terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Boa Noite, Mamãe

(Ich Seh Ich Seh, Áustria, 2014) Direção: Severin Fiala e Veronika Franz. Com Lukas Schwarz, Elias Schwarz. Susanne Wuest.



Por João Paulo Barreto

Boa Noite, Mamâe, longa metragem austríaco de 2014 que chega agora aos cinemas brasileiros, até consegue criar um incômodo clima de tensão na história dos gêmeos Lukas e Elias, que, após receberem a mãe em casa depois da mesma sofrer um acidente de carro que a deixou com sequelas e bandagens no rosto, passam a desconfiar se aquela é mesmo a progenitora deles.

O longa, escrito e dirigido pela dupla austríaca Severin Fiala e Veronika Franz, desenvolve de modo intenso uma atmosfera de suspense, levando o espectador para nuances entre o sobrenatural e o terror meramente psicológico. Contribui bastante o uso de um cenário extremamente hermético (no caso, a casa onde os dois garotos vivem e mãe convalesce), com tons pastel e pouco acolhedor para um lar no qual duas crianças moram. Além disso, colabora para tal desconforto sensorial inserções de passeios feitos pela suposta mãe do garoto, que entra em algo semelhante a um transe durante a caminhada.

Bandagens e ferimentos dão o tom misterioso da personagem

Tal opção no desenvolver do longa acerta pelo envolvimento desconfortável no qual o espectador se vê, uma vez que boa parte da trama é desenhada pela dúvida acerca de quem seria, realmente, a pessoa por trás daquelas bandagens a cobrir o rosto da mulher. E o filme consegue criar momentos de real pavor em torno deste tema, como quando a vemos remover parte dos curativos em frente ao espelho (momento testemunhado pelo menino Elias) ou quando suas caminhadas parecem, de fato, levar a um transe sobrenatural.

No entanto, tal expectativa se perde no momento em que a mamãe retira as bandagens e notamos um rosto sem marcas ou qualquer ferimento, o que contribui, além do comportamento agressivo da mulher, para a desconfiança das crianças sobre a real identidade da pessoa com quem eles dividem a casa.

Momento de tensão: bandagem sendo retirada e presenciada por Elias
Com ecos que remetem a Children of Corn, conto assombroso escrito por Stephen King, e levado ao cinema de forma não muito feliz, Boa Noite, Mamãe até poderia ser mais uma obra a se valer da aura misteriosa que crianças em filmes de terror parecem possuir, mas, ao descambar para um espetáculo de sadismo e tortura, o filme perde o controle de uma sutiliza que se apresentava como seu principal trunfo, caso sua história permanecesse ainda dentro daquela proposta.

Com atuações convincentes dos dois jovens atores, é uma pena que a reviravolta no roteiro já não tenha tanto impacto junto ao público. Caso não descambasse para algo cuja necessidade de chocar acaba, contraditoriamente, resvalando no trivial, poderia ser um grande thriller. Uma pena. 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O Quarto de Jack

(Room) Direção: Lenny Abrahamson. Com Brie Larson, Jacob Tremblay, Joan Allen, William H. Macy, Sean Bridges.



Por João Paulo Barreto

De dentro do quarto, o garotinho olha pela claraboia sem ter nenhuma ideia do que aquilo representa. É apenas a luz do sol a iluminar o seu mundo. Sim, todo o seu mundo representado por aquele cubículo que é tudo o que ele conhece em seus cinco anos de vida.

Analisar O Quarto de Jack como uma experiência cinematográfica a partir de suas técnicas de representação daquele ambiente, no qual a direção de arte e a montagem conseguem a proeza de transformar o minúsculo lugar em todo o universo de uma criança, é um modo pertinente de penetrar naquela história.

Mas, diferente do pequeno Jack, sua mãe, Joy, colocada ali à força e obrigada a criar aquela fantasia para o bem de seu filho, a claustrofobia é inevitável. E, paradoxalmente, o espectador consegue perceber e discernir as duas “visões de mundo” que aquele ambiente apresenta. Conseguimos nos sentir claustrofóbicos pela óptica materna e esperançosos pela infantil.

O mundo de Jack e cativeiro de Joy
No território técnico, esse é o primeiro grande acerto de Room, novo filme de Lenny Abrahamson (do enigmático Frank), algo que torna a inicial apresentação do longa menos desconfortável para o espectador que é colocado, também, dentro daquele cubículo e é levado a experimentar, mesmo que em pequena escala, a mesma sensação dos seus personagens.  

Não há muito para se conhecer naquele ambiente, de fato. No entanto, somos surpreendidos a cada nova camada que o lugar parece apresentar. Isso, claro, quando o estamos vendo a partir da experiência de Jack, que costuma dar bom dia às poucas peças de mobília como se fossem seus amigos e brinca com um cachorro que só existe em sua mente.

Com seus cabelos longos, olhos curiosos e voz sempre inquiridora, o pequenino descobre a cada dia algo novo, dentro da fantasia que sua mãe precisou criar para que a vida do garotinho não se tornasse tão insuportável quanto a sua. E descobrindo cada nuance do seu planeta, Jack (uma atuação surpreendente de Jacob Tremblay) completa cinco anos de idade achando se tratar aquela sua realidade. 

Joy tornando aquele mundo mais palatável para Jack
Ao gritar para pedir ajuda, Joy diz ao garoto estar chamando por alienígenas. Ao se referir a TV, diz se tratar de mágica, do mesmo modo a origem da comida que o seu captor costuma trazer, momentos estes em que Jack precisa ser colocado dentro do armário para não ter contato com o psicopata.

De inicio, Room trata-se justamente do modo como somos levados àquele ambiente. É somente em seu segundo ato que percebemos o quão ainda mais profundo é o roteiro de Emma Donoghue, baseado no seu próprio livro. Não é segredo que ambos conseguem escapar de seu cativeiro. Mas é no retorno ao mundo real que está a verdadeira força da obra. No quão frágil aparenta ser a criança em relação a sua mãe, mas é justamente nele que estará a readaptação à nova realidade de ambos.

Seja no reencontro familiar, com um inesperado confronto por parte do avô (William H. Macy em um papel pequeno, mas tocante) e no modo como vemos Jack entrar gradativamente em contato com todas aquelas descobertas, o segundo ato e conclusão de Room traz uma análise do fato de que sair do cubículo parece ter sido somente uma ação física por parte de Joy (Brie Larson), mas que ela ainda se vê presa àquele quarto. Como em Alice no País das Maravilhas, livro que a garota lia para seu filho, as fronteiras que ambos precisam atravessar mesclam-se bastante às da sanidade. Afinal, para estar dentro daquele mundo (o real e o do quarto) é preciso ser um pouco louco.

Rotina criada em torno de Jack
Na tentativa de Joy pela sua volta, percebemos seu esforço quase vão neste intento. Após nos habituarmos com sua aparência pálida, o choque de a vermos maquiada e em roupas elegantes na cruel entrevista concedida a um canal de TV, demonstra bem o contraste e a longa caminhada que ela terá que seguir naquele retorno. O poder para voltar estará, curiosamente, naquele que ela protegeu.

No corte das longas madeixas de Jack, algo que oportunamente Joy usava para representar a força da criança em sua imprescindível fantasia, denota-se que ela pertencia de forma integral a ele. 

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Deadpool

(EUA, 2016) Direção:Tim Miller. Com Ryan Reynolds, Morena Baccarin, T.J.Miller, Ed Skrein.


Por João Paulo Barreto

Desde seus créditos iniciais, percebe-se uma proposta diferenciada para Deadpool, adaptação dos quadrinhos do personagem mais anárquico da Marvel Comics. Ao invés dos nomes dos produtores, atores, roteiristas e diretor, uma descrição nonsense e chula de cada indivíduo é feita. “Uma garota gostosa”, “um vilão com sotaque britânico”, “roteiristas: estes, sim, os verdadeiros heróis aqui” e “um diretor que se acha”. Sim, desde o começo, sabemos que não vamos presenciar um filme comum, mas um exemplo louvável de como adaptar para o cinema toda a comédia encontrada nas páginas de seu material original.

Na história, o “fazedor de serviços sujos” Wade Wilson descobre que tem câncer terminal e recebe uma proposta de um grupo de cientistas para se submeter a um doloroso experimento que, supostamente, vai ativar a mutação em suas células. A cura virá, mas uma deformação como efeito colateral, juntamente a um fator de cura e superforça, também. Na busca pelo indivíduo que o curou, mas não sem antes de fazê-lo sofrer e lhe dar a esperança de que poderia lhe devolver sua aparência anterior, Deadpool tem a desculpa certa para destilar sua ironia e humor doentio em cada frame. E, claro, há a busca pelo salvamento da não tão ingênua mocinha.

Wade Wilson e sua desfiguração após cura 

Levando ao extremo a metalinguagem e a quebra da quarta parede, o roteiro de Paul Wernick e Rhett Reese, ambos com experiência nestes conceitos após o hilário Zumbilândia, é uma licença para que diversas piadas sejam feitas com o universo dos quadrinhos no cinema, desde citações de heróis que a produtora não tinha licença para usar (“rima com Pouverine”) a geniais perguntas do personagem principal, como quando é cogitada pelo x-man Colossus sua visita ao professor Xavier (“Stewart ou McAvoy? Essas novas linhas temporais me confundem”). É um filme cujo grande acerto é o de não se levar a sério. Mesmo que em certo momento essas piadas cansem um pouco (como quando o protagonista empurra a câmera), o resultado final da obra não chega a ser comprometido.


Cenas bem dirigidas de ação são o grande destaque do filme
Após a tentativa frustrada de inserir Deadpool, com o mesmo Ryan Reynolds que, aqui, se encaixa como uma luva à acidez do projeto, no primeiro filme solo do Wolverine (algo que nos é lembrado de forma hilária), a revitalização do personagem nessa nova franquia se apresenta como um acerto louvável. Principalmente pelas boas cenas de ação, sequências de luta e o modo como a montagem foi sagaz ao contar toda a origem do personagem em inserções pontuais durante os explosivos acontecimentos da abertura.

E se em sua cena pós créditos souberam referenciar perfeitamente um dos primeiros filmes a utilizar a quebra da quarta parede, não será nenhuma surpresa se acertarem novamente na inevitável continuação.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

O Regresso

(The Revenant, EUA, 2015) Direção: Alejandro Iñárritu. Com Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domhnall Gleeson, Will Poulter, Forrest Goodluck. 


Por João Paulo Barreto

Muito mais do que julgar a obra pelos notórios aspectos de sua criação, no qual um intenso processo de captação foi posto em prática em uma terra selvagem com temperaturas excruciantemente baixas e condições de luz quase nulas (aqui, belamente captadas pelo diretor de fotografia, Emmanuel Lubezki), O Regresso, novo trabalho de Alejandro Iñárritu, apresenta em seu resultado justamente a provação que aqueles homens tiveram que passar na construção sua fílmica. Ao final, percebe-se que, muito mais do que um esquema de publicidade na divulgação do longa, sua execução encontra todo respaldo de qualidade no resultado entregue.

Na história dos homens contratados para retirar peles de animais selvagens para confecção de casacos ao exército no norte dos Estados Unidos do começo do século XIX, encontra-se justamente um retrato não somente daquela época no que tange à exploração de terras indígenas, mas de algo cuja reparação se estende obrigatoriamente até os dias de hoje. E Iñárritu insere essa discussão em seu roteiro, escrito em parceria com Mark L. Smith e baseado em parte no livro de Michael Punke, de modo a tornar a necessidade de diálogo acerca do assunto ainda mais relevante.


Fitzgerald e Glass: antes da vingança
Hugh Glass (DiCaprio) é um dos caçadores do grupo e líder guia nas terras inóspitas onde índios selvagens fazem valer o controle do seu território matando todo e qualquer homem que não faça parte do seu grupo. Em seu histórico, Glass, que já foi casado com uma índia e com quem teve um filho que hoje o acompanha, possui problemas relacionados a preconceito e racismo sofrido por ele e por seu rebento, a quem salvou no passado ao defender sua família de um ataque militar à tribo com quem vivia. 

No seu atual grupo, John Fitzgerald (Hardy), cujo nome carrega uma ironia fina no que se refere à exploração estadunidense dos territórios indígenas, é o único a não esconder seu racismo perante o jovem filho de Glass. A relação dos dois homens é o que pautará toda a história do filme, colocando-os em extremos opostos onde a vingança norteará a trajetória de ambos. Gravemente ferido após sobreviver ao ataque de um urso, Glass é deixado sob os cuidados de seu filho e de Bridger, outro rapaz fiel ao homem, bem como de Fitzgerald, cuja vontade declarada seria terminar o sofrimento do colega desde o inicio. 

Glass e sua frágil relação pai e filho com um rebento de origem indígena 
Ao agir por conta própria e enganando o jovem Bridger no processo, Fitzgerald deixa Glass em uma cova rasa e segue seu caminho no intuito de recolher a recompensa por ter ficado como responsável pelo moribundo. Neste ponto é quando percebemos a real força motriz do filme. Claro, a vingança já havia sido descrita como sendo sua linha de narrativa desde a primeira descrição do projeto. Mas vê-la representada na força de vontade de um homem que consegue deixar a própria cova para se vingar daquele que destruiu sua família torna a experiência de O Regresso válida como meio de reflexão relacionado à resiliência do individuo.

E é justamente disso que o longa trata. Desde a sequência impressionante da luta do protagonista contra o urso (mesmo que em seu último segundo, deixe escapar seu CGI), ao momento no qual Glass precisa se aquecer utilizando do modo menos convencional encontrado: é a força de vontade regida pelo desejo de vingança que o norteia.

Em seu belo simbolismo final, no qual a fala de um personagem crucial para a sobrevivência de Glass em seu infernal retorno é proferida novamente, entendemos de quem é a vingança mais necessária e urgente no tema central de O Regresso. Mais propriamente, a qual povo ela pertence.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Brooklyn

(EUA, 2015) Direção: John Crowley. Com Saoirse Ronan, Emory Cohen, Domhnall Gleeson, Jim Broadbent.


Por João Paulo Barreto

Escrito por Nick Hornby (autor de livros como Alta Fidelidade, Um Grande Garoto e Febre de Bola) e baseado na obra de Colm Tóibin, Brooklyn apresenta uma história simples, mas que consegue construir uma relação direta com o espectador através de sua capacidade de criar situações que muitos se identificariam. Dentre elas, a saudade de casa, ou, no bom inglês, homesickness. Em determinado momento, um personagem define bem o sentimento: “Assim como qualquer doença (sickness), ela passa com o tempo”. E é disso que a obra trata. Mas, claro, nada tão simplório. O que o roteiro de Hornby aborda com maior fluidez é o processo de readaptação das pessoas perante a mudança de horizontes.

Aqui, a jovem Eilis (Ronan) deixa a Irlanda no começo dos anos 1950 para tentar a vida em Nova York, mais precisamente no popular bairro do Brooklin, onde uma grande comunidade de imigrantes, sobretudo irlandeses, vive. Deixando uma irmã e sua mãe no velho continente, ela parte em uma extenuante viagem a navio para a América, durante a qual as primeiras provações daquela mudança de ares se apresentam.

Eilis segue viagem para a América a bordo da sua primeira provação 
É uma obra estritamente feminina, que consegue abordar bem não somente as dificuldades de um imigrante em um país estrangeiro que, apesar de compartilhar a mesma língua, tem em seus hábitos e costumes toda uma diferença cultural. O roteiro de Hornby apresenta bem essas dificuldades de gênero encontradas pela personagem. Seja na adaptação a um mercado de trabalho restrito (a cena em que vemos Eilis como a única mulher em um curso para escriturários, por exemplo) ou no ambiente de sua pensão voltada para garotas, o longa se coloca de modo pertinente em tais questões, apesar de simplificar algumas das ambições das personagens secundárias ao colocá-las apenas como mulheres em busca de um marido, tornando-as, assim, bidimensionais de uma maneira gritante.

Outro ponto, inclusive, está no fato do roteiro preferir se ater a uma idealização de mundo no qual o mal parece não fazer parte. As boas intenções de todos ao redor da protagonista incomoda um pouco, diferente de Educação, filme de 2009 também escrito por Hornby e que aborda o universo feminino de modo mais realista, amargo e menos poético.

Eilis: processo de transição ao deixar o mundo que conhece em prol de uma nova vida
Mas há outros fatores que validam essa visão preferida em Brooklyn. Dentre elas, o fato de que a história se passa em uma época de grande prosperidade para os Estados Unidos. Na década em questão, após o fim da Segunda Guerra, um boom econômico e industrial se deu no país americano, tornando aquele período extremamente prolífico. Uma era de ouro, por assim dizer. Algo que é muito bem inserido através dos tons na fotografia de Yves Bélanger, que salientam a ambientação nostálgica pretendida pelo longa.

Saoirse Ronan, com seus olhos de safira, cativa o espectador com uma tristeza que gradativamente vai se transformando em segurança, mostrando justamente a premissa do filme como um conto sobre adaptação e fuga da inércia.


Tirando a ingenuidade idealizada, está tudo em seu lugar.

A Garota Dinamarquesa

(The Danish Girl, UK, EUA, 2015) Direção: Tom Hooper. Com Eddie Redmayne, Alicia Vikander, Ben Whishaw, Matthias Schoenaerts.



Por João Paulo Barreto

Há uma importância maior do que a contida na avaliação de uma obra como A Garota Dinamarquesa apenas em seu valor estético ou como forma de entretenimento cinematográfico. Em seu momento de lançamento, período no qual o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado nos Estados Unidos, um dos países mais influentes na cultura mundial, bem como a mais do que urgente permissão do uso do nome de identificação escolhida pela pessoa em provas e concursos no Brasil, um filme como do diretor Tom Hooper (Discurso do Rei e Os Miseráveis) ganha um impacto ainda maior por conta da conscientização incluída no seu tema.

Sim, nos últimos anos, diversas obras abordaram questões como homofobia e inadequação de homossexuais perante a sociedade. Filmes como Milk e Brokeback Mountain, apenas para citar dois recentes, trouxeram louváveis discussões sobre o assunto. No entanto, uma abordagem acerca dos indivíduos transgêneros focando no drama particular de suas vidas e na mudança drástica de suas identidades físicas ainda estava a ser apresentado. Longas como Tudo sobre minha Mãe e A Má Educação, ambos de Almodóvar, trabalharam tais tópicos, do mesmo modo como Albert Nobbs e Meninos não Choram, mas o trabalho de Hooper acerta ao ampliá-la na discussão psicológica e no drama interno de seu protagonista.

Einar em seu ambiente de trabalho
No caso, trata-se de Einar Wegener, jovem pintor dinamarquês do começo do século XX, que se descobre identificado com o gênero feminino após começar a posar com roupas de mulher para uma série de quadros pintados pela sua esposa, a artista plástica Gerda Wegener. O que inicialmente era tido como uma brincadeira saudável entre um casal viril e sexualmente ativo, começa a resvalar em um conflito psicológico para Einar, que tem em seu alter-ego, Lili, um encontro que no começo o choca em sua auto-avaliação, mas que começa a fazer sentido de forma gradativa, quando sua personalidade passa a ser dominada pela de Lili.

Frequentando festas vestido como Lili, a suposta prima do interior de Elnar, o rapaz se vê penetrando em sua própria psique, algo que inicialmente lhe causa regozijo, mas que logo em seguida passa a criar um desconforto mental que resvala para um abalo corpóreo. Em um campo que a psicologia da época ainda engatinhava, Elnar é levado a médicos que sugerem os mais absurdos tratamentos, até que um deles, em Paris, lhe informa acerca da precursora possibilidade de mudança de sexo, algo a que Elnar, cada vez mais Lili, se agarra.

O filme acerta em abordar o drama vivido não somente pelo rapaz, mas por sua esposa, Gerda, que por amá-lo de forma incondicional, lhe dá todo suporte nessa decisão. A abordagem do longa neste aspecto até a pinta inicialmente como uma oportunista, que incentiva o marido a continuar travestindo-se apenas para que possa continuar a criar telas com sua imagem, quadros que vêm fazendo sucesso na França. No entanto, tal julgamento acaba sendo descartado pelo roteiro, uma vez que o suporte da garota, mesmo que levando seu casamento a um final inevitável, revela-se, de fato, indubitável.

Gerda e suas criações inspiradas em Lili
Mas é na maneira como Eddie Redmayne constrói as nuances femininas de suas duas personagens, tanto Elnar quanto Lili, que está a grande força de A Garota Dinamarquesa. O modo como seu olhar resvala entre momentos de dúvidas e decisão, demonstrando uma insegurança natural, além de seu sorriso largo que surge como que para esconder aquelas mesmas dúvidas, juntamente como seu toque e o modo como suas mãos se movem tanto no contato com o próprio rosto quanto no acariciar das pessoas que o cercam: são estes os elementos que demonstram uma construção impecável de outro ser humano.

Tom Hooper parece contido em suas utilizações de lentes deslocadas e ângulos de câmera exagerados e sem relação com resultado final, hábito comum em longas anteriores. Aqui, há um acerto no tom de seus enquadramentos juntamente com o ritmo das atuações de seus dois protagonistas, como no momento em que vemos Lili fugir da casa de um dos personagens e a rua é exibida como um corredor infindável de casas idênticas, demonstrando justamente a dificuldade da garota ao ser confrontada em sua identidade civil e a sua busca pela saída daquele mundo estático. 

Einar em seu momento de descoberta
Em sua busca por uma adaptação, a agora definitiva Lili renega tudo que antes pertencia a Elnar, inclusive seu incrível dom para a pintura. Em suas perguntas ingênuas ao médico que decidirá seu futuro, há justamente a esperança de alguém que até bem pouco tempo antes não existia. E como as de uma criança, alguém que “nasceu ontem”, tais dúvidas são presenciadas pelo espectador com uma compreensão tenra, de alguém que, apesar de decidida em sua mudança, sabemos que ainda se vê perdida em todo aquele turbilhão.

No toque das roupas femininas à presença em frente ao espelho de um corpo nu que parece ter acabado de descobrir, Elnar se encontra na busca da forma que o define, na forma que o faz se sentir bem, que o faz se sentir Lili. E não é isso que todos nós buscamos? Conforto e paz interna? Sim.