segunda-feira, 1 de abril de 2019

Dumbo


Tim Burton insere as inconfundíveis marcas de seu universo
 na adaptação live action do elefantinho voador



A fábula clássica de Dumbo

Por João Paulo Barreto

Na filmografia de Tim Burton, conflitos envolvendo personagens atormentados pela não adaptação ao meio onde vivem, oriundos de famílias partidas ou ausentes, ocasionalmente órfãos ao menos de um dos pais, é algo com que o espectador se habituou a encontrar nas visitas ao cinema cada vez que o nome do cineasta, famoso por um estilo gótico em suas obras, surge estampando pôsteres soturnos. Há trinta anos, em Batman, ele deu a Bruce Wayne (um órfão atormentado que busca se adaptar ao seu mundo) a verdadeira face que o seriado com Adam West transformara em pastiche; depois, no começo dos anos 1990, iniciando uma prolífica parceria com Johnny Depp, criou uma ácida e melancólica crítica à hipocrisia humana em Edward Mãos de Tesoura, outro ser que tenta (e falha miseravelmente) se inserir na sociedade. A dupla voltaria a se encontrar em um tema semelhante quando o ator encarnou, em A Fantástica Fábrica de Chocolate, de 2005, Willy Wonka, outro atormentado personagem cuja fachada cínica esconde um conflito com o pai, mesmo tema visto no fantástico Peixe Grande, de 2003. 

Fantástico, aliás, é um adjetivo que define bem trabalho do diretor. Contando com aceitáveis altos e baixos (sendo que os altos prevalecem, friso!), Burton trouxe para si um estilo de cinema que, muitas vezes, remete às imagens expressionistas do movimento cinematográfico alemão, unindo suas influências do cinema de terror clássico em um visual que se tornou sua marca. Com todas essas características tanto estéticas quanto de construção dramática, olhar para a história do elefantinho voador Dumbo e imaginá-la dentro deste universo, digamos, burtoniano é algo que nos faz pensar em como tal recriação em live action não aconteceu antes. Todos os elementos estão lá. A criatura julgada como grotesca, mas que possui um bom coração; a adaptação a um ambiente hostil que, com poucas exceções, o explora; a dolorosa ausência da família e a busca por ela. Enfim, Dumbo, com suas orelhas gigantescas, acaba sendo um ser que pertence a Tim Burton, sendo ele o único capaz de dar ao adorável filhote circense sua face real.

Dumbo em sua tecnicamente perfeita versão em CGI

O FANTÁSTICO CRÍVEL

Na adaptação para a versão em carne, CGI e osso de Dumbo, o diretor enfrentara um desafio inicial que era o de tornar o irreal ao menos crível. E, nesse desafio, os aspectos técnicos ajudam a dar verossimilhança a um personagem cujo absurdo acaba se tornando aceitável dentro daquela premissa, para usar mais uma vez a palavra, fantástica. Assim, é admirável observar como até mesmo o som das orelhas/asas do elefantinho e o modo como o vento surge de seu balançar dá àquela ideia uma sensação de naturalidade dentro do inacreditável. Ponto para o design de som do filme, que se supera ao trabalhar a ideia do voo de um elefante (!!) em um modo que faz o espectador brincar com o impossível.

Nesta passagem do desenho animado para o live action, Dumbo, acertadamente, optou por deixar para trás algumas dos aspectos fabulescos, como o fato dos animais falarem, mas manteve do modo eficiente algumas das marcas que tornaram tão adorável a sua versão de 1941. É o caso da expressão de doçura do elefantinho, que, dentro do aspecto real que a obra de 2019 possui, torna o sorriso contido da criatura uma característica que faz o espectador, tanto infantil quanto adulto, se afeiçoar ainda mais ao bicho, cuja criação perfeita tecnicamente merece um reconhecimento por parte da audiência. Da mesma maneira acertada, o filme marca pontos ao não apelar para o emocional de forma exagerada, tornando a presença de Dumbo em sua tristeza e saudade da mãe algo que não manipula o publico de forma barata, mas torna aquela empatia natural. E convenhamos que é difícil não se apaixonar por aqueles tristes olhinhos azuis embalados pela sempre marcante trilha sonora do parceiro habitual de Burton, Danny Elfman, que, em seus corais infantis, emula a sensação do fantástico de modo preciso.

Reencontro de parceiros clássicos: Keaton dá vida ao antagonista V. A. Vandervere

UNIVERSO BURTONIANO

Dando a Tim Burton um prato cheio para suas criações visuais excêntricas, o circo de Dumbo, comandado por Danny DeVito, outro ator não estranho ao universo burtoniano, permite o desenvolver de criaturas que, apesar de menos excêntricas que as de Peixe Grande, outro filme que tinha DeVito como dono de um circo, representam bem as características dos serem que habitam o mundo do diretor. Mundo esse que, como dito antes, traz constantes aspectos dramáticos que o cineasta insere em seus trabalhos, como a ausência familiar paterna, aqui salientada por uma fala do megalomaníaco representado por Michael Keaton, que aborda essa construção e o trauma em torno do fato de ter crescido sem um pai.

Keaton, inclusive, em sua participação histriônica, acaba por ser responsável pela fala que define a ideia de trazer uma obra como Dumbo de volta ao destaque. “Você me levou de volta à minha infância”, profere o milionário V. A. Vandervere, vivido pelo Batman de Burton. Com essa nova leva de adaptações reais para desenhos animados que, ainda esse ano, terá O Rei Leão e Aladdin na esteira de lançamentos, é esse o intento que a Disney está alcançando. Além, claro, para não ser ingênuo, de muito dinheiro.

Mas é bom se permitir um pouco de ingenuidade no revisitar fabulesco de um adorável elefantinho voador.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 01/04/2019

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