos apenas por conta da etnia dos homens.

O reencontro de Earl com seus equívocos do passado acontece justamente no momento em que ele passa a cometer o maior erro de todos. Mas, ao perceber-se em débito com sua família, negligenciada por anos a fio, Earl toma uma decisão arriscada que lhe acarretará consequências graves, mas que lhe permitirá olhar para trás sem arrependimentos. Na justificativa do homem ao explicar seus ferimentos (“Eu tive o que merecia), a precisa noção de que o fim da linha chegara lhe é apresentada. Em seu final, A Mula desenha um floricultor cuja trajetória ascende de forma surpreendentemente perigosa, mas que retorna ao seu ponto de partida original, dedicando-se àquilo no qual realmente percebe-se seguro e sereno.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 21/02/2019


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