Completando 60 anos de carreira
e agraciado com o Kikito de Melhor Ator em Gramado, Osmar Prado fala
sobre Kid e Eder Jofre, sobre a função social do artista e a necessidade de se
reconhecer heróis. Esportistas e políticos.
Por João
Paulo Barreto
A
posição de um artista, além do entretenimento e da criação neste viés, reside
em um ponto tão importante quanto estes. Reside na necessidade dele se
posicionar politicamente. De utilizar sua influência para se fazer presente
além dos holofotes e da vaidade atrelada à fama. A indiferença é o pior.
Reconhecer-se como alguém cujas ideias e opiniões podem contribuir para um bem
social e para a construção de um projeto válido, isso dentro da sua própria
presença como formador de opinião, é o que justificará sua permanência útil
neste mundo plástico do showbusiness.
A arte
é política. Elas não se dissociam. Independente das posições, mas estando
sempre atento ao modo reacionário e nocivo de influência, sair da inércia é
função do artista. Osmar Prado sabe disso. No discurso após receber o prêmio em
Gramado pela atuação na pele de José Aristides “Kid” Jofre, pai do boxeador Éder
Jofre, o ator de 71 anos fez questão de lembrar do modo como meras convicções
se tornaram “provas” no processo contra o ex-presidente Lula. Notoriamente
conhecido como um homem de posições firmes, o ator não se abalou com as vaias
recebidas por parte de alguns plateia. Defender a democracia, fragilizada
pós-golpe parlamentar de 2016, requer aceitar esse tipo de reação.
Nesta
entrevista, Osmar falou do resgate das próprias memórias afetivas com seu pai e
de como isso o ajudou a compor Kid Jofre, que, à sua maneira particular, amava
seu filho campeão. No filme 10 Segundos
para Vencer, o resgate de um herói nacional é colocado em evidência para
que as próximas gerações não o esqueçam. Da mesma forma, há outro herói cujas
forças atuais, inconsistentes, mas inconsequentes na mesma intensidade,
planejaram jogar no ostracismo. Sua força, porém, é tamanha que, mesmo em um
cárcere, só vê-se crescer.
É disso
que são feitos os heróis. Sejam estes Éders, Josés ou Luízes.
CONTINENTE O crítico de cinema e curador Rafael Saraiva tem uma definição
precisa acerca dos filmes sobre trajetórias de boxeadores, como O
Lutador.Rocky e Creed. São filmes formadores de caráter. Ao sair do
cinema após seu filme, voltei a essa constatação.
OSMAR PRADO Você
dizer isso me faz lembrar do Paulo de Jesus, um boxeador da década de 1960.
Contemporâneo do próprio Éder, inclusive. O Paulo de Jesus era peso médio. Uma
vez, nocauteou um adversário e ele entrou em coma. Foi hospitalizado. Paulo,
que era católico, fez uma promessa. A promessa era que se o rapaz se
recuperasse, ele não subiria mais no ringue. Acabou se tornando figurante de
cinema, participando do primeiro filme que Anselmo Duarte dirigiu, o Absolutamente Certo. Como boxeador, como
pessoa, observo justamente isso que você disse, a formação de caráter. Ele não
poderia admitir que o esporte do qual ele vivia, provocasse no adversário uma
sequela tão grande que o impediria de viver, praticamente.
CONTINENTE 10
Segundos para Vencer traz muito dessas
situações em momentos que denotam essa força física e de caráter dos seus
personagens, de fato. Quais os seus preferidos?
OSMAR PRADO Gosto
da relação do Kid com sua companheira, Angelina, que é uma das grandes
personagens do filme. Eles estão deitados na cama e ela fala: “”Deixa seu filho
estudar”. E ele responde: “Boxe também é estudo”. Essa frase possui uma força. Outro
momento é a disputa pelo segundo título, em que ele presta a homenagem ao filho
dizendo a frase “Mesmo que você não ganhe a luta...” Claro que existem alguns
fatores ali. Primeiro, o fato do filho ter retomado a carreira para disputar em
uma categoria acima. Segundo, a aproximação da morte. Terceiro, uma espécie de
autocrítica de tudo que aconteceu. De tantos desencontros e encontros. Mas
sobretudo, a aproximação da morte. Eu acho que tudo fica muito sensível.
CONTINENTE Como se deu sua pesquisa pelo personagem do Kid Jofre?
OSMAR PRADO Na
verdade, eu não tinha nenhuma referência real do Kid. A não ser por fotografia.
Eu nunca ouvi a voz dele. Eu me baseei em minha memória afetiva. Baseei na
descendência espanhola misturada com italiana que tenho, que se assemelha à
argentina misturada com italiana da família Jofre Zumbano. Mas, sobretudo, eu
me baseei na minha relação com meu pai. Ao representar o pai do Éder, eu
prestei uma homenagem ao meu próprio pai. Eu e meu pai tivemos embates muito
grandes. Eu e o Éder somos da mesma geração. Quando ele sagrou-se campeão, eu
tinha 13 anos. Uma coisa interessante, paradoxal até, é que o Eder queria
ser desenhista e o pai queria que ele fosse lutador. Eu queria ser ator e o meu
pai queria que eu fosse funcionário público. Meu pai tinha medo que eu
continuasse a carreira, embora eu tivesse começado com nove, dez anos. E quando
eu o peitei, dizendo que era isso que eu queria, a gente travou combates
terríveis. Mas, eu sei que meu pai me amava. À maneira dele. Assim como o Kid
amava o Éder, também à maneira dele. Vi uma reportagem recente sobre o filme e
que emocionou muito. O Éder chorando copiosamente assistindo e quando vai para
tela, quem está lá é o Kid na minha pele. Olha a força dessa memória emotiva,
dele revendo o pai através da minha pele. Isso é o maior prêmio para um ator.
Ele disse: “eu vi meu pai”. Maior prêmio não há. E isso, também, porque eu vi
meu pai. Eu, mesmo, vi meu pai. Representando o pai do Eder, eu vi meu próprio pai.
Eu usei uma transferência emotiva, mas com o controle do ator experiente.
Porque isso poderia me levar a grandes momentos de emoção, mas, não. Não.
Naquele momento em que o Eder se despede, que o Kid fica parado olhando para
ele, eu não movo um músculo da face. Aqui, treme (apontando o pescoço). Mas é
sutil. Esse é o controle.
Osmar Prado em Gramado (Foto: Edison Vara)
CONTINENTE Há alguns dias você recebeu o prêmio de Melhor Ator em Gramado.
No discurso, salientou o processo de prisão baseado em convicções, e não em
provas, contra o ex-presidente Lula. É curioso observar esse paralelo de
trajetórias entre ele e o Éder Jofre, quando todas as chances ínfimas os
levariam a desistir de seus objetivos. Mas eles perseveraram.
OSMAR PRADO Sabe,
eu vi muitas entrevistas do Éder onde o entrevistador o via de uma forma
jocosa. E o Éder era muito inteligente, mas à maneira dele mesmo, aquela
maneira simples. E muitas vezes eu vi que os jornalistas não estavam dando o
devido respeito àquele homem. Esse paralelo a gente vê no ex-presidente Lula.
Eu vi outro dia uma entrevista com o Reinaldo Azevedo, fazendo um pouco de
chacota do Lula. Isso não sou eu quem está falando. Tem vídeo disso. Ridicularizando
a questão dos erros do vernáculo. Como se ele, pelo histórico de vida, pudesse
falar um português daqueles que frequentaram boas escolas. Mas ele fala a
linguagem de que nenhum deles, letrados, consegue falar. O que é o Lula? O
Lula contrariou todas as leis da física. O Lula não era para dar certo. Como um
nordestino sem dedo, tendo o curso primário e um curso técnico torna-se um
líder sindical, candidato à presidência da república, perdeu três vezes, ganhou
na quarta? Estadistas do mundo inteiro o respeitam. Noam Chomsky vem visitá-lo.
O (Adolfo Pérez) Esquivel já confirmou a sua candidatura ao prêmio Nobel da
Paz. O Obama diz que ele é o cara. Quem é o Lula? Ao invés de nós tentarmos
entender a alma desse homem, o que é preciso fazer a ele? Porque temos que
entender o lado da direita. Até para poder entender os argumentos deles. E eu
me pergunto o que o Moro vai fazer depois que o Boulos invadiu o triplex do
Guarujá e viu que a reforma de um milhão e trezentos mil não existe. E em 2019,
a ONU vai julgar o processo do triplex pelo mérito, não pela convicção. No dia
da prisão do Lula, eu estava lá em São Bernardo. Ele, ao invés de ter a foto da
algema, organizou a própria resistência. No dia do aniversário da dona Marisa.
No dia da homenagem a sua falecida esposa. Esse homem perdeu a mulher, mas não
perdeu a vontade de lutar. Ele, em outras palavras, é foda! Porque foi feito da
massa daqueles que vieram de baixo. Isso é para poucos que possuem a
inteligência do cara. Isso é sagacidade política. O golpe de 2016 fracassou.
Não deu em nada. Repara o panorama. Ele foi protagonista de sua própria prisão.
Não o Moro. Deu um nó em todas as vezes em que esteve diante do juiz. Ele disse
para o Moro: "Doutor, se o meu processo fosse julgado pelo mérito, o
senhor não o teria aceito." Então, o que aconteceu? Agora, o TSE não teve
dúvida. Teve que liberar para aparecer ele na campanha do Haddad. Quando fui
premiado, fiz questão de falar dele. Fiz um discurso. Fui vaiado por parte da
plateia. E disse: "pode vaiar. Pode vaiar”. Essa foi a minha resposta.
CONTINENTE Seu posicionamento político me faz pensar no fato de que a arte
e a política não podem ser dissociáveis. O artista precisa fazer valer sua
posição social, independente de qual direcionamento.
OSMAR PRADO O
trabalho é político. É político em essência. A arte é política, mesmo quando
for de direita. Não importa a posição. É você se manifestar. Essa profissão não
é somente fama e pensar em ganhar dinheiro. Eu sou oriundo de um período, de
uma família que morava em um terreno nos fundos dos sobrados de classe média.
Nós morávamos numa casa de quarto e cozinha. Éramos minha mãe, meu pai em um
quarto dividido por um pano, de um lado a cama dos meus pais, do outro lado os
três filhos. E tinha minha tia, irmã da minha mãe, que morava conosco, ela
trabalhava de empacotadora. Eu vim desse universo. Então, o ego nunca foi algo
que me subiu à cabeça. Esse filme traz um pouco disso. É um filme de fé. Quando
eu levei o meu pai à cena, eu me levei. E a emoção não é de efeito. Ela é real.
Por isso mexeu com as pessoas. E mais do que nunca nós estamos precisando
disso, dessa credibilidade. Na minha cabeça, eu tenho o que disse Plínio Marcos
disse sobre os atores, que é o que eu vou dizer com as minhas próprias
palavras. Por mais duros que sejam os corações em decorrência das lutas diárias
pela sobrevivência, sempre haverá dentro de cada coração um pouco de ternura e
um pouco de sensibilidade. Cabe aos atores, com o seu trabalho, com a sua
sensibilidade, fazer aflorar essa ternura. Mas o ator tem que ter consciência
de que tem que servir à sua personagem. E não servir-se dela. Para brio e egos
infundados. É isso. É assim que defino essa função. Muitos colegas meus, e eu
não estou fazendo uma crítica, só uma observação, perderam um pouco essa
referência. Muitos. Ou por analfabetismo político, por vaidade ou porque, de
repente, estão ganhando muito dinheiro e ficam um pouco deslumbrados com essa
coisa de sucesso. Eu tive grandes mestres. Que toda vez que eu ia para um lado,
eles diziam assim: "vem cá." Nunca me abandonaram. Porque eu não faço
política para auferir lucros, ou ganhar alguma coisa. Tanto que uma colega
entrou na sala ontem e disse assim: "Você mamou nas tetas da Lei
Rouanet". Eu falei: "Não, eu mamei nas tetas da minha mãe."
Nunca mamei nas tetas da Lei Rouanet. Até porque não sou produtor. E todas as
vezes em que eu tentei produzir, eu produzi com o meu dinheiro. De ator. E até
que nem deu errado. Se eu não tive grandes lucros, pelo menos prejuízo eu não
tive. Agora, o que eu quero dizer é que eu não faço política para tirar
proveito. Eu faço política porque creio firmemente na possibilidade de
encaminhar o país para uma sociedade mais justa, mais fraterna. Existe uma
coisa que se chama fervor revolucionário. E que só é possível se você tiver
isso.
Trailer do filme
CONTINENTE Você está otimista em relação ao futuro cenário?
OSMAR PRADO (Pensativo) Eu estou atento.
Acho que, pelas últimas notícias que eu tenho, e eu costumo acompanhar também
os comentários do Paulo Henrique Amorim, não deu certo o golpe. Só há duas
alternativas para o conservadorismo. Ou engolir um possível candidato
progressista. Ou fechar. E não sou poucos os militares que estão com essa
vontade. Mas se fechar, define de vez. Desobedeceram a ONU. Foi um tiro no
pé. O Boulos é aquilo que disse o Paulo Henrique Amorim. O Boulos não é
Lula, o Lula não é Boulos. O Boulos queria a resistência. O Lula queria a
conciliação. Conciliação, não, a entrega. Mas eu acho que o Lula estava certo.
Porque ao integrar-se de dentro da cadeia, ele se reforçou. Porque, perante a
comunidade, não só de dentro como de fora, ele continua pregando a inocência. E
ao invadir o triplex, é aquilo que o Paulo Henrique disse. Ele meteu um punhal
nas vísceras dos golpistas. E desmoralizou todos eles. Inclusive, o STF, que
deu o aval. Dona Raquel Dodge e dona Carmem Lúcia. E todos eles, com algumas
exceções, acho que são poucas. Tanto que o TSE, o que fez? Liberou o Lula para
aparecer na propaganda eleitoral em apoio a Haddad. Agora, veja bem, nós não
temos que estar otimistas nem pessimistas. Temos que estar atentos aos passos e
denunciar os movimentos. Nós não estamos em 1964. Estamos em 2018.
Estamos com um time muito mais forte. Há a possibilidade da derrota, há.
O Haddad arrebentou quando sofreu aquele interrogatório inquisitivo no Jornal
Nacional. E ele sentou o pau. Observe aquele momento em que ele diz não estar
satisfeito, que quando a honra dele está em jogo é ele quem decide. Na Band, o
Ciro peitou. “O senhor tem coragem de dizer que a Venezuela é uma democracia?”
E ele respondeu: “Sim, é uma democracia. E eu, se eleito, vou estabelecer com
meus vizinhos da América Latina uma relação com todos eles sem interferências,
sem ingerência, nas decisões e na soberania de cada país. E nós temos que ter
responsabilidade.” E quantas pessoas já morreram lá?” E o Ciro rebateu: “E
quantas já morreram aqui? E a Marielle Franco?” Aí o cara não soube responder.
Nós temos que ter responsabilidade nesse momento para impedir que ocorra uma
guerra civil. Temos que ter juízo. Se você joga lenha na fogueira, o que você
quer? Você quer guerra civil. Entrar com a repressão e acabar com a democracia.
Mas sua pergunta era outra. A questão é se eu estou otimista. Não estou. Estou
apreensivo. Porque eu não sei o que vem pela frente. Mas que o golpe não deu
certo, não deu. Nós fomos ao gabinete da ministra Carmem Lúcia. Fomos eu,
Adolfo Esquivel e a Carol Proner. Estávamos lá. E eu até perguntei para ela:
"Ministra, quantos cadáveres mais serão necessários para que se faça
justiça? Dona Marisa? O reitor da Universidade Federal de Santa Catarina? E
pergunto mais: quem tem medo de Luiz Inácio Lula da Silva? Ministra, faça valer
a presunção de inocência", Ela não disse uma palavra sequer. Ela ouviu
todo mundo. Quem foi contundente com ela foi o Esquivel. Ele fez questão
de dizer que estava indo para consolidar a candidatura do presidente Lula ao
prêmio Nobel da Paz. Ao trancafiar o Lula, acharam que ele ia cair no
esquecimento. Quer dizer que você quer matar uma coisa que não se mata. Eu
disse isso. Não se mata um líder. Para matar um líder, você tem que matar um
povo inteiro. E isso nunca ninguém conseguiu. Nem um exército inteiro
conseguiu. O Tiradentes, quando foi enforcado e esquartejado, estava selada a
história dele. Hoje, você não fala do Silvério dos Reis. Você fala do
Tiradentes.
Daniel Oliveira (Éder Jofre) e Osmar Prado em foto de divulgação do filme
CONTINENTE Você acha que a arte pode
vencer o reacionarismo?
OSMAR PRADO Eu acho
que a arte é uma força em si mesma. E se você, com inteligência e
sensibilidade, puder fazer dela um instrumento de transformação, ela se torna
ainda mais grandiosa. Não que ela seja revolucionária, mas ela é o
acompanhamento das revoluções. Eu citaria Victor Jara (cantor chileno e ativista político), que estava no Chile quando
aconteceu o golpe. Ao lado do (Salvador) Allende. Victor Jara cantava como
ninguém, até que veio o golpe. E esse homem foi para o estádio. Não fugiu. Foi
para morrer. Ele tocou violão no estádio que se tornaria o campo de
concentração de caminhões com cadáveres que sairiam de lá. São mais de 3 mil
mortos do Pinochet. E ele foi ao estádio antes. Tocar violão e cantar em
protesto. Tiraram o violão dele e ele continuou cantando. Quebraram seus dedos
. Ele continuou cantando à capela com os dedos quebrados. Aí o tiraram de lá e
o mataram. Que força leva um cara a cantar com o dedo quebrado? Que força é
essa? Isso é o que os caras não toleram. De onde vem? Emana do povo, meu amigo.
Existe uma coisa que se chama fervor revolucionário. E que só é possível se
você tiver isso. E eu tive o privilégio de conhecer a filha de Ernesto Guevara.
A filha mais velha, na casa de Adair Rocha, no Rio de Janeiro. E eu lhe disse
assim, cara a cara. Os olhos dela eram os olhos do pai. Eu disse assim:
"As pessoas citam frases de seu pai com “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. Eu prefiro
aquela em que ele disse 'onde quer que eu esteja, que a morte seja bem vinda,
porque outros segurarão o meu fuzil, a minha ideia. Ela disse: “eu pensava que
meu pai era suicida. Depois eu entendi que meu pai sabia, tinha plena
consciência da importância e da não importância da sua participação no processo
revolucionário. Se o matassem, ele continuaria”. E de fato ele provou isso. Por
ser a derradeira, ele desejava a morte, dentro das possibilidades possíveis.
Foi morrer na Bolívia. E quando Benício Del Toro leu as cartas do Che, ele
enlouqueceu e fez aquele filme belíssimo. Então, o que me fascina não é o Che
ídolo, mito grandioso, mas Che, o homem. O que impressionou Benício Del Toro
foi a maneira do Che escrever. A maneira como ele fala com os filhos. Isto é um
amor que cega qualquer reacionário.
CONTINENTE
Você
acha que a história fará justiça ao momento atual no Brasil?
OSMAR
PRADO Eu acho que esse momento será muito discutido. Você viu o
documentário O Processo? Pois é. É
uma sucessão de coisas. É tanto material que as novas gerações terão como saber,
passo a passo, o que de fato ocorreu no país, os retrocessos impostos por um
governo golpista, por um governo que veio para destruir tudo aquilo que se
conquistou ao longo de décadas em que se acreditou que era possível ser feliz,
de fato. Talvez até quando essas coisas todas ficarem lá, realmente, como
história, a gente possa avaliar o futuro. Mas eu acredito que sim. Que pelo
menos se tenha consciência do que de fato aconteceu nesse período. E quem
estava onde. Quem estava com quem. Quer dizer, onde é que você estava? Eu tive
grandes embates. Com pessoas queridas, inclusive. Mas, mantive-me firme. E
tenho certeza que a pessoa ou as pessoas já estão um pouco caladas.
O
diretor gaúcho Hique Montanari conversa sobre os desafios de levar para as telas
a história do jovem Yonlu, multiartista que cometeu suicídio em 2006
deixando
um legado impressionante.
Por João Paulo Barreto
20/09/2018
A
impressionante obra musical de Vinicius Gageiro Marques, conhecido como Yonlu,
ultrapassa qualquer estigma deixado pela sua morte precoce, em 2006, ao cometer
suicídio. Dono de um senso de realidade incomum para um adolescente do século
XXI (tinha apenas 16 anos quando morreu), Vinicius era fluente em cinco idiomas,
e, além da música, se expressava artisticamente como fotografo e artista
plástico. Tratava-se de um artista cujos caminhos ainda a serem trilhados nos
faz imaginar o quão gigantesco ele poderia ter se tornado em vida.
Ao se
propor a registrar essa história em película, o diretor gaúcho Hique Montanari
se ateve a uma proposta que, apesar de flertar com o documental, escapa das
amarras e armadilhas que esse formato pode vir a trazer. O filme é uma ficção
baseada nos fatos reais e chocantes da fase final da vida de Yonlu. Mas, longe
de se prender a tais aspectos, ele permite o espectador a conhecer a curta
trajetória do rapaz em seu próprio intimo, contrastando a realidade a sua volta
com o modo como ele mesmo enxergava essa realidade. Assim, valendo-se de
experimentações que se sobressaem na fluidez da história, o público é levado
por labirintos na mente do artista, entendendo gradativamente suas angústias,
mas, o mais importante, em momento algum o rotulando como um suicida.
A
partir de cenários que misturam pensamentos com realidade, sonhos com asperezas
e, ilustrando tudo isso, a obra musical e visual de Yonlu (vivido com singeleza
por Thalles Cabral), Montanari conseguiu de modo impar contar a história
daquele menino atormentado que, infelizmente, encontrou na internet não um
abraço, mas um empurrão, como bem coloca o roteiro também escrito pelo diretor.
Nessa
entrevista à Continente, Hique Montanari falou, dentre outros assuntos
relacionado à obra e ao artista, acerca do processo de criação do roteiro que
passou por doze versões, desde sua primeira em 2009, da relação que construiu
com os pais de Vinicius e da função que seu filme tem na necessidade de se
falar de suicídio não como um tabu. Sem ser panfletário ou sensacionalista,
como bem salientou na conversa, Yonlu, o
filme, alcança bem esse intento.
Thalles Cabral vive com sensibilidade a figura trágica de Vinicius
Conhecendo previamente a tragicidade da
história de Yonlu, eu entrei na sessão do seu filme inseguro por conta do
impacto que ele poderia me trazer como espectador. Confesso que a experiência
acabou sendo de uma catarse positiva.
Isso é
fantástico. E eu estou comentando não como diretor, mas como espectador de
cinema. Porque eu te confesso que tenho uma coisa assim. A minha natureza de
espectador ela geralmente procura por filmes que me causem isso. Aquela coisa
de catarse ao assistir um filme. Aquela coisa de sair da sala de cinema sem
saber direito para onde você está indo. Obviamente, não tem como um filme como
o nosso, pela maneira como é tratado, pelo tema tão delicado que ele traz e que
não é um tema fácil de ser digerido, não trazer alguma reflexão. E também é um
filme com uma estética muito forte. Essa estética fala muito alto, também. Isso
no sentido de te trazer muita informação e em um nível mais sensorial da coisa.
É uma frequência sensorial. Não são palpáveis as informações que você tem ali. São
coisas que devem ser decodificadas. Coisas que você simplesmente sente. E o
filme trabalha muito com isso.
Ao tratar de um tema tão delicado, como tem
sido a recepção do público para você?
Hoje,
uma menina me procurou no Instagram e postou um testemunhal falando sobre o
filme. Ela está estudando Cinema e pretende se tornar diretora. Ela disse que o
filme mudou muito a sua percepção a respeito de cinema, a respeito de direção. Que
ela saiu outra pessoa da sala, após a sessão. Isso é uma coisa interessante.
Quando uma obra consegue tocar as pessoas dessa maneira. E a gente também tem
discutido muito essa questão do tema. O filme está apresentando o trabalho do
Vinicius, está levando o legado dele adiante, para um público muito maior. Estamos
cumprindo esse viés, digamos, de filme homenagem, mas sem deixar de lado a
questão da reflexão sobre o tema. E nesse quesito, em todos os debates que a
gente está tendo, temos tido conversas com profissionais da saúde mental. Ele é
super bem acolhido também, sabe? Principalmente pelo fato de tratar com
responsabilidade. Isso não são palavras minhas. São as palavras mais
recorrentes nas críticas. Que tratamos o assunto com uma empatia, com
responsabilidade, com sensibilidade. E uma outra coisa que para mim foi
importante. Não fazemos duas coisas com o personagem: a gente não o torna um
super-herói, o que seria um erro gravíssimo, grosseiro, quase, eu diria. E,
também, a gente não o vitimiza. Nesse sentido, o tratamento do tema está sendo
bem acolhido. Eu te digo sem a menor falsa modéstia, quando eu percebo que a
gente conseguiu fazer que o filme também cumprisse um pouco esse papel social,
é com muita satisfação que recebo isso, mesmo.
Seu
filme traz escolhas estéticas que, a meu ver, são muito bem sucedidas na
representação do intimo do Vinicius. A mescla entre animação e live action, as
representações das conversas dele nos chats, o passeio por sua mente
representado em cenários, o uso de suas músicas Você poderia falar um pouco
sobre como se deu essa construção?
O
primeiro tratamento do filme é de 2009. Nós filmamos em 2016 o tratamento de
número 12 do roteiro. Algumas coisas permaneceram desde o primeiro tratamento,
de 2009, até décimo segundo. Dentre elas, uma narrativa não linear e o uso de
uma linguagem fragmentada. Também o uso da live action nas cenas com atores e o
da animação. Nessas alturas, desde o primeiro tratamento, eu já tinha essa
clara noção de que as ilustrações que o Vinicius tinha deixado estavam quase
que pedindo por vida. Aquilo é uma coisa de criador, né? Elas estavam pedindo
vida. Elas estavam pedindo movimento. E nada mais coerente com a história, com
a vibe criativa que ele tinha, que você apresentar aquelas ilustrações como
animações. É uma releitura de sua arte. Eu me propus a fazer talvez uma coisa
que até ele tivesse, sabe-se lá, visualizado em algum momento, também. De
qualquer maneira, todos os desenhos dele insinuam movimento. E isso me levou muito
nessa criação de blocos em animação 2D, com técnicas que fizessem jus às
técnicas das ilustrações dele. E há as cenas onde eu trago linguagens variadas.
Ali, eu busquei resgatar a linguagem do musical ou do videoclipe. São
basicamente as cenas com as músicas dele. Nós temos no filme dois tipos de
música. Você tem a música do próprio Yonlu, que é a trilha do filme, e você tem
a trilha incidental. Música do filme por Yonlu e trilha sonora incidental por
Nando Barth. A música do Vinicius tinha que estar presente até pelo fato do
filme também ter essa função de servir para apresentar sua obra. Por isso,
aparecem os nomes das músicas, e também para não se criar uma confusão com o
que seria a música incidental. Mas em termos de estilo, não tem como você
confundir uma trilha com a outra, e isso foi muito bem estudado. A música
incidental serve exatamente com esse intuito de trabalhar a atmosfera. Ela não
é narrativa como é a música do Yonlu. Sua música é muito mais que como uma
trilha sonora com função narrativa. Por isso que nós optamos por legendar o que
é em inglês em português na versão nacional do filme, porque aquelas letras
falam daquele garoto melhor do que qualquer diálogo de personagens. Havia a
necessidade de legendar as músicas porque elas estavam falando de um estado de
espírito, de ânimo do personagem.
Um monte
de coisas no roteiro que foram nascendo dentro desses quase dez anos de
execução, desde 2009. A cena do astronauta foi uma coisa que ela surgiu mais ou
menos no meio desses anos todos. Não era uma coisa que estava no primeiro
roteiro. E surgiu de uma maneira muito intuitiva. É um processo de criação.
O visual inventivo a balancear fantasia e realidade na mente de Yonlu
Ao ver o filme, percebi essa inclusão da
cena do astronauta como uma metáfora da não adaptação do Vinicius ao mundo. Foi
esse a intenção?
Sim,
verdade. Aliás, com essa cena do astronauta aconteceu uma coisa muito
interessante. [Na escrita do] eu primeiro criei as cenas. Elas são uma
sequência de cenas. Então, bem depois que as cenas já estavam no roteiro, eu
acessei o arquivo e vi uma ilustração do Vinicius que continha um desenho de um
astronauta. Eu não tinha visto esse desenho ainda. Foi um original dele que eu tive
acesso quando na época das conversas com a família, onde nós tivemos que falar
de contrato e esses trâmites. Foi quando eu acessei o material inédito dele e
veio essa ilustração do astronauta. Mas o que me impressionou é que as cenas do
astronauta já estavam criadas. Então, cara, é o que eu sempre digo. Acho que
tem coisas na criação que meio que fazem parte de um caldeirão de DNA criativo,
sabe? Onde todo mundo, em partes diferentes do planeta, acessam simultaneamente
ou um de cada vez. Só para você ter um ideia, quando lançaram em 2015, se eu
não me engano, aquele filme fantástico, o Montage of Heck, sobre a vida do Kurt Cobain, o
nosso já estava todo roteirizado. E lá estavam basicamente os mesmos recursos que
o documentário do Kurt usou, que são cenas de arquivo do Kurt e as ilustrações
do cara colocada como animações. Ilustrações e letras de músicas dele animadas.
Aí, já antes da gente lançar o filme no cinema, apareceu o filme Extraordinário, com a Julia Roberts, onde o
garotinho tem uma doença e usa um capacete para esconder o rosto. Aí você fica
assim, pensando (risos): vão dizer que eu usei essa ideia daquele filme. Mas são
coisas que você acessa e não sabe direito da onde você está acessando E
você gosta e conversa com a direção de arte, conversa com a fotografia, que são
parceiros criativos, e você bate o martelo de que vai ser por ali. É uma
coisa que não tem explicação, sabe? (risos) É uma cena que me veio com a imagem
pronta e eu sou muito intuitivo nesse aspecto. De dizer assim: "cara, isso
funciona. Isso tem uma eficiência muito boa. Vamos rodar desse jeito". Você
vê, de vez em quando, as coisas chegam prontas, em outras não. Em outras, você
tem que ralar bastante para chegar a um resultado.
Você citou essa referência involuntária que
o doc do Kurt Cobain apresentou, e eu queria perguntar acerca das obras que
possam realmente ter te influenciado. As mudanças de ambientes entre os
cenários mentais de Yonlu e os reais me lembraram o filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. A construção cênica do
filme do Michel Gondry te influenciou de algum modo?
Não,
realmente não Esse filme do Gondry, que eu acho maravilhoso, eu o vi há tanto
tempo atrás, muito tempo. Ele está até disponível, mas eu ainda não O resgatei.
Fora a atuação do Jim Carrey em algumas cenas muito emocionantes dele com a
Kate Winslet, eu não lembro assim muito os tipos de recursos da linguagem.
Então, é vai ser bem aquilo de resgatar algo. Cara, eu vou te falar uma coisa, embora
eu não tenha feito algo do tipo: "Vamos nos basear em Lars Von
Trier", mas tem muito dele nesse recurso do cenário. Essa coisa do cênico,
sabe? Estudamos muito também como
referência, ao menos de textura e cores, o Goya,
do Carlos Saura. Ele trabalha muito o recurso de projeção, de telas, de luzes
que se acendem e apagam e os cenários se formam a partir dessas luzes. É
fantástico! Foram vários filmes que nós estudamos nesse processo. A própria
textura da fotografia eu já tinha uma referência. Eu peguei uns clipes de uma
produtora polonesa muito interessante. O nome da rapazeada é PsychoKino. E é rapazeada mesmo, porque
tem um bando de jovens que faz uns clipes muito bacanas. E a fotografia dos
videoclipes deles é aquela dos filmes do leste europeu. Aquela coisa esmaecida
pela qual eu sou apaixonado. Quando vi, foi “Gente, o que é isso, vamos trazer
isso para o nosso filme” (risos). Levamos em consideração os nossos recursos, o
nosso tipo de câmera, o que a gente podia fazer, trabalhamos aquela referência,
e foi algo que caiu super bem para a proposta.
Mais especificamente qual obra do Lars Von
Trier te influenciou nessa construção?
Dogville. Essa
coisa do recurso da câmera, do cenário, tem muito do Lars von Trier, o Dogville tem
muito daquilo, levando em consideração as devidas proporções, mas a coisa do
cênico tem muito ali, embora, claro, não seja a mesma coisa. Porque ele
trabalha literalmente a demarcação dos cenários. Ele trabalha literalmente um
espaço, a coisa cênica. Bem teatral, mesmo. Mas, tu sabes que eu tenho um média
metragem chamado Fogo. É o primeiro
filme em 35mm que eu fiz. Ele começa em um trem aqui de Porto Alegre. Um filme
preto e branco, com a tela cinemascope, aquela maravilha de tela. A câmera está
em cima de um vagão voltada para os trilhos do trem. Os trilhos tomam conta da
tela inteira, e o plano é esse trem em movimento e aqueles trilhos passando.
Aquilo fica por muito tempo até que vamos para a cena número dois. O Lars Von
Trier, eu vi depois (risos) e eu estou te contando isso só para a gente
ilustrar mais essa coisa do caldeirão de DNA das ideias. Enfim, o Lars Von
Trier tem um filme chamado Europa,
que começa do mesmo jeito (risos). Do mesmo jeito, cara! É um trilho, a câmera
voltada para os trilhos e aqueles trilhos ficam ali por muito tempo, e não tem
fim. E, tipo, eu não tinha visto Europa.
Eu vi esse filme Europa muito tempo depois de fazer esse meu média metragem. Você
não precisa ir longe no caldeirão de ideias, vamos pegar coisas super práticas.
Esse filme, se eu não trato de me adiantar e conseguir os direitos autorais, já
tinha gente querendo filmar a história do Yonlu, você está me entendendo? É
como se dez pessoas estivessem com a mesma ideia ao mesmo tempo. Óbvio que você
ia ter dez filmes diferentes. Mas é bem isso. Eu sempre digo assim: isso é uma
coisa que, enquanto realizador. eu me obrigo a me ligar para aprender. A ideia
é uma coisa que, quando você tem, você tem que dar um jeito de ou produzi-la ou
de ter argumentação para poder dizer: "essa ideia é minha!"
(risos)
Uma das obras de Vinicius, utilizada no filme
Ainda sobre essa fluidez de um cenário para
o outro, como você planejou essa mudanças entre o que era real e o imaginário?
E o processo de tornar físico, em cenários, essa criação?
Eu
estava tendo acesso a muito material. Eu já tinha um pé na linguagem
experimental, na linguagem do videoarte. O meu início em produção de conteúdo
foi na época em que os festivais de cinema tinham a categoria de Vídeo Experimental,
quando também você tinha o vídeo arte. Eu comecei a produzir nesse gênero,
digamos assim. E com o filme do Yonlu, eu tinha uma coisa bem clara que era ter
o momento pé no chão, onde você traz o filme para o chão, para o planeta Terra
e diz: "olha, aqui nós estamos de uma maneira objetiva e direta, sem muito
rodeio, falando sobre este assunto, sobre este personagem, sobre o que o
acometia". Estas são as cenas dele com o terapeuta e as cenas do terapeuta
com a repórter. No resto, você tem o mundo do garoto. É o universo particular
dele, seu quarto, seu local de criação. É o universo interno e externo dele. E é
nessa parte de lidar com isso que também entra essa minha veia experimental. Eu
diria até de buscar sempre soluções que fossem condizentes com a própria obra
do cinebiografado. Então, essa preocupação de você estar criando várias camadas
narrativas, utilizando imagens, embora o filme seja de ficção, você flerta com
vários gêneros, com várias texturas de fotografia, com o live action, com a
animação. Isso tudo tinha que estar fluindo de uma maneira muito orgânica. Por
mais que você saia da uma fotografia fria, no quarto do Vinicius, onde você tem
uma luz azul no seu rosto, e depois você vá para um fórum de internet através
de um recurso absurdamente cênico, quando se materializa na frente da tela do
computador do cara, isso tem que ser muito orgânico. Se isso não fosse
orgânico, o filme não ia funcionar. Ia parecer forçado demais. Nós estudamos
muito o filme. Todos os departamentos. A arte, fotografia, finalização, a
animação, montagem, a parte textual de conteúdo, também. Nós fomos para a
leitura de mesa de roteiro com o pessoal da saúde mental, inclusive. É um filme
muito bem estudado. E por incrível que pareça, tínhamos muito mais ainda para
fazer e para mostrar. Mas chega num ponto em que você começa a perceber que o menos é mais. Já tínhamos uma ampla gama de
experimentações e de, digamos assim, não experimentações.
Como foi o processo de escolha das
locações?
Elas eram
para ser locações reais. Uma casa, um apartamento. Não tinha aquela linguagem
do estúdio. E isso surgiu do fato de nós termos vinte diárias para rodar e eu
estou falando de um filme de baixo orçamento. Eu tinha um grande número de
locações e isso ia fazer com que eu tivesse muito tempo na produção para montar
cenários, para montar fotografia e até para deslocar equipe. Eu ia gastar muito
tempo mais produzindo durante a filmagem do que filmando, mesmo. E quando fosse
filmar ia filmar, iam ser cenas bem complexas. Foi quando surgiu a opção de nós
transformarmos a parte casa/consultório/túnel e fórum virtual dentro de um
espaço único. E aquilo que você vê no filme não é um estúdio. Era um espaço
vazio, um grande corredor de um ex-seminário aqui da região metropolitana de
Porto Alegre. Hoje em dia, esse espaço, esse ex-seminário, é ocupado pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Um prédio gigantesco.
Muitos filmes aqui têm sido rodados ali. E nós rodamos em um andar inteiro, de
ponta a ponta, que estava vazio. Você entrava naquela câmara escura, e olha,
sei lá, aquilo é uma coisa assim de uns 500m. É gigantesco. Aí começou a surgir
então uma coisa muito prática de produção. “Se nós fizermos aqui, se nós
cenografarmos as locações ao invés de ir para uma locação real e produzida, a
gente ganha em agilidade”. Pronto. Tínhamos ali um set de luz que já fica pré-
montado, com cenários onde você monta e desmonta paredes. Conseguimos ter uma
agilidade. Sem contar que você não sai do mesmo lugar. Das vinte diárias, nós
ficamos umas quinze naquele espaço. Então, facilitou muito. Quando eu olhei
para esse espaço todo, eu disse assim: "Bom, gente, faremos o
seguinte. Eu como diretor, eu me nego a rodar esse filme aqui com esses
recursos cênicos sem mostrar onde é que eu estou". Então, eu tinha que
agregar essa questão de mostrar onde estávamos, também, no filme. Daí surge
aquela questão toda de você afastar os objetos cênicos, e você vê que você está
em um espaço com breu e o cenário lá no fundo, e aquela câmera vai e entra no lugar.
E isso funciona muito. Depois você vai criar uma lógica e uma justificativa
para fazer o que você está se propondo fazer e não deixar a coisa gratuita.
Isso, no filme, funciona muito como uma questão assim de você estar acessando
camadas diferentes da narrativa e os próprios universos dessa narrativa. É como
se você saísse do mundo dele para ir ao mundo exterior e voltasse a entrar no
mundo dele. Ou até a maneira como o personagem vê de dentro e vê de fora o
próprio mundo. Tem muito isso naquela linguagem, naquela câmera solta, naquele
espaço preto.
Ao
optar por uma ficção e não um documentário contando a história de Yonlu, você
se concede liberdades criativas e foge de amaras que poderiam engessar o filme.
Essa foi uma das razões pela opção do viés ficcional?
Antes
de roteirizar o primeiro tratamento, eu tratei de fazer uma coisa que foi
contatar a família, apresentar o projeto, apresentar a minha ideia e conseguir
deles ao menos um termo de ciência. Não era nem um contrato. Era um termo
dizendo que eles estavam cientes que um roteiro estava sendo escrito e que,
através daquele termo, eles davam autorização para o projeto participar de
editais públicos. Para editais, isso serve. Eu tive acesso a esse termo e
comecei a roteirizar. Apesar de ser uma história já passada, era um fato muito
radical, as pessoas ainda sentem todas as dores, porque, pô, é um filho. Então,
é muito complicado. Eu tentei ser o mínimo invasivo possível em todos os
contatos com eles. Para ser o mínimo invasivo possível nessa fase de criação
das primeiras versões de roteiro, a minha pesquisa, que foi extensa e demorada,
ficou restrita ao que estava disponível publicamente. O que estava na web. Tive
algumas reuniões presenciais com o pai dele. Fui pegando mais elementos. Mas,
assim, eu não tinha o relato do fato real em si, de uma fonte absolutamente
confiável. E acho que para você ir para a linha do documentário, para uma
história que tem assim vários lados, vários ângulos, eu ia entrar em um terreno
muito complicado de sair. Chega a ter, inclusive, versões diferentes. Ficar
trabalhando em cima de fatos que não procediam ia ser até uma
irresponsabilidade minha. Então, quando eu percebi que eu já tinha uma linha
narrativa dessa história e que ela batia com todas as narrativas e com tudo que
eu tinha de informações colhidas com todo mundo que eu conversei, inclusive com
a família, percebi que tinha uma linha dela que poderia ser trazida para o
roteiro. Mas não como um documentário, e, sim, como um filme de ficção adaptado
de uma história real. Baseado em uma história real. E isso fez com que
realmente pudesse alçar voo. Isso me livrou de várias coisas. Eu queria ter
essa liberdade de ter um garoto, um ator, o Thalles (Cabral), que foi um
achado, porque ele toca violão, canta, fala inglês, e é um ator talentosíssimo.
Eu tinha que buscar algumas semelhanças com o personagem real, mas não ser
fidedigno. Eu não queria trabalhar aquela coisa assim, você olha e diz:
"ah, mas é o Yonlu". Não. Tem que lembrar o Yonlu. Eu sempre tive
isso em mente. Até para exatamente a gente continuar alçando esse voo baseado
em uma história real. E foi basicamente em cima disso que eu estou te falando
que surgiu a proposta de fazer uma ficção baseada em fatos reais. Mas, é como
eu já te disse. Você viu o filme e você mesmo detectou isso: essa é uma ficção que
flerta com o documentário.
Há, claro, a questão da necessidade de
discutir o suicídio fugindo do tabu que o assunto traz. E o seu filme aborda
com pertinência essa questão, mas sem construir o personagem do Vinicius como
um potencial suicida. No roteiro, como você dosou isso, sem pesar a mão para o
trágico?
Na
verdade, esse filme, no fim das contas, é um filme que fala sobre a vida. Ele
fala muito mais sobre a vida. Até porque, além disso, ele fala sobre algo que é
maior que o artista, que é a obra que ele deixou. E essa obra está viva. E
quando eu te digo que ele fala sobre a vida não é nem baseado em conversas que
nós já tivemos com especialistas, mas é baseado na reação do próprio público.
No Festival do Rio, na primeira exibição pública do filme, teve gente do Brasil
inteiro que viajou para ver na estreia. Muitos fãs do Yonlu estavam presentes.
Tinha um menino que, no final, ele me olhava muito. Ele estava sensivelmente
abalado. Uma mistura de choro com angústia. Era uma coisa que meio que me
deixou acuado. Até que bem, no finalzinho, alguém chegou e me apresentou àquele
garoto. Ele disse: “cara, quero te agradecer pelo filme. E eu quero te dizer
que eu entrei aqui, e, pela própria história e por ser fã dele, do Yonlu, eu estava
muito angustiado. Mas eu saio desse filme melhor do que eu entrei.” Então,
sabe, acho que o filme trabalha com essa sensação de que o que vale é a vida. É
um filme sobre a vida.
Nos materiais que você teve acesso, houve
cartas e letras de música que ele escreveu. Dentre elas, a Suicide Song, bem como a carta que é lida no final. Abordar
diretamente o assunto era necessário, claro, afinal é esse fato trágico que
marca o filme.
Sim. Nós temos, digamos assim, a primeira carta, a
primeira mensagem dele que não poderia ficar fora do filme. Quer dizer, até
poderia, mas quando ele compõe essa música
Suicide Song, a canção do suicídio, ele deixa uma carta. E ele explica, ele
fala sobre a crise que ele estava vivendo naquele momento em que a escreveu. A canção
é tão emblemática na obra dele, na produção dele, e, afinal de contas, o filme
também traz esse algo emblemático. Eu não podia construir um personagem que, do
nada, apresenta uma vontade suicida e vai a cabo na ideia. Eu tenho que
trabalhar alguma argumentação para isso. Então, fui pegando coisas que eu
poderia dosar de uma maneira que não pesasse excessivamente o filme. E esse não
pesar, e o que dosar e como falar, eu sempre tive a orientação do pessoal da
saúde mental. Do pessoal da psicanálise, principalmente. E chegou num ponto em
que leram o roteiro, viram ali a carta do Suicide
Song, viram todo o desenrolar das cenas com o fórum virtual. Acessaram e
ouviram aquele voice over que tem lá
no final do filme, que é a carta que ele deixa para os pais. Eu estava ainda
com a necessidade de cortar alguma coisa do filme. Meu pensamento era: “Será
que a gente não está indo muito a fundo?” E os profissionais com que eu
conversei me convenceram. Eu estava numa mesa com psicanalistas e eles diziam:
"Cara, quer saber de uma coisa, para de ter medo. Se você começar a cortar
esse filme, não vai restar nada. Ele vai perder a força e como ele está, ele é
um filme sobre um assunto urgente e nós precisamos falar sobre esse assunto. Você
está dando essa argumentação para teu espectador. Para de ter medo, vai e faz o
filme como está aqui no papel. E ele vai cumprir o seu propósito.” Depois que o
filme foi finalizado, nós fizemos uma cabine com esses mesmos psicanalistas, e
tinham pessoas de outras áreas da saúde mental, não só psicanalistas, e nós
dissemos: "gente, esse é o filme. Vamos assistir, mas a gente não ele não
entrou ainda nas salas de cinema, qualquer coisa assim que vocês acharem que é
de bom tom alterar, ainda é possível. Não é o ideal, mas temos tempo." Então,
chegou a um momento em que eu tive que optar por ter recursos e usar situações
que eu tivesse embasamento para dizer: "Olha, isso aqui está muito perto
do que aconteceu na realidade."
No filme, qual cena representa esse
momento?
Quando
eu tive que mostrá-lo acessando o fórum. Quando eu que tive usar as conversas
originais do fórum. Porque eu entrei no fórum. Ele estava ainda on line na
época ainda. Eu fui rastrear a vida do Vinicius. A crueldade, a patologia do
que aconteceu, ela está ali. E não adianta você tratar de um tema desses de uma
maneira assim, passando a mão na cabeça das pessoas. Você tem que mostrar que
não é uma coisa bacana. Que não é uma coisa legal. Eu tinha que mostrar que
aquele garoto estava vivendo como bem diz a frase do terapeuta dele: "Ele
estava vivendo uma crise adolescente em seu estado mais bruto". E uma
crise, ela não é exclusividade de adolescentes. Quem de nós não viveu? E quem
não viveu ainda vai viver. A gente passa por crises ao longo da vida. Mas
aquela ia passar. Ele, sozinho, não cometeria o suicídio, como não cometeu das
outras vezes em que teve crises. O que aconteceu naquele momento foi que, na
hora mais fragilizada, em que ele precisava de um abraço amigo, ele recebeu um
empurrão. Então, imagina, isso tem um conteúdo textual fortíssimo. Se eu não
trago isso para um filme que tem essa temática, eu seria irresponsável de uma
maneira vexatória. Nós tivemos que fazer escolhas e sempre com o cuidado de
nunca, em nenhum momento, sermos sensacionalistas. Porque o filme pode ser
qualquer coisa, mas sensacionalista ele não é.
É perceptível essa postura não panfletária
do filme, de fato. E esse cuidado encontra seu tom justamente na tragicidade da
história.
Em
primeiro lugar, é exatamente isso. Essa palavra. Panfletário. Nunca passou pela
minha cabeça fazer um filme panfletário. Muito menos um filme de autoajuda.
Então, a partir do momento em que você já se afasta disso, já começa a
funcionar. O nosso filme nunca trouxe essa questão do panfletário. A partir do
momento em que eu começasse, por exemplo, a ser panfletário no material de
comunicação, eu perderia o filme. Eu transformaria em uma outra coisa. O nosso
material de imprensa é basicamente todo trabalhado em cima da questão do artista
e do garoto. Da sua obra. Isso mesmo não tendo como você dissociar uma coisa da
outra. Não tem como você fazer um filme sobre o artista e não falar do suicida
e vice versa. É uma questão do seguinte: o que você vai colocar em primeiro
lugar? Qual é o teu primeiro plano no filme? Tanto é que no primeiro minuto, eu
digo que aquele é um filme de ficção sobre um garoto de 16 anos que se matou
tendo seu suicídio assistido e acompanhado por um fórum virtual de suicidas.
Ponto final. Depois eu tenho 88 minutos de filme, onde eu me proponho a fazer o
que? Exatamente uma imersão no universo desse garoto, descobrir quem ele é. É
isso. Nunca passou pela cabeça de trazer a coisa do panfletário. Há, claro, a
questão de você lidar e estar o tempo inteiro trabalhando com o tema do
suicídio. Mas ele se dá, às vezes, até no âmbito das sutilezas. Você não
esconde o jogo a partir do momento em que você não mascara e não maquia as
cenas de conteúdo muito brutal que são as aquelas cenas no fórum virtual de
suicidas. Ali está o texto integral, tirado originalmente. E, detalhe, está em
inglês também em função disso, porque foi um texto postado nesse idioma. Ali
está todo o mecanismo de como é que a vibe daquele fórum trabalha na cabeça de
alguém que está fragilizado, sabe? É basicamente isso.
Os sentimentos contrastantes de Yonlu se reflete inventivamente no poster
Em relação ao uso irresponsável da
Internet, como você entende a importância de Yonlu nessa conscientização?
O
suicídio do Vinicius é tido como o primeiro crime virtual que se tem notícia no
Brasil. Então, embora a gente fale de 2006 e nós estamos em 2018, você puxa
isso para um assunto que é extremamente atual. Nós estamos em 2018, mas
basicamente, o que você vive hoje em dia é quase como o auge ainda do uso
indiscriminado e irresponsável da internet. E eu tenho dito: o filme não coloca
em jogo a internet. Não a demoniza. E a internet, para a gente, está acima do
bem e do mal. A questão não é essa. Seria uma caretice encarar esse filme dessa
forma. Mas a gente tem que questionar sobre o conteúdo que está ali. E muito
antes do conteúdo, está quem posta esse conteúdo. Você tem que trazer não só a
reflexão sobre o tema, mas a reflexão de como é que se chegou até o fato. Se
for através disso, se for através de anônimos irresponsáveis, de postagens
irresponsáveis, dos piores conselhos na hora em que o cara precisava dos
melhores conselhos. E isso acontece hoje em dia. Acontece com a Baleia Azul,
acontece com a quantidade de estudantes nas escolas públicas que estão se
mutilando, acontece em sites que promovem anorexia, bulimia e, também, ainda em
sites que estão falando e promovendo de forma irresponsável o próprio tema do
suicídio. No filme, omo é que tudo isso vem à tona, vem à reflexão? Fora o fato
de a gente não querer nunca ser panfletário, nós nunca tivemos assim essa ideia
assim fixa de tratar aquilo de uma maneira que provoque a discussão. Tanto
é que eu digo que isso ia ser de uma pretensão absurda, ia ser um equívoco da
nossa parte. Nós tratamos o tema de um jeito que ele proporcionasse uma
reflexão. É essa expressão que eu gosto de usar, reflexão. Então, eu acredito
que sim, acredito que nós chegamos lá. Porque a reflexão é promovida. Em alguns
debates que fizemos, levantaram a questão dessa necessidade de falar da
prevenção ao suicídio. É recorrente trazerem isso nas questões após o filme. Em
um deles, lá no Largo do Batata, em SP, eu lembro que falei que nós só
estávamos ali naquele espaço discutindo isso porque o filme proporcionou essa
discussão. Então, acho que só o fato do filme proporcionar às pessoas a
possibilidade de conversar sobre o assunto, já é uma grande coisa. Porque é
isso que falta. Falta você proporcionar conversas sobre o assunto. Porque tem
outra coisa que a gente tem que ter em mente: para tratar, para encaminhar,
você tem que tratar com gente especializada. Não vai ser um diretor, não vai
ser um roteirista, uma diretora de arte, que vai fazer isso. Você tem que
encaminhar para um profissional. Mas, curioso, os próprios profissionais da
área da saúde mental dizem que o passo número 1 é você promover a
conversa. Você em que fazer a pessoa falar a respeito, sabe? E, nesse sentido,
o filme chega lá. Chega lá. E eu te digo uma coisa. Esses dias me disseram
assim: “cara, esse seu filme cumpre com um papel social muito importante.” E eu
nunca tinha visto dessa forma. Eu fiquei surpreso, até. Porque eu também acho
muito pretensioso. Mas não deixa de ser isso, também.
Eu queria voltar ao processo de aproximação
com os pais do Vinicius. Como se deu esse contato?
Nós
estabelecemos desde o início, desde 2009, uma relação de confiança e de
respeito muito grande e mútua porque, também, eles tiveram que me conhecer um
pouco para saber afinal de contas quem eu era e qual era o tipo de filme que eu
estava me propondo fazer. Eu também já tinha certo currículo em Porto Alegre.
Não foi muito difícil eles acessarem. Pessoas que já conheciam o meu trabalho,
que já me conheciam. Eu não apareci tipo como um completo desconhecido
para eles com a proposta do filme. Embora não nos conhecêssemos ainda, mas se
estabeleceu, em comum acordo, algumas coisas como, por exemplo, não trabalhar
em nenhum momento cenas sensacionalistas. Mais especificamente falando, as
cenas de toda a sequência final, que é o suicídio. Isso não deveria sob hipótese
alguma ser trabalhado de maneira sensacionalista. E foi super tranquilo, porque
essa cena, desde o primeiro tratamento, nunca foi trabalhada de forma
sensacionalista. Ela sempre foi isso que você viu. É uma insinuação. Você nem
mostra para onde ele vai. Trabalhamos com luz, com sombra. Outro ponto é que
eles tiveram acesso a todos os doze tratamentos de roteiro. Quando nós fomos
filmar, eles sabiam exatamente qual seria o filme. Inclusive, eles fizeram
comentários agregando alguns aspectos do roteiro. Cheguei, inclusive, a
convidá-los a aparecer no set de filmagens. Eles não compareceram, mas não
teria como eu não fazer o convite, por mais dolorido que fosse. Mas, sim, eles
sabiam o filme que ia ser feito. Eu apenas me resguardei com algumas coisas
contratualmente falando. Aceitava sugestões, ideias de todos que viam os
cortes, mas eu tenho um contrato com a família que o corte final do filme é
meu. Eu não quis perder essa rédea da coisa. Afinal de contas, ele é um filme
autoral e tenho que botar minha marca autoral. Eu, como diretor, tenho um
estilo e eu quero que o filme tenha esse estilo. Por mais que seja um pouco
complicado falar do meu estilo, porque eu consigo, acho eu, me reinventar um
pouco a cada trabalho, mas eu tenho que garantir isso, essa coisa do corte
final ser meu. Até porque eu sou um dos produtores. Então, eu quis garantir
isso. E quando o filme ficou pronto, nós nos reunimos e eu passei cópias do
filme para eles, mas nós não criamos aquela situação de expectativa, até porque
eles sabiam qual era o filme que havia sido filmado. E eu te digo, o décimo
segundo roteiro, que foi o filmado, no produto final, no corte final, tem
coisas que estão muito mais sutis no filme finalizado do que no roteiro. Então,
eu também sabia que o filme trouxe menos coisas do que o roteiro tinha, digamos
assim. Quando nós entregamos as cópias do filme para eles, eu falei que ia ter
uma estreia no Festival do Rio do ano passado, mas não queria ter que criar uma
situação desconfortável de todos verem o filme. Eu queria que eles seguissem o
próprio tempo deles. Quando estivessem confortáveis, a cópia estava com eles. Sempre
foi uma relação de respeito e eu tinha que respeitar essa família. Se você não
respeitava a família, você não tinha o filme. E esse respeito eu levei assim. Como
você viu o filme, você sabe, o personagem do pai é o personagem do pai. Não tem
um nome, sabe? O personagem da mãe a mesma coisa. Também, nas entrevistas, não
citamos o nome do pai e da mãe do Vinicius. Não tem motivo. Não colabora em
nada. Isso seria maldoso demais. Eu estou te falando isso porque, cara, essa
família foi massacrada. Nos primeiros anos após o acontecido, era basicamente
uma vida pública. Você entra na web, tem nome, sobrenome, profissão. É uma
coisa absurda o que fizeram com eles. Até por uma questão ética minha e
de todo mundo que se envolveu no projeto, a gente quis passar longe
disso. Uma questão ética, uma questão humana, de você se colocar no lugar dos
outros, se colocar no lugar deles e dar certeza para essas pessoas de que o
assunto estava sendo tratado com responsabilidade o tempo inteiro. Porque se
você não cria esse ambiente favorável, você não tem o filme. Eu, sem a
autorização deles, não tinha o filme.
É interessante perceber, também, que o
filme ultrapassa a barreira do regional, sendo esta uma obra gaúcha. O diálogo
é pleno com qualquer público.
Esse coisa
de romper a barreira regional é algo fantástico para mim. Você, por exemplo,
está na Bahia, um estado onde o regional, graças a Deus, é muito forte. Assim
como é aqui, em Porto Alegre. E ok que você tenha os filmes regionais. É bom
que eles existam, claro. Aqui no Rio Grande do Sul, o que mais se fez foi
filmes sobre gaúchos e suas peculiaridades e excentricidades. Mas, quando você
consegue fazer um filme aqui que dialogue, universalmente falando, você rompe a
barreira do regional, isso é fantástico, cara. Isso é fantástico. O Brasil
precisa disso. Não tenho absolutamente nada contra os filmes que são feitos no
eixo Rio-SP, que tem muita coisa boa, mas, cara, pega o cinema de Recife, por
exemplo. Eu sou absolutamente fã do cinema que se faz ali, com filmes que são
regionais, não tem como você dizer que não são regionais. Você tem o forte
sotaque, você tem coisas da cidade, coisas do estado. Mas você tem um roteiro
que trata uma temática de uma maneira universal. Esse é o grande jogo do
criador, né? Esse é o grande jogo. E o cinema tem que fazer isso. Ele tem
romper essas barreiras de fronteira. Não adianta você ficar fazendo filmezinho
para o seu próprio umbigo, sabe? Para sua turminha de amigos. Você tem que
ir para o mundo com o trabalho. É mais ou menos isso.
(Bahia, 2017) Direção: Edgard Navarro. Com Everaldo Pontes, Rita Carelli, Bertrand Duarte, Fábio Vidal, Ramon Vane.
O conflito de fé e racionalidade como norte
Por João Paulo Barreto
A contradição entre fé, religiosidade e razão tem sido temas
recorrentes na filmografia recente de Edgard Navarro, um dos diretores da
geração Super8, na Bahia dos anos 1980, quando realizou o marco SuperOutro, média metragem que
demonstrava uma Salvador distante da fantasia do cartão postal. Junto a Pola
Ribeiro, Fernando Belens e José Araripe, Navarro moldou um formato de cinema no
estado do nordeste, algo que, em um período de escassez na produção, marcou
época.
Revisitando suas memórias afetivas em Eu me Lembro, longa de 2005 bastante premiado no Festival de
Brasília, o diretor reencontrou sua infância e reviveu uma capital baiana
perdida, mas ainda firme em um imaginário nostálgico. Já em 2011, com O Homem que Não Dormia, Navarro trouxe uma discussão mais
idiossincrática, aprofundada, transparecendo seus conflitos internos e
dividindo-os com o público. À época, tratou-se de um filme de difícil acesso,
mas, uma vez visitado, acompanhava o espectador por bastante tempo. Lá, a ideia
do choque entre fé, razão, tentações e religiosidade já havia sido abordada
profundamente.
Em seu novo longa, Abaixo
a Gravidade, exibido na Mostra CineBH 2018,desde o título, um
questionamento a essa condição estanque de regras e, por consequência, à ideia
do conflito entre o racional e a crença se faz presente. Na figura de Bené
(Everaldo Pontes), um idoso que optou por uma vida bucólica e simples no Vale
do Capão, a figura construída da fé e do otimismo que, aos poucos, vai se
perdendo perante as condições adversas que sua frágil saúde começa a
demonstrar. Na fuga para a capital, Salvador, um reencontro com o passado e o
embate com a lucidez de Galego, morador de rua cujo ceticismo fascina. Na pele
de Ramon Vane, falecido recentemente e a quem o filme é dedicado, e que já
havia dado vida ao Prafrente Brasil, o militar reformado e entregue ao próprio
caos de O Homem que Não Dormia, encontra-se
um sopro de lucidez. São dele as melhores observações do roteiro, acerca da fé
na humanidade e no desregrar para se encontrar um norte. Perante a sua própria
desgraça, abraçar a miséria e esquecer-se de qualquer traço de conforto é o que
lhe resta.
Bené e a entre às tentações
Navarro, ao inserir uma sagaz imagem de uma estátua do
Pensador, de Rodin, sendo levada por um helicóptero nos ares soteropolitanos,
cria uma rima visual pertinente ainda no mesmo argumento de crença vs
racionalidade. Ao nos fazer pensar na icônica imagem de La Dolce Vita, clássico de Fellini, em cuja abertura vê-se uma
estátua de Jesus Cristo ser, também, carregada por uma aeronave, o cineasta
baiano acerta nesse diálogo que seu filme oferece aos mais atentos. Entre Bené e Galego, essa ideia de crença em
uma força maior a nos confortar e o total niilismo e pessimismo por parte do
segundo, move aquela relação. Mas, apesar de um pragmatismo nos aproximar mais
da visão do morador de rua, nos perguntamos a que outro argumento pode se
apoiar Bené, quando até mesmo um tratamento médico lhe é impossível e, na
figura de Maselfe, interpretado por Bertrand Duarte, parceiro habitual do
diretor, encontramos a mesma doença, mas um total apego não à própria vida, mas
à vaidade que o move. Maselfe, na verdade, é o que teria se tornado Bené, se
não tivesse optado por uma vida sem a reclusão bucólica que o levou para a
morada no campo. Quando é atingido por uma saraivada de merda, em um reencontro
com SuperOutro, o personagem de Maselfe
é colocado justamente onde sua posição materialista e vaidosa o disfarça.
Naquele momento, seu verdadeiro eu lhe é apresentado.
Abaixo a Gravidade, ao
seguir a ideia transgressora e questionadora de seu realizador, acerta ao criar
justamente esse diálogo. Mesmo que, ao final, venha a tender à muleta da fé
perante o ceticismo, a obra deixa claro ser aquela a única opção de lucidez e
equilíbrio que seu protagonista possui. O desprendimento e niilismo de Galego
são para poucos. No orgasmo, Bené admite a existência de um deus. Para nós,
claro, a escolha de quem é essa entidade fica a critério próprio. O que o filme
nos leva a concluir reside justamente nessa idiossincrasia básica da escolha no
que se prefere acreditar. Pode ser em ervas para curar câncer; pode ser em voar
com asas feitas de sucata (em uma bela referência a Brewster McCloud, clássico de Robert Altman) ou pode ser na vaidade
como forma se salvação, como vemos Maselfe (em um nome mais que apropriado)
crer piamente. Em qualquer uma das opções, o quebrar de regras segue como
obrigatório.
Mesmo que a principal dela, aqui, seja a da irrevogável
gravidade. Relembrando o grito de Bertrand Duarte em SuperOutro, e repetido em O Homem que Não Dormia, essa vontade de
quebrá-la segue como que por insistência. Ainda bem.