domingo, 26 de maio de 2019

Amanda


O enfrentar de uma nova realidade de dor


Singelo em sua construção, drama francês Amanda traz doloroso 
mergulho na vida pós trauma ligado ao terrorismo

Por João Paulo Barreto

Com os recentes ataques terroristas ocorridos em Paris durante os últimos anos, como o assassinato de funcionários do satírico jornal Charlie Hebdo em janeiro de 2015 e o disparar de tiros contra a plateia de um concerto de rock que acontecia na popular casa de shows Bataclan, diversas obras, de perfil documental ou ficcional, tentaram levar às telas um olhar acerca do que é viver na França diante de um clima tão grande de insegurança, bem como lançar foco quase documental a registros de tentativas de ataques.

Dois exemplos dessa abordagem são os filmes Made in France, que aborda em um formato de thriller a história de um jornalista infiltrado em uma célula da Al Qaeda em Paris; e 15h17: Trem para Paris, eficiente trabalho de Clint Eastwood ao dramatizar passo a passo (e com as testemunhas reais) o impedimento de um atirador por três jovens dentro de um trem que seguia de Amsterdam para Paris, também em 2015.

Amanda, filme co-escrito e dirigido por Mikhaël Hers , diferente dos citados, foca na realidade francesa em uma rotina que lida com o trauma oriundo do terror a partir de uma perspectiva mais intimista, percorrendo um caminho da análise daquele sofrimento sob o viés daqueles que sobrevivem aos ataques. É o tipo de obra que acerta justamente por permitir ao espectador adentrar em um drama que, mesmo ficcional, lhe dá uma dimensão do impacto da perda de um ente querido para as consequências do terrorismo.

Sobrinha e tio em uma nova rotina após o trágico 

No papel do protagonista David, Vincent Lacoste, popular ator francês que carecia de carisma em comédias chinfrins (aqui, surpreendendo em sua abordagem dramática de dor pela perda da irmã), precisa se recompor para poder criar a sobrinha órfã, a Amanda do título. Inicialmente reservado em sua proximidade com a irmã, David, que leva a vida em diversos empregos, tem em sua perspectiva uma responsabilidade com a qual não esperava ter que lidar. Fugindo de um esperado clichê, o filme triunfa em não manter seu foco exclusivo na construção dos laços afetivos que não existiam entre tio e sobrinha, preferindo, em seu desenvolvimento, abordar a adaptação mental do rapaz a sua nova condição para, somente em seu último ato, desconstruir a pequena Amanda emocionalmente diante da percepção da perda de sua mãe.

SÍMBOLOS DA DOR

O filme é repleto de momentos simbólicos dessa condição. O principal deles cativa por remeter a garotinha a uma conversa e dança que teve com a mãe quando a mesma lhe fala acerca de Elvis Presley. Uma pista cuja recompensa surge em um belo desfecho para a trama, quando a constatação da maturidade atinge em cheio a pequenina Amanda perante a dor que ela tenta ignorar, mas que acaba por suplantá-la. É justamente quando a jovem Isaure Multrier, na pele de Amanda, surpreende em um tocante despertar diante da noção do peso daquele momento em sua vida.

Do mesmo modo, em uma perspectiva da dor da perda que sai do pessoal para uma constatação mais ampla do mal causado pela intolerância terrorista, David observa duas amigas que estavam no local do ataque deixar o hospital. Uma delas pede-lhe o celular emprestado e o rapaz observa a menina ferida enquanto espera. Em um silêncio simbólico, o filme dá ao espectador um meio de perceber como a perda e a dor atingem a todos de maneira igual. Quantos dramas idênticos não estão sendo vividos em decorrência de um mesmo acontecimento? O aprofundamento dessa reflexão é um dos prós do longa.

Utilizando a força de encarar a nova realidade como meio de readaptação, Amanda se torna uma obra acerca não somente da perda na vida de dois personagens centrais.  Torna-se uma forma de analisar o luto e o abraçar da dor como meio de superação.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 26/05/2017

domingo, 19 de maio de 2019

Kardec


Codificando o espiritismo


Baseada na biografia do seu principal teórico, Kardec traz uma dicotomia entre fé e razão, mas também permite analisar o Cinema como meio de doutrinação

Por João Paulo Barreto

É curioso observar o cinema como veículo de evangelização. Os exemplos são diversos. Ao divulgar sua sádica e visceral abordagem dos últimos passos de Jesus em A Paixão de Cristo, por exemplo, o cineasta Mel Gibson disse, em entrevista concedida em 2004, que sua intenção com o filme era justamente a de espalhar o evangelho católico.

Corta para 2018 e Nada a Perder, cinebiografia de Edir Macedo, pastor evangélico e dono da Igreja Universal do Reino de Deus, chega aos cinemas em uma estratégia de lançamento até então inédita de manter-se em cartaz através da compra de ingressos em sua totalidade para que os cinemas mantivessem o longa disponível independente de haver público presente ou não nas salas. O filme contava até com uma pregação evangélica real feita pelo próprio pastor durante a sua projeção.

Entre uma abordagem religiosa e outra, nos casos citados, a católica e a evangélica, o espiritismo, que já havia tido, nos anos 1990, sua inserção midiática na TV através da Rede Globo e a novela A Viagem, trouxe em 2008 uma de suas primeiras incursões cinematográficas com a biografia do médico brasileiro Adolfo Bezerra de Menezes, um dos expoentes da doutrina. Seguiu-se com outra cinebiografia, a de Chico Xavier, maior símbolo da doutrina no país, passando por uma continuação intitulada As Mães de Chico Xavier e, finalmente, chegando a Nosso Lar, obra que abordava a ideia do paraíso pós- morte dentro da doutrina codificada pelo professor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, também conhecido como Allan Kardec, durante o século XIX, na França. Dirigida por Wagner de Assis, a produção trazia os preceitos espíritas acerca da vida após o desencarnar (para usar um termo específico da doutrina) na trajetória de seu protagonista, André Luiz, um homem que, ao falecer, acorda ainda experimentando sensações atreladas à vida. Sucesso de público, a obra viria a popularizar os ensinamentos da doutrina espírita através do cinema, o que nos traz à Kardec, novo filme do mesmo Wagner de Assis que, baseado na biografia escrita por Marcel Souto Maior, foca na origem do espiritismo através da história do seu maior teórico.

Conflito entre religiões 

EMBATE RELIGIOSO

Apenas no inicio deste texto, foi possível citar cinco filmes nacionais e um estrangeiro deste século com um recorte religioso no sentido de oferecer, a seguidores ou não, uma visão dos preceitos que defendem através de uma mídia de amplo alcance, como é o caso do cinema. Convém observar que todas as religiões citadas são de fundação judaico-cristã, preconizadas em sua maioria por uma classe que, hoje em dia e no Brasil principalmente, representa um domínio político e social em constante ascensão. Por essa razão, é pertinente observar que são bem raros exemplos de filmes que abordem a religião como símbolo de resistência, seja contra a influência cristã e eurocêntrica ou contra formas com origens colonizadoras em meios de criação de dogmas. Vale citar apenas duas, no caso Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro, ou filmes dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, como O Amuleto de Ogum, ambas abordando a religião de matriz africana como uma resistência a séculos de influência catequizadora.

Sendo assim, foi com curiosidade que observei em determinado momento de Kardec – o filme um embate entre o professor francês e um padre católico dentro de uma cela de prisão como um denotar exato da principal premissa de análise tanto do filme quanto dessa abordagem crítica. Na cena em questão, o representante católico afirma que os dogmas de sua religião hão de prevalecer fazendo cair no esquecimento a doutrina estudada por Léon Denizard.  Em sua réplica, o professor aposentado diz que encontrará o padre no pós morte, argumento ironizado pelo católico. Tal discussão simboliza de forma eficiente a ideia da religião como uma busca do domínio do pensamento das massas, uma vez que ambos crêem em suas verdades e não querem testemunhar a perda de força que estas verdades venham a possuir perante seus seguidores. Trata-se de um embate pelo o que eles acreditam como sendo definitivo no pensamento civilizado e perder fiéis não é um bom caminho para nenhum dos dois casos.

As mesas flutuantes, plot do roteiro

CIÊNCIA E FÉ

Vale observar, aqui, que é inegável uma tendência do cinema de cunho religioso em seguir uma linha de evangelização, raramente de questionamento. Por isso, filmes como A Última Tentação de Cristo geram incômodos em pilares religiosos. E esse fato torna o embate na cena em questão ainda mais curioso de se observar. Porém, ali, trata-se não de um questionamento da religião em si, mas de uma troca de farpas diante de ideias contrastantes, sendo que, na parte católica do embate, reside basicamente um medo da perda de território na ascensão de uma doutrina que, inclusive, adapta um mote católico de forma a lhe dar mais sentido. É fora da caridade, e não da igreja, que não há salvação. Nada representa melhor a voracidade católica do que o medo de ser contrastada.

Porém, em Kardec, perceber o personagem de Léon Denizard como alguém que deixa para trás seu pragmatismo racional tão facilmente ao se tornar espírita é algo que incomoda, mesmo observando o homem dentro de uma questão idiossincrática (e real) que o moveu em direção à codificação daquele estudo. Em um filme que se inicia com o enquadramento de uma mesa a flutuar e usa isso como na motivação do protagonista, esse incômodo se torna ainda mais palpável.

Para Wagner de Assis, aconteceu o contrário. Uma união entre fé e razão. “Para mim, a história é a desse homem que se permite ver o novo. Ele cria um método de pesquisa que está sintetizado no filme, algo vai trazendo para ele um processo de reconhecimento de que é possível juntar fé e razão. Isso na trajetória pessoal dele é algo quase de um arquétipo, meio de herói, mesmo. Ele vai lá para se desconstruir, e, depois, se reconstruir. Não busquei com que isso fosse facilitado. O fenômeno foi encarado do ponto de vista racional”, explica o cineasta.

Ainda sobre a função do cinema como meio de propagação religiosa, Wagner de Assis é categórico ao discordar desse perfil das obras dirigidas por ele, bem como da ideia de perda da razão em seu personagem principal em Kardec. “Não espero nada em relação ao filme além do fato de que as pessoas possam reconhecer ali um ser humano por trás de tudo. Nada mais”, finaliza o realizador.

* Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dua 19/05/2019


quinta-feira, 16 de maio de 2019

John Wick 3 - Parabellum


Ação elevada a um novo patamar de qualidade



Desafiando-se na criação de impactantes sequências, saga John Wick impressiona em sua terceira parte

Por João Paulo Barreto


O Hotel Continental como solo inviolável quanto se trata de assassinatos em suas dependências. Dívidas de sangue registradas como promissórias lavradas, registradas e cobradas literalmente com sangue. Uma moeda interna para uso exclusivo entre aqueles que estão dentro daquele grupo. Equipes de limpeza atuando como suporte para os momentos em que as situações alcançam patamares inevitáveis de violência. Braços da Alta Cúpula que se alastram em âmbito mundial e acima de diversos grupos notórios por sua violência. Regras rígidas e punições severas para aqueles que as violarem. Estrutura burocrática, porém eficiente, de organização. No meio disso tudo, um dos seus membros mais competentes, um homem atormentado que conseguiu enxergar um novo horizonte ao lado da sua amada, mas a perdeu para uma doença terminal. Durante seu luto, o carro preferido é roubado por membros da máfia russa e, se já não fosse trágico o suficiente, seu filhote de beagle, último presente que sua esposa lhe deixou, é assassinado a sangue frio em sua frente. A saga de John Wick possui todos os elementos para uma violenta franquia de sucesso.

Desde seu primeiro filme, de 2014, quando fomos apresentados à máquina de matar vivida por Keanu Reeves, as possibilidades que o diretor e roteirista Chad Stahelski tinha em mãos para o cinema de ação era grandioso. O ex-dublê, que trabalhara em filmes como O Corvo e Matrix (onde substituiu o próprio Reeves), conhecia bem o modo como as artes marciais, atreladas a cenas de perseguições repletas tiros e pancadaria, possuem potencial para criação de um filme cuja violência estilizada poderia casar com uma história de vingança e retaliação. Assim, com o primeiro John Wick (De Volta ao Jogo, no Brasil), tivemos um aperitivo de algo que alcançaria patamares impressionantes de ação e velocidade narrativa em suas duas continuações: Capítulo 2, de 2017, e neste Parabellum, que chega agora às salas de cinema.

Wick e sua fuga em um cavalo

PARA A GUERRA

A guerra do título em latim define bem o que o espectador tem pela frente nos 130 minutos de projeção. Mas, para além da plasticidade de suas bem elaboradas sequências, é na criação de seu universo interno que reside a principal atração de John Wick. Isso, claro, sem deixar de lado todas as violentas cenas que remetem a clássicos orientais, como os do diretor Seijun Suzuki (A Juventude da Besta e Tóquio Violenta, para citar apenas dois), e às performances de Sonny Chiba, lendário astro japonês das artes marciais.

Neste terceiro capítulo, a intensidade como suas sequências de ação são apresentadas denota a vontade de impressionar com a qual Stahelski planejou cada uma delas. Porém, essa constatação não é colocada como uma diminuição ou manipulação do espectador diante de um longa com esse propósito. Capítulo 3 - Parabellum funciona justamente por servir a esse apelo de escape exigido por seu público alvo. Assim, o filme, que se apresenta em uma contagem regressiva para o início da caça a um banido John Wick, a pagar o preço pelos atos cometidos na segunda parte, aproveita-se de modo exemplar desta premissa de perseguição para inserir o anti-herói em constante movimento de fuga. Seja utilizando um livro ou um lápis (item que já alimentava a lenda por trás do matador “bicho-papão”) como objetos mortais, passando por uma brutal e eletrizante briga com facas, até chegar a dois de seus melhores momentos, quando vemos Wick montando um cavalo enquanto luta contra motociclistas em Manhattan ou quando pilota ele mesmo uma moto durante o combate com perseguidores munidos de espadas, a obra se confirma exatamente como uma série de fanservices no melhor sentido que a expressão, definida como a inserção de situações feitas para agradar apreciadores, possui. Um filme de ação na sua mais exata definição, afinal de contas.

AÇÃO E CONTEÚDO

Mas, para além de um trabalho com tal definição, John Wick – Parabellum une bem a sua proposta explosiva e violenta de cenas – cuja montagem, mesmo frenética, consegue captar cada momento em seu desenvolvimento – com um gradativo desvendar da grandiosa rede representada organização Alta Cúpula. 

Reeves e Anjelica Huston: dívidas sendo cobradas

Na figura da juíza vivida por Asia Kate Dillon, temos um breve vislumbre do quão grande e organizado é aquele grupo e como isso ainda pode ser aproveitado nessa franquia. Do mesmo modo, o longa nos apresenta às origens de seu protagonista, elemento narrativo ainda a ser explorado a fundo. Ter Anjelica Huston como parte de tal subtrama envolvendo John Wick é algo que anima ainda mais, inclusive.
Apesar dos sinais de que caminharia para uma conclusão encerrando a saga John Wick como uma trilogia, Capítulo 3 traz em seu desfecho um gancho para uma continuação que esperamos não exaurir todo seu frescor. No entanto, com o impacto gerado como peça de entretenimento dentro de sua proposta de ação frenética, e se valendo de uma premissa criativa que insere um universo organizacional e criminoso que pode ser aproveitado narrativamente de forma singular, pensar nas possibilidades que mais um filme para a franquia pode trazer é algo bastante animador.

Com seu ápice explosivo acontecendo dentro do Hotel Continental (momento no qual um impressionante design de som se destaca) em um ato final que remete à emblemática cena no Museu de Arte Moderna de Nova York vista no segundo filme, a vontade de testemunhar mais daquele universo ficcional Wickiano supera, entretanto, a necessidade atual de um grand finale. Mas não vamos abusar da boa vontade do cinéfilo fã do frenético e explosivo gênero de ação que cresceu com Duro de Matar e McClane, outro John que também dá trabalho para morrer e que, aqui, ganhou um representante à altura.  


*Crítica originalmente publicada no Jornal A Tarde, dia 16/05/2019

sábado, 11 de maio de 2019

O Tradutor


A tradução da dor e a incapacidade de saná-la

Em O Tradutor, Rodrigo Santoro cria com eficiência a desconstrução física e emocional de um homem que perdeu seu pragmatismo

Por João Paulo Barreto

A desconstrução da vida do professor de literatura russa Manuel Barriuso Andino é o mote de O Tradutor. Malin, como é chamado, é cubano e leciona acerca dos livros russos na Universidade de Havana durante a segunda metade dos anos 1980. Sua desconstrução, aqui, rima não com um arrasar de sua trajetória, mas, sim, com um reconhecimento de uma nova maneira de encarar a própria existência como pessoa e, por consequência, como profissional. É ao perder tudo de material que considerava importante e perceber que pode usar sua competência em prol de outros, que o protagonista enxerga o que realmente tem valor em sua trajetória.

Vivido por um inspirado Rodrigo Santoro, o homem trabalha na Cuba governada por Fidel Castro e que conta com o suporte de Mikhail Gorbachev, então presidente soviético. Malin tem uma vida boa. Leciona uma literatura em cujo idioma é fluente, tem um trabalho fixo na universidade e possui benefícios empregatícios que lhe permitem gerar conforto para sua família, composta por esposa e filho pequeno, no período que antecede a crise econômica que se daria na ilha com a perda dos investimentos estrangeiros, fato oriundo do colapso da União Soviética que se extinguiria poucos anos depois, na queda do Muro de Berlim.

Malin e sua frustração ao perceber-se inútil diante da fatalidade

CRISE EMOCIONAL

Malin, após perder o emprego de professor, é, então, convocado para trabalhar como tradutor em um hospital que recebe crianças vitimas do desastre nuclear de Chernobyl. E é neste ponto que sua trajetória tem uma guinada. É aqui que a desconstrução de seu personagem se inicia. A produção, dirigida pelos irmãos Rodrigo e Sebastián Barriuso, filhos do Malin real que inspirou o filme, insere esse novo momento da vida do tradutor como um catalisador para suas emoções. Ao perder tudo, sua rotina, sua forma pragmática de encarar novos desafios, seu status acadêmico, suas pretensões profissionais, Malin passa a entender como a fugacidade de tudo o que lhe circundava perde sentido diante da fragilidade daquelas crianças vitimas do câncer causado pela irresponsabilidade humana. E o filme acerta em cheio ao construir aquele aspecto físico da perda em sua desoladora ambientação.

Com um inicio definindo bem o equilíbrio financeiro do jovem professor, que abastece o tanque do carro e faz compras no supermercado com vales oferecidos pelo seu trabalho, a obra gradativamente vai mudando sua atmosfera ao tornar palpável a crise que se alastra pelo país. Ponto para a apurada direção de arte, que, de modo simples, mas eficiente, acerta ao recriar o caos econômico representado por prateleiras vazias em supermercados, filas para abastecimento e o desespero de pessoas ao notar o confisco econômico de dinheiro em poupanças. O reflexo disso é perceptível nas obrigatórias mudanças de hábitos de Malin, que passa a se locomover de bicicleta por não mais conseguir colocar combustível no carro.

Esconder na fuga literária infantil a dor do câncer

FUGA LÚDICA

Mas é no aspecto psicológico que O Tradutor acerta prioritariamente a construção de seu personagem principal. Ao lidar com a dor real das crianças internadas, suas perdas se tornam ínfimas. Ao ser acusado pela esposa de negligenciar a família em detrimento do trabalho, tudo o que Malin faz é se dedicar com ainda mais força ao entendimento da dor daquelas pessoas. Na leitura de contos cubanos infantis, uma fuga efêmera e lúdica se dá tanto para os pequeninos quanto para o atormentado tradutor, que precisa comunicar em russo as notícias ruins referentes ao estado de saúde dos pacientes, algo que o afeta profundamente, levando-o ao desespero.

Ao se agarrar ao aspecto e possibilidades de sonho que suas histórias concedem à vida de pesadelos daquelas crianças, Malin abre mão até mesmo de sua tese de doutorado, quando, diante da escassez de papel em cuba, utiliza o verso em branco das páginas de seu trabalho acadêmico para que as crianças possam desenhar suas fugas em direção a algo que possa remeter minimamente a uma infância.
Rodrigo Santoro traz para sua interpretação de Malin uma contida expressão que condiz com seu perfil de intelectual acadêmico, que analisa fatos antes de se deixar levar pelo emocional. Essa acertada decisão de, em modo gradativo, inserir fisicamente o colapso mental de seu personagem, permite ao espectador perceber como o peso daquele contato afeta o homem em sua condição humana, sendo a necessidade básica dessa condição o principal ponto de reflexão da obra.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 11/05/2019



quarta-feira, 8 de maio de 2019

Cemitério Maldito


A banalidade do luto no novo Cemitério Maldito  



Carente de construção dramática em sua premissa de mesclar dor, horror e loucura, 
versão 2019 para clássico de Stephen King decepciona

Por João Paulo Barreto

Em 1983, o escritor Stephen King lançou o livro Pet Sematary, um romance de terror que se revelou em um brutal estudo acerca do luto e suas consequências no ser humano. Brutal tanto em aspectos emocionais quanto físicos. Ao se valer de uma sufocante atmosfera do horror, King criou uma obra que aborda o modo como a dor da perda pode levar ao frenesi da loucura. Seus personagens caminhavam por esse limiar que o autor ilustrou de modo perfeito em uma análise que levava o leitor através de um universo no qual o macabro andava de mãos dadas com a fé religiosa. Com suas citações que vão do evangelho cristão a Ramones, banda de punk rock que, inclusive, viria a homenageá-lo, o livro do escritor estadunidense natural do Maine, estado que sempre serviu como local geográfico para suas histórias, desenhou uma perfeita análise do modo como perder um ente querido pode ser um fato a alterar existências de forma definitiva.

Seis anos depois, em 1989, com um roteiro escrito pelo próprio Stephen King, a diretora Mary Lambert conseguiu alcançar uma poderosa adaptação que priorizou a característica sanguinolenta, marca slasher comum a diversos filmes do estilo, além de contar com eficientes atores para os papéis principais. Tais aspectos tornaram a versão cinematográfica Cemitério Maldito um marco exemplar em sua ambientação soturna na recriação tanto do cemitério de animais quanto o indígena. Apesar dos sustos fáceis que envelheceram tão mal (rever o filme atualmente incomoda um pouco), a obra vista hoje ainda consegue ser impecável em sua montagem (a cena do atropelamento é um primor) e nos toques de humor tragicômico representado pela figura fantasmagórica de Victor Pascow. Lembrando desses aspectos no original de Lambert, além de seu final desolador em sua última e macabra cena, revisitar a mesma história na sua nova adaptação de 2019, desanima. Obviamente, não é prioritário se valer de comparações para avaliar a versão século XXI para a trama, mas, mesmo para o espectador não familiarizado com as fontes originais do filme, torna-se perceptível a fragilidade e ausência de personalidade no longa estrelado por Jason Clarke e John Lithgow. 

O médico Louis Creed encontra o sobrenatural que desafia sua não crença

MUDANÇAS SEM IMPACTO

Primeiramente, convém deixar claro que as mudanças no material original não se justificam em seu apelo dramático. Na premissa de se utilizar a infância como objeto de terror, a obra até acerta em seu começo, quando vemos um grupo de crianças usando máscaras de animais durante o enterro de um bicho de estimação. Ali, a atmosfera de terror é palpável justamente por inserir uma inocência simbólica em um momento de dor. Uma pena que dure pouco. Logo, percebemos a escolha de mudar o protagonismo de um de seus personagens centrais, o bebê Gage Creed, dando, assim, um destaque maior para a presença angelical e inocente de Ellie, a irmã mais velha do garotinho atropelado por um caminhão na obra literária, definitivamente uma decisão não acertada. Na verdade, torna-se algo que denota a preguiça dos diretores em não quererem trabalhar a atuação de uma criança menor.

Além disso, é perceptível que a mudança acontece para se aproveitar do filão de filmes de terror que têm na presença infantil e feminina (geralmente com o rosto encoberto por longos cabelos) uma muleta na pretensão de se causar medo, algo que cai no lugar comum e clichê sem qualquer impacto como forma de assustar. E, aqui, justamente pela interação forçada entre mortos e vivos, algo que retira toda a simbologia macabra que o livro de King trazia, esse aspecto de mistério no horror se perde. Uma vez que, em sua trama original, a ideia de trazer de volta à vida cadáveres enterrados em um cemitério indígena já era suficiente para se esperar que tais pessoas não voltariam racionais, mas, sim, bestiais (algo muito bem aproveitado na adaptação de trinta anos atrás), o roteiro dessa nova versão descarta de maneira precipitada um aspecto central na história.

Filme inicia bem em sua ambientação, mas se perde totalmente em seguida

VERSÃO OPACA

Junto a isso, o não aproveitamento da presença do personagem Victor Pascow, aqui relegado a apenas uma breve aparição fantasmagórica descartável tanto como figura a acrescentar algo que leve o roteiro adiante, como no aspecto aterrorizante que seu corpo destruído em um atropelamento poderia trazer a um, digamos, “filme de terror”, resume bem a fragilidade de sua construção. Simbolizar suas aparições com luzes a piscar também não é algo que prime pela originalidade em sua ambientação, convém colocar.

Ao final, a percepção do espectador atento é de que essa nova versão de Cemitério Maldito carece de humanidade e entendimento do que é a dor da perda, algo brilhantemente alcançado pelo original. Talvez por não conseguir transmitir essa dor através de seu elenco, o filme de 2019 acaba sendo uma versão fria e opaca de uma história cujo potencial é palpável. Em sua não alcançada ideia de transformar luto em insanidade, o longa se perde em uma plasticidade que traria resultados bem mais eficientes se a obra se rendesse ao horror que sua proposta apenas pincela. Às vezes, a morte é melhor. A frase símbolo do livro que ilustra as duas versões ganha outra conotação ao deixar o cinema no final da sessão atual.


* Crítica originalmente publicada no Jornal A Tarde, dia 09/05/2019

domingo, 5 de maio de 2019

A Sombra do Pai


A sombra da maturidade precoce



Com A Sombra do Pai, a cineasta baiana Gabriela Amaral aborda 
com esmero o terror oriundo da infância deixada para trás

Por João Paulo Barreto

É comum que o cinema de gênero, mais precisamente nas obras de terror, em que o ponto de vista infantil muitas vezes representado por clichês de meninas macabras com longas madeixas a esconder seus rostos e áurea sobrenatural assassina, utilize a pureza como modo de perpetrar o medo e a violência simbolizados pela força da perda da inocência. É no contraste entre tal inocência e a brutalidade de seus atos que reside muito do conteúdo de tais obras. Vide filmes como O Chamado, A Profecia e Cemitério Maldito, para citar apenas três.

Porém, ainda mais rico é o tipo de filme de terror no qual essa perda da pureza não necessariamente descamba para a violência assassina, mas, sim, para um encarar da realidade e da maturidade forçada, algo que surge na esteira de acontecimentos brutais, cuja influência na mente e no ponto de vista infantis tem resultado narrativo mais apurado do que o simples apelo slasher (para usar um termo oriundo desse cinema) e sanguinolento que thrillers simplórios e rasos utilizam para brincar com o choque causado a audiências não muito exigentes.

Não que haja algum problema nisso. No aspecto sanguinolência, filmes como os das séries Sexta-feira 13, A Hora do Pesadelo, Halloween e vários outros divertiram e, com seus méritos, formaram audiências durante boa parte dos anos 1980 e 1990. Sou um destes, inclusive. Mas a diferença para melhor reside em quando nos deparamos com obras cujo descortinar da perda da inocência infantil traz profundas consequências de cunho psicológico e o resultado disso, acompanhado de uma premissa sobrenatural, alcança reflexões que escapam à pura e simples catarse fílmica através da violência física. Em A Sombra do Pai, a cineasta Gabriela Amaral Almeida sabe exatamente aonde quer chegar com a história de Dalva (o achado Nina Medeiros), garotinha que enfrenta a perda da mãe e a ausência psicológica do pai através de sua introspecção e ligação com a magia. Aos poucos, o encontro com elementos que representam a morte começa a formar o julgamento da criança perante sua realidade. E Gabriela Amaral, também roteirista do filme, consegue com esmero representar isso.

Dalva (Nina Medeiros) e sua maturidade forçada e precoce

RIMAS VISUAIS

Desde sua cena inicial, quando uma boneca é desenterrada no quintal da casa onde Dalva vive, rima visual que planta uma pista cuja recompensa se dará no seu extasiante desfecho, a diretora constrói uma análise exata desse citado processo desencadeado pela perda da inocência infantil. Os símbolos são todos inseridos de modo orgânico, como quando a exumação do corpo de sua mãe para liberação do jazigo leva o pai a trazer de volta para casa cabelos e dentes que pertenceram à finada esposa. Cabelos, inclusive, que dão vazão a outra rima visual exata quando vemos na figura diminuta de Dalva um espelho para o que surge no clímax do longa. Como apreciadora do cinema de terror, Gabriela Amaral exibe trechos do citado Cemitério Maldito e de A Volta dos Mortos Vivos, filmes que a pequena Dalva assiste e alimentam seu imaginário de criança. Passo a passo, a criação de uma personalidade ainda mais introspectiva, mas repleta de entendimento do caos familiar que a cerca faz da garotinha alguém atropelada pelo trauma de crescer antes da hora.

TERROR REAL

Na figura do pai, Julio Machado dá a Jorge a presença exata do peso da sua existência tanto como obrigatório mantenedor do sustento do lar quanto na dolorosa rotina que leva para frente na ausência de sua amada. Diariamente subindo a construção como se fosse máquina, para citar a cadência exata de Chico e seu terror proletário, Jorge é mais um símbolo da derrota em seus aspectos mais extenuantes. Pálido e cadavérico, é forçado a dominar seus medos diante do desemprego iminente que representa a sombra a torturar a si mesmo a aos seus colegas de obra. O terror na vida de Jorge assume outras faces além do sobrenatural. Mas é na figura do soldador mascarado que Gabriela Amaral ilustra de modo exato e sombrio o desespero a espreitar o homem. E na tentativa de desanuviar sua ausência como pai bem como suas frustrações como símbolo a ser visto como exemplo, ele força um convívio natural com a filha quando a leva para passear no parque, cena que beira o cômico de tão trágica.

Cena chave a definir o elo inexistente entre pai e filha

Comicidade essa que a cineasta confere de forma sagaz, como na cena do aniversário de Dalva, que, com seu bolo de nome escrito errado e ausência de qualquer traço infantil, denota esse trágico beirando o cômico que já havíamos visto no seu curta de 2012, A Mão que Afaga. Rimos, mas com os dentes trincados. Além deste, é com admiração que percebemos em um dos seus primeiros curtas, Uma Primavera, lá de 2011, um ensaio para essa proposta vinculada à perda da inocência infantil. Após trazer o mal escondido na natureza educada, mas provocada ao limite em O Animal Cordial, a cineasta alcançou em A Sombra do Pai uma maturidade que impressiona. O cinema de gênero brasileiro tem em Gabriela Amaral Almeida sua representante mais engenhosa. Que venham os próximos. Isso, claro, se o terror que toma conta do Brasil permitir.

*Texto originalmente publicado no jornal A Tarde, dia 05/05/2019

sexta-feira, 3 de maio de 2019

O Mau Exemplo de Cameron Post


Cameron Post e seu exemplo a ser seguido



Apesar de seu final esperançoso, o noventista O Mau Exemplo de Cameron Post 
encontra reflexos pessimistas no distópico 2019

Por João Paulo Barreto

A importância da reflexão que filmes como Boy Erased – Uma Verdade Anulada (com lançamento infelizmente cancelado no país) e O Mau Exemplo de Cameron Post trazem, principalmente a um Brasil que inicia a galope uma marcha em direção ao pensamento retrógrado e conservador (para não dizer religioso e politicamente oportunista), é imensurável. O segundo deles, O Mau Exemplo de Cameron Post, atualmente em cartaz, leva ao espectador uma crucial observação acerca da intolerância e do nocivo conflito psicológico perpetrado pelo citado oportunismo e pelo poder de dominação ideológica que a religião, prioritariamente de base cristã e atrelada a interesses políticos, possui. Em um momento no qual a liberdade individual do ser humano em ser o que ele quer deseja é caçada por instituições e por uma sociedade hipócrita, o poder de análise que a obra de Desiree Akhavan é palpável.

Mesmo com sua trama se passando em 1993, o filme, infelizmente, se adequa perfeitamente aos dias atuais. Na história, Cameron, uma jovem que aos poucos descobre sua sexualidade e preferências, é flagrada pelo namorado beijando outra garota. Após isso, é enviada pela família a uma espécie de “clínica de reabilitação” na qual sua opção sexual será orientada de acordo com preceitos religiosos e a “orientação errada” será subjugada através de uma série de ensinamentos esdrúxulos. Impossível não imaginar a trama do livro de Emily M. Danforth como oriunda de um futuro distópico no qual a religião e o estado buscam dominar o pensamento e as vontades de cada cidadão. Infelizmente, não precisa ser o futuro. Ao observar o nome do lugar, God´s Promise, a triste constatação é justamente essa. Em 2019, com “representantes” de Direitos Humanos oferecendo cura gay e ministros de estado atrelando toda e qualquer decisão pública a justificativas religiosas, é exatamente isso que já acontece.

A busca por horizontes na estrada que se descortina

RÓTULOS DESNECESSÁRIOS

Chlöe Grace Moretz constrói sua Cameron com uma precisa postura, repleta de dúvidas, mas sem necessariamente se manter submissa à manipulação alheia. É ela o guia que leva o espectador dentro daquela experiência que beira o surreal, na qual a individualidade e livre arbítrio de cada pessoa tornam-se elementos colocados em segundo plano diante de preceitos manipuladores. Em certo momento, a protagonista escuta da tutora do lugar o planejamento de que, como primeiro passo, ela deve parar de ver a sim mesma como uma homossexual. A resposta, o mesmo tempo precisa em sua segurança, mas ainda proferida por alguém repleta de dúvidas acerca de si mesma, é ouvida como um alento por quem assiste ao filme. “Não penso em mim como homossexual. Não penso em mim necessariamente como nada”. É justamente a cena que define Cameron Post. A compreensão de que o espaço pessoal de cada individuo não deve ser invadido pela necessidade de rotulação é plena. O Mau Exemplo de Cameron Post trata justamente dessa liberdade de escolha. Não a escolha do que cada um deve ser, mas a escolha intima de que cada um está à vontade com o que sente.

A partir de um desfecho libertador e simbólico em sua metáfora de estrada que se descortina, o longa dirigido por Akhavan cria essa ponte entre o período no qual se passam seus acontecimentos e o infeliz futuro que aquela estrada trará à frente. Impossível não pensar na infelicidade de se encontrar, ao final daquele caminho, um século XXI ainda mais retrógrado quanto o que se vê naquele distante 1993.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 03/05/2019