sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Era uma vez... em Hollywood


Cinéfila e Histórica reimaginação


Com Era uma vez... em Hollywood, 
Tarantino faz justiça poética em tributo a Sharon Tate e ao cinema

Por João Paulo Barreto

Em determinada passagem de Easy Riders, Raging Bulls, definitivo relato da Hollywood no período que se estende entre 1969 e 1980, o autor Peter Biskind aborda o final dos anos 1960, após o assassinato de Sharon Tate, grávida de oito meses, e de mais três de seus amigos, em uma casa em Beverly Hills, em agosto de 1969. Seu resumo, apesar de macabro, define bem a atmosfera de realidade amarga deixada pela Família Mason e seus crimes. Lá, Biskind escreveu: “Havia uma sensação de final, de que uma Era estava terminada. De que as pessoas haviam se dado bem por um tempo e que, para quem tinha inclinações apocalípticas, o Anjo da Morte não tardaria a colocar tudo em seus devidos lugares”.

Apesar do peso profundo em sua base histórica, sabendo que os crimes cometidos pela gangue de Mason são o pano de fundo de Era uma vez... em Hollywood, o diretor e roteirista  Quentin Tarantino não deixou que tal atmosfera perpetrasse seu novo trabalho de maneira a torná-lo fúnebre ou desrespeitoso com a memória das vitimas. Pelo contrário. Ao final, a beleza triste e pesarosa deste seu nono longa é o que faz o seu público respirar profundamente após a catártica vingança que ele insere em sua reimaginação da História.

Não é novidade o fato de que a cinefilia de Tarantino é o que o estimula na criação de seus roteiros. Seja na oportunidade de escalar heróis de sua juventude como Pam Grier, Sonny Chiba e David Carradine, ou, ainda, na ousadia precisa de reescrever a história de maneira mais justa e catártica como fez em Bastardos Inglórios e em Django Livre. Dessa vez, porém, o destaque que essa cinefilia possui na criação de seu novo roteiro torna a imersão, aqui, um exercício de conhecimento do cinema e da cultura pop como um todo nos anos 1950 até a década de 1960, que terminara como o agourento período citado por Biskind em seu documental livro.

Dalton e Booth conferem os populares seriados de TV

Porém, mesmo com esse peso histórico e brutal em suas linhas, Tarantino conseguiu dar ao seu público uma maneira recompensadora e mais justa de revisitar aqueles fatos. E é de modo não somente mais justo, mas tocante e emotivo que, a partir da tragicidade na vida da atriz Sharon Tate, que o diretor de Pulp Fiction volta a reescrever fatos reais neste novo trabalho. E, tendo a cinefilia e a cultura pop como norte, é neste caminho que a sua visita à cidade do cinema estadunidense em 1969 é construída.


CINEMA DENTRO DO CINENA

O foco dessa recriação está na trajetória de Rick Dalton (DiCaprio), ator de uma série televisiva de faroeste que tenta adentrar em Hollywood como astro de cinema. Inseguro em relação ao seu próprio talento, Rick tem nas sequências onde o vemos atuar uma gradativa evolução dessa autoestima e confiança.

Em seu roteiro, Tarantino insere as participações de Rick em vários trabalhos de atuação de modo paralelo às suas constantes lutas intimas contra a insegurança e ansiedade. Além disso, na figura de seu amigo, assistente e dublê de cenas, Cliff Booth (Pitt), uma sólida presença no sentido de lhe fazer sentir-se mais seguro de sua capacidade como ator. “Você é o grande Rick Dalton! Não se esqueça disso,” afirma Booth.

No entanto, para o espectador, perceber o personagem chorando após um diálogo com uma atriz mirim durante um intervalo de gravação, ou voltar a se emocionar ao ser elogiado por entregar “a melhor atuação que ela já presenciou na vida” (uma atriz de oito anos, friso), a ideia de quão patética e de fácil influência é sua condição se torna óbvia e hilária, impressão propositalmente inserida por Tarantino. E ao brincar com tais frustrações, como quando vemos os papeis perdidos por Dalton, como o de Hilts, pilar de Steve McQueen em Fugindo do Inferno, o cineasta confirma essa frágil autoestima de seu protagonista. Mas vê-lo ressurgir para o sucesso comercial a partir de renegados faroestes italianos que consagraram nomes como o de Clint Eastwood é de uma sutil ironia que o roteirista não deixa passar.

Rick Dalton (DiCaprio) vive vilão em mais um faroeste da TV

Aliás, a parceria entre Booth e Rick ilustra, a partir da lente de Tarantino, uma precisa reconstrução daqueles dias no final dos anos 1960. São diversas as maneiras em que aquela recriação é feita, e percebê-las se torna um atrativo à parte para quem investe nas quase três horas de projeção. Desde as várias marcas de produtos enlatados a lotar os armários da cozinha de Booth aos momentos nos quais ambos se vêem diante da TV assistindo seriados como FBI, até às placas publicitárias nas ruas por onde Booth dirige após deixar seu amigo e chefe em casa. Todos os elementos em cena desenham de maneira exata o período.

Este último exemplo, inclusive, serve de apoio para uma percepção do modo de direção que Tarantino trouxe aqui. A calma como ele constrói sua narrativa, ao exibir longas sequências nas quais apenas vemos personagens dirigindo do ponto A ao B, entrega exatamente essa ideia de construção parcimoniosa diante da catarse explosiva de seu final, uma vez que é justamente em um desses trajetos que Booth encontra uma das integrantes da Família Mason, momento em que Tarantino brinca com a expectativa do espectador na preparação do terreno para seu sanguinolento desfecho.

Booth confere os integrantes da Família Mason

HOMENAGEM A TATE

Dentro do citado aspecto emocional que o filme traz a personagem de Sharon Tate,
é precisa a opção de Tarantino em homenagear a atriz assassinada pelo grupo liderado por Charles Manson em 1969. Grávida de seu marido, o diretor Roman Polanski, Tate tinha apenas 26 anos quando foi esfaqueada e morta na invasão de sua casa pelos seguidores de Mason. Tarantino cria um emotivo tributo à jovem em alguns belos momentos, como quando, ao inseri-la visitando o cinema local para ver uma sessão de Arma Secreta contra Matt Helm, filme estrelado por Dean Martin que contava com a presença de Sharon Tate, destaca o encantamento da jovem, vivida aqui por Margot Robbie, por aquele universo glamouroso que se tornara fatal para ela.

Margot Robbie e a exuberância de sua Sharon Tate

Naquela imaginada visita ao cinema, as palmas que ela escuta durante as suas breves cenas de luta (coreografadas por Bruce Lee) ou os risos diante de sua atrapalhada personagem nas interações com Martin, dão àquela Tate ficcional uma tenra maneira de saudar a alegria real que a jovem teve ao fazer parte daquele ambiente.

Na gráfica e brutalmente chocante sequência que Tarantino cria como vingança contra os assassinos da atriz, uma espécie de catarse, de entranha sensação de regozijo ao ver o que lhes acontece surge. É a mesma sensação que temos como quando Hitler foi fuzilado em Bastardos Inglórios. Uma maneira de criar uma realidade alternativa que possa nos colocar em pausa, de algum modo distantes dos fatos covardes que aconteceram, nem que seja por breves momentos dentro da sala de cinema. O abraço de Sharon em Rick concede um pouco desse conforto. Ao menos aqui, o tal Anjo da Morte chamado Mason se reduziu à sua insignificância devida.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 16/08/2019

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