segunda-feira, 29 de abril de 2019

Vingadores: Ultimato


A Construção de um Épico



Com Vingadores: Ultimato a Marvel Studios encerra, 
de forma ao mesmo tempo trágica e épica, 
um ciclo fenomenal da cultura pop

João Paulo Barreto

Após onze anos, vinte e um filmes e um planejamento impressionante tanto em sua cronologia quanto no desenvolvimento de seus personagens, a Marvel Studios chega ao vigésimo segundo e mais impactante de todos os seus longas metragens. O “Fim do Jogo”, como entrega o título original de Vingadores: Ultimato, define bem o que esse novo trabalho representa para o universo de super-heróis oriundos dos quadrinhos que lendas como Stan Lee, Jack Kirby e Jim Starlin ajudaram a criar.

Não somente peças de entretenimento industrial, verdadeiras máquinas de fazer dinheiro (monopolizadoras de salas, como muitos denunciam), mas, também, exemplos de como a arte sequencial, expressão cultural que sempre serviu de matéria prima para o cinema e TV, o que temos aqui são exemplos de como um estúdio pode galgar patamares de qualidade e reflexão em seus produtos fílmicos, unindo de forma sagaz lucro e qualidade em suas narrativas. De Homem de Ferro, longa de 2008 que trouxe um gosto do potencial do material que tinham em mãos, passando pelo divisor de águas em termos de ação, Capitão América 2, além de Pantera Negra, que, junto a Capitã Marvel, se apresenta como o mais representativo de seus filmes, até chegar neste novo Ultimato, continuação direta de Guerra Infinita, o que se descortinou diante de fãs e de espectadores indiferentes foi, inegavelmente, um fenômeno.

Capaz de trazer tanto momentos de comédia galhofa, algo que se tornara marca do personagem de Thor, quanto aprofundamentos existenciais, muito bem denotado pela dualidade da motivação do vilão Thanos, os filmes da Marvel funcionaram tão bem nos últimos onze anos em sua variedade de entretenimento justamente por conseguir criar um equilíbrio entre seus elementos dramáticos com a ação de encher os olhos. E isso sem nunca perder a linha narrativa que nasceu lá em 2008 e se encerra agora neste Ultimato que está em cartaz. Dito isso, é com regozijo que o espectador atento (seja ele um leitor de quadrinhos ou apenas um cinéfilo que acompanha os filmes) observa a sagacidade da proposta existente em revisitar vários de seus próprios pontos históricos para criar a estrutura de Vingadores: Ultimato. Regozijo não somente por perceber tal sagacidade, mas por compreender a grandeza daquela estrutura fílmica que, de tão vasta, se permite servir como a própria matéria prima do roteiro que encerra um ciclo nesta última obra.

O final chegou: Vingadores encaram perdas

REVISITANDO SEU UNIVERSO

Diante de um final desolador como o visto na sua primeira parte, Guerra Infinita, lançado há exatamente um ano, havia para os roteiristas Christopher Markus e Stephen McFeely, dupla responsável pelo sucesso de diversos filmes da Marvel, o desafio de trazer de volta à vida personagens centrais, inseri-los em um arco dramático que, dentro da proposta de uma fantasiosa ficção científica, pudesse se tornar crível e, após isso, entregar ao público a tão prometida batalha épica contra um vilão que buscava o equilíbrio populacional do universo.

No entanto, o que os escritores conseguiram foi algo ainda melhor. Permitindo-se não somente desenvolver de forma gradativa o modo como trariam de volta os heróis, a dupla mergulhou na própria mitologia do universo cinematográfico Marvel, termo que pode soar pretensioso, mas que define bem o que Vingadores: Ultimato encerra após 21 filmes.

Steve Rogers em seu momento de definição

TRAGICIDADE ÉPICA

Além da possibilidade de brincar com a própria criação dos filmes do estúdio, os dois roteiristas foram além. A citada forma gradativa inclui, além de um início no qual a vingança é perpetrada de modo triunfal, um doloroso período de luto diante da perda se segue. E isso se torna algo que os irmãos diretores, Joe e Anthony Russo, ilustram de forma primorosa dentro do hiato de cinco anos que se passa entre os dois filmes. A desolada versão de Nova York em suas ruas desertas, bem como o memorial dos desaparecidos com o qual um desolado Scott Lang se depara, unindo-se a um melancólico e traumático reencontro de mágoas entre dois personagens centrais, pavimentam o terreno para os 180 minutos que a aventura possui. E isso, claro, levará para o que se pode chamar de épico tanto em seus momentos de ápice dramático quanto de frenética ação.

E o termo épico é outro que é utilizado aqui sem nenhum receio de parecer exagerado. O que se vê neste citado ápice frenético de ação é precisamente isso. Vingadores: Ultimato insere em seu clímax uma catarse emocional que o torna definidor no modo como um produto de entretenimento dito banal pode alcançar patamares de arte. O investimento emocional exigido ao espectador é tamanho que nos remete exatamente a todos os onze anos já citados anteriormente. É tempo suficiente para que se criem laços de afinidade com personagens que, após tantos filmes, consideramos próximos.

Chamem-me de ingênuo, mas o cinema possui essa capacidade de nos tornar íntimos de pessoas que não existem a não ser na tela digital ou nas páginas de uma história em quadrinhos. Podem ser puramente peças de uma engrenagem feita para render rios de dinheiro. Porém, ainda assim, foi bom ter podido presenciar cada uma dessas vinte e duas peças dentro de uma sala de projeção e, como bônus, poder mergulhar em quadrinhos que ajudaram a construir, desde sempre, uma formação cultural. 


*Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde em 29/04/2019

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Marcia Haydée - Uma Vida pela Dança


Genialidade de uma vida dedicada ao Balé


Documentário esmiúça trajetória de Márcia Haydée, 
brasileira que marcou a história do balé clássico


Por João Paulo Barreto

A trajetória de Márcia Haydée, primeira bailarina do Balé de Stuttgart, na Alemanha, durante os anos 1960, impressiona. A importância de sua figura para a dança mundial é colocada em merecido destaque no documentário Marcia Haydée – Uma Vida Pela Dança. Idealizado por sua irmã Mônica Athayde e dirigido por Daniela Kallman, o documentário resgata a história da única bailarina brasileira a ser reverenciada nos mais importantes teatros do mundo. Entre eles, estão o Bolshoi (Moscou); Opera (Paris); Covent Garden (Londres); Staatsoper (Berlin); Bunka Kaikan (Tóquio); além do Metropolitan Opera House (Nova Iorque); Lincoln Center (Washington); Colon Buenos Aires) e Teatro Municipal de Santiago, no Chile. No Brasil, Theatro Municipal do Rio de Janeiro e Teatro Municipal de São Paulo. Foi aclamada por sua grandeza nas interpretações em cada papel que lhe era oferecido.

O filme opta de maneira acertada em equilibrar a apresentação da vida da bailarina através do olhar e palavras dela mesma com o das pessoas que conviveram com ela em sua trajetória. Tal opção, mesmo sem fugir da estrutura convencional de entrevistas, concede ritmo ao documentário devido à opção de intercalar as imagens da rotina de Haydée e das suas marcantes apresentações com a sua preparação durante os ensaios, bem como as leituras das cartas que a jovem enviava para sua mãe. Permite ao espectador observar, assim, o esforço contínuo da bailarina no galgar da perfeição que se vê nos palcos, mas sem deixar de trazer um perfil sensível e deslumbrado de uma jovem que alcançava precocemente essa mesma perfeição citada.

Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, Marcia Haydée começou as aulas de balé aos 3 anos. Aos 12 já falava em ser a melhor bailarina do mundo. Aos 16 se mudou para Londres para estudar na Royal Ballet School. Lá conheceu o coreógrafo John Cranko, diretor do Stuttgart Ballet, na Alemanha, e se tornou sua discípula.

Através de um perspicaz encadeamento de imagens de arquivo que a montagem de Maria Altberg traz, o público é apresentado ao desenvolver técnico de Haydée de forma a penetrar em sua labuta e a conhecer o modo como ela e o seu parceiro coreógrafo, John Cranko, transformaram preparação e experimentação em movimentos definitivos na dança.

Márcia em cena com Richard Cragun (Coreografia de John Cranko)

ANJO PROTETOR

“É o chão, os sapatos ou você? É você”, responde a si mesmo John Cranko em sua descontração ao avaliar o poder dos passos de Márcia, no balé Giselle, lhe dando a autoconfiança necessária. E, no citado artifício de sua montagem, o filme acerta ao criar para o espectador o ritmo perfeito da narrativa no encadear imediato das cenas de ensaios com a apresentação que aconteceu em 1966, algo que descreve bem o esforço desprendido pela jovem.

 “A simplicidade da técnica junto com a liberdade artística, junto com a alma imoral. Ela é a pura transgressão. Como pode uma pessoa do mundo clássico ser tão transgressora?”, pergunta a coreógrafa Deborah Colker ao se referir a Márcia. Sua pergunta também reverbera no espectador. Sua transgressão ao colocar-se em tamanho destaque dentro da companhia de Stuttgart, quando apenas Cranko, outro que não temia experimentações, a queria como sendo a primeira bailarina, encanta. E, mesmo aqueles não familiarizados com a sua trajetória ou que mesmo não detêm conhecimentos específicos do balé clássico, se impressionam com o domínio de sua técnica. Sem contar o carisma da mulher. Sua leveza de ação, beleza e, ao mesmo tempo, olhar concentrado nos movimentos cujas orientações recebe de Cranko, encantam através das imagens de arquivo que o filme traz. Imagens estas que denotam um extenuante trabalho de pesquisa e planejamento da produção no ilustrar daquela trajetória.

A primeira bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Ana Botafogo, é precisa ao definir a relação entre Márcia e Cranko, quando coloca aquele encontro como algo divino. Com pouco mais de vinte anos de idade, Márcia se tornara a primeira bailarina do balé de Stuttgart, algo que representava a sintonia precisa entre ela e o criador das coreografias.  “Ela encontrou um anjo, uma luz perto dela que soube tirar toda arte e toda essa luz que estava dentro da Márcia. Foi algo que o Cranko soube tirar, soube fazê-la desabrochar. Um encontro dos Deuses. Cranko e Márcia Haydée transformaram a história da dança no mundo”, pontua Ana Botafogo.

Em sua postura austera e, ao mesmo tempo, repleta de doçura, Haydée nos fala de seus relacionamentos e coloca a amizade com Cranko e o casamento e longa parceria com o dançarino estadunidense, Richard Cragun, como destaque. A perda dos dois, sendo o primeiro em sua morte precoce nos anos 1970, e o segundo em um divórcio doloroso para a bailarina, a colocara em um novo norte. Primeiro, pois, foi após a partida de Cranko que ela assumiu a direção do balé de Stuttgart, algo que impressiona uma vez que não a impediu de continuar dançando e mantivesse os dois trabalhos em paralelo. E, após a separação de Cragun, alguns anos depois, em 1995, ela voltaria a se casar com aquele que até hoje é seu marido, o professor de ioga Günther Schöberl, alguém cuja profissão ajudara Haydée a recuperar seu equilíbrio e serenidade.

Marcia no terraço do Theatro Municipal do Rio - segunda casa

LEGADO RECONHECIDO

Para o produtor do projeto, Marco Altberg, a importância do filme se salienta ainda mais pelo legado de Márcia. “Como passou quase toda a vida fora do país, ela acaba sendo pouco conhecida aqui, ainda mais pelas novas gerações. Torna-se importante trazer esse resgate para os brasileiros”, afirma Altberg.

Legado, prioritariamente, é a palavra chave para definir o projeto. Ao vermos a ex-bailarina aos 80 anos de idade, lúcida e saudável a caminhar pela neve das redondezas de sua casa em Stuttgart, local que abre o documentário como a nos convidar a sentir o calor das imagens do balé que vemos em seguida, notamos naquela senhora uma plenitude que a maturidade e o contemplar de um legado e de uma vida repleta de desafios lhe traz. E ela consegue dividir isso com o público, essa intimidade plena, algo que reflete através daquela longa trajetória. Em certo momento, por exemplo, Márcia fala da opção em não querer ter filhos. E é doloroso perceber certo arrependimento e peso em sua voz quando busca explicar as razões em relação ao trabalho e a distância de familiares. Em um autoconsolar, Haydée brinca ao dizer que na próxima vida terá muitos filhos. Logo em seguida, o foco obstinado em sua tão importante arte a faz corrigir-se. “Não, eu falo, falo, mas na próxima vida eu vou ser bailarina outra vez. Já está em minha áurea. Já está em minha energia”, afirma entre sorrisos.

Ela encerra dizendo que segue uma força maior, algum deus, que possa decidir isso por ela. Ouvir uma deusa da dança falar desse modo nos faz questionar a existência dessa força. Mas, do mesmo modo, nos faz ter certeza de que foram seus esforços, foco, obstinação e genialidade, de fato, os elementos responsáveis por sua brilhante trajetória. Um filme essencial para torná-la ainda mais inesquecível.


*Matéria originalmente publicada no jornal A Tarde, dia 22/04/2019

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Shazam!



Investindo em uma ambientação menos soturna e mais calcada na comédia, a DC acerta ao mudar o foco de seu universo

Shazam!, a  palavra mágica do humor

Por João Paulo Barreto

O humor nas adaptações cinematográficas dos heróis das histórias em quadrinhos, apesar de que não era um elemento a nortear roteiros, sempre esteve presente. Talvez não do modo pastelão como os coadjuvantes de Lex Luthor nos clássicos Superman dirigidos por Richard Donner e Richard Lester, mas utilizar textos engraçados como forma de tornar palatáveis as cenas de ação e criar uma empatia maior com o protagonista e seus dramas, era uma forma de aproximar o espectador da obra, convidando-o a se inserir durante aqueles pouco mais de 120 minutos de aventuras. A Marvel Studios, ao se lançar no mercado em 2008 com Homem de Ferro, percebeu essa fórmula de imediato, investindo em um protagonista tão perfeito em suas tiradas de comédia que acabara por tornar Robert Downey Jr. o rosto símbolo daquela nova onda de filmes de super-heróis. A mesma Marvel Studios, em 2017, chegou a dar um passo além, colocando um dos seus personagens símbolo, o Thor, como centro de uma galhofa (excelente, por sinal) chamada Ragnarok. Não sendo do estúdio responsável por Vingadores, mas oriundo da mesma Marvel Comics que o saudoso Stan Lee ajudara a criar, Deadpool , filme de 2016, foi ainda mais além por permitir aos roteiristas uma quebra  da quarta parede (quando o personagem conversa com o público) e colocar seu protagonista como um, digamos, desconstrutor daquela gênese. Bastam dez minutos de Deadpool para perceber do que se trata.

Do outro lado, a DC Comics, que não possui um estúdio próprio, mas desde sempre dá vida aos seus personagens através da Warner Brothers, seguiu por um caminho inverso em suas adaptações. Sem contar a já clássica trilogia Cavaleiro das Trevas, redefinição do que pode ser considerado um filme de super-herói que o britânico Christopher Nolan trouxe às telas a partir de 2005, os filmes do chamado DCU (DC Universe), Homem de Aço, de 2013, Batman v. Superman, de 2016 e Liga da Justiça, de 2017, seguiram por um lado oposto, trazendo tramas mais densas e pesadas, personagens centrais atormentados por questões existenciais que beiram ao depressivo, além de um visual excessivamente sombrio que distanciam a experiência de imersão fílmica do equilíbrio entre diversão e reflexão. Porém, friso que não há nenhum problema em propostas mais densas e dramáticas para super-heróis (o excelente Watchmen é uma prova disso), mas tornar essa uma marca dos seus filmes acaba por gerar certo desgaste após várias adaptações. E mesmo o uso da comédia deve ser colocado como algo a ser dosado, sob o risco de tornar a mesma piada sem graça quando contada várias vezes, como foi o caso da continuação de Deadpool. O equilíbrio, digamos, Vingadores de se mesclar comédia com ação e drama é algo a ser colocado como meta.

Grazer e Levi: química perfeita

CARISMA PALPÁVEL

Shazam!, a resposta da DC/Warner à mescla comédia galhofa e ação de Deadpool e Thor: Ragnarok, uma sessão da tarde no melhor sentido da expressão, alcança resultado positivo por conta do carisma da dupla de protagonistas Zachary Levi, que vive a versão adulta do herói, e do jovem Jack Dylan Grazer, seu tagarela irmão adotivo. A ideia prioritária, aqui, é a de focar na leveza da comédia para contar a história traumática de um órfão em busca de seus pais. Nas mãos de Zach Snyder, diretor de dois dos filmes da DC citados anteriormente, a melancolia dessa saga seria evidente. Mas, o que o diretor David F. Sandberg, surpreendentemente oriundo do universo dos filmes de terror, propõe ao dar vida ao roteiro de Henry Garden, um estreante no campo dos super-heróis, é algo que diverte por se fazer valer de alguns dos elementos que o citado antiherói tagarela da Marvel inseriu, que são as brincadeiras com o próprio DCU. Assim, quando vemos as brincadeiras com o nome do herói (que nos quadrinhos é conhecido como Capitão Marvel, um impeditivo óbvio para o cinema), sua capa que parece algo oriundo de vestido de noiva, como alguém pontua no filme, além das referências aos dois heróis pilares da DC, entendemos qual a proposta aqui.

Em certo momento, por exemplo, os garotos começam a testar os poderes do herói, listando as diversas possibilidades que seu background de cultura pop lhes permite observar. Neste aspecto, Grazer acaba por roubar a cena com seu perfil falastrão e de ironia acentuada. Sandberg sabe a ferramenta que tem em mãos, no entanto. Busca não abusar das piadas de metalinguagem, como acontece em Deadpool, sendo que, aqui, só o fato de não haver a quebra da quarta parede já é algo louvável. Assim, a inserção de Shazam! como parte do DCU acontece de modo orgânico, sem a necessidade de diálogos expositivos que servem de muleta para o espectador.

Humor como modo de brincar com o universo dos heróis

DRAMA ORGÂNICO

Fazendo-se valer de uma história de superação de um órfão em busca de seu lugar, o filme acerta na criação de uma empatia do público com o personagem, que no olhar perdido de Asher Angel, que vive o garoto Billy Batson, consegue denotar todo o drama do menino que esconde no humor e no sarcasmo uma personalidade atormentada. A libertação ao dizer a palavra mágica que o transforma no super-herói encontra em Zachary Levi uma presença que reflete justamente essa liberdade. Na figura escandalosa e hilária do menino em um corpo de adulto, Billy acaba encontrar seus meios de extravasar suas frustrações. E o filme constrói aquele amadurecimento de modo bastante eficiente ao colocar tanto o herói hilário de Levi quanto o sofrido deficiente Freddy, de Grazer, em conflitos pessoais e com seus familiares que, aos poucos, os levam a perceber o nível dos seus próprios poderes de transformação.

Fiel ao seu material original nos quadrinhos, algo que justifica a inserção dos descartáveis monstros digitais a representar os sete pecados capitais (mesmo que se trate de personagens que não colaborem muito para o desenvolvimento de uma história que busca fugir do simples maniqueísmo de bem vs mal), Shazam! se sai bem em sua premissa de humor que brinca com os elementos do universo que o criou. É uma nova proposta de equilíbrio entre o soturno costumaz das adaptações anteriores com a já dita leveza do humor que a possibilidade de fazer piada consigo mesmo e com a cultura pop permite. Ver as referências a Quero ser Grande, Rocky – Um Lutador e até mesmo à voz de Christian Bale como Batman são passos significativos para um novo caminho das versões cinematográficas dos seus personagens. E não precisava de mágica para perceber isso, cara DC Comics.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 08/04/2019


segunda-feira, 1 de abril de 2019

Dumbo


Tim Burton insere as inconfundíveis marcas de seu universo
 na adaptação live action do elefantinho voador



A fábula clássica de Dumbo

Por João Paulo Barreto

Na filmografia de Tim Burton, conflitos envolvendo personagens atormentados pela não adaptação ao meio onde vivem, oriundos de famílias partidas ou ausentes, ocasionalmente órfãos ao menos de um dos pais, é algo com que o espectador se habituou a encontrar nas visitas ao cinema cada vez que o nome do cineasta, famoso por um estilo gótico em suas obras, surge estampando pôsteres soturnos. Há trinta anos, em Batman, ele deu a Bruce Wayne (um órfão atormentado que busca se adaptar ao seu mundo) a verdadeira face que o seriado com Adam West transformara em pastiche; depois, no começo dos anos 1990, iniciando uma prolífica parceria com Johnny Depp, criou uma ácida e melancólica crítica à hipocrisia humana em Edward Mãos de Tesoura, outro ser que tenta (e falha miseravelmente) se inserir na sociedade. A dupla voltaria a se encontrar em um tema semelhante quando o ator encarnou, em A Fantástica Fábrica de Chocolate, de 2005, Willy Wonka, outro atormentado personagem cuja fachada cínica esconde um conflito com o pai, mesmo tema visto no fantástico Peixe Grande, de 2003. 

Fantástico, aliás, é um adjetivo que define bem trabalho do diretor. Contando com aceitáveis altos e baixos (sendo que os altos prevalecem, friso!), Burton trouxe para si um estilo de cinema que, muitas vezes, remete às imagens expressionistas do movimento cinematográfico alemão, unindo suas influências do cinema de terror clássico em um visual que se tornou sua marca. Com todas essas características tanto estéticas quanto de construção dramática, olhar para a história do elefantinho voador Dumbo e imaginá-la dentro deste universo, digamos, burtoniano é algo que nos faz pensar em como tal recriação em live action não aconteceu antes. Todos os elementos estão lá. A criatura julgada como grotesca, mas que possui um bom coração; a adaptação a um ambiente hostil que, com poucas exceções, o explora; a dolorosa ausência da família e a busca por ela. Enfim, Dumbo, com suas orelhas gigantescas, acaba sendo um ser que pertence a Tim Burton, sendo ele o único capaz de dar ao adorável filhote circense sua face real.

Dumbo em sua tecnicamente perfeita versão em CGI

O FANTÁSTICO CRÍVEL

Na adaptação para a versão em carne, CGI e osso de Dumbo, o diretor enfrentara um desafio inicial que era o de tornar o irreal ao menos crível. E, nesse desafio, os aspectos técnicos ajudam a dar verossimilhança a um personagem cujo absurdo acaba se tornando aceitável dentro daquela premissa, para usar mais uma vez a palavra, fantástica. Assim, é admirável observar como até mesmo o som das orelhas/asas do elefantinho e o modo como o vento surge de seu balançar dá àquela ideia uma sensação de naturalidade dentro do inacreditável. Ponto para o design de som do filme, que se supera ao trabalhar a ideia do voo de um elefante (!!) em um modo que faz o espectador brincar com o impossível.

Nesta passagem do desenho animado para o live action, Dumbo, acertadamente, optou por deixar para trás algumas dos aspectos fabulescos, como o fato dos animais falarem, mas manteve do modo eficiente algumas das marcas que tornaram tão adorável a sua versão de 1941. É o caso da expressão de doçura do elefantinho, que, dentro do aspecto real que a obra de 2019 possui, torna o sorriso contido da criatura uma característica que faz o espectador, tanto infantil quanto adulto, se afeiçoar ainda mais ao bicho, cuja criação perfeita tecnicamente merece um reconhecimento por parte da audiência. Da mesma maneira acertada, o filme marca pontos ao não apelar para o emocional de forma exagerada, tornando a presença de Dumbo em sua tristeza e saudade da mãe algo que não manipula o publico de forma barata, mas torna aquela empatia natural. E convenhamos que é difícil não se apaixonar por aqueles tristes olhinhos azuis embalados pela sempre marcante trilha sonora do parceiro habitual de Burton, Danny Elfman, que, em seus corais infantis, emula a sensação do fantástico de modo preciso.

Reencontro de parceiros clássicos: Keaton dá vida ao antagonista V. A. Vandervere

UNIVERSO BURTONIANO

Dando a Tim Burton um prato cheio para suas criações visuais excêntricas, o circo de Dumbo, comandado por Danny DeVito, outro ator não estranho ao universo burtoniano, permite o desenvolver de criaturas que, apesar de menos excêntricas que as de Peixe Grande, outro filme que tinha DeVito como dono de um circo, representam bem as características dos serem que habitam o mundo do diretor. Mundo esse que, como dito antes, traz constantes aspectos dramáticos que o cineasta insere em seus trabalhos, como a ausência familiar paterna, aqui salientada por uma fala do megalomaníaco representado por Michael Keaton, que aborda essa construção e o trauma em torno do fato de ter crescido sem um pai.

Keaton, inclusive, em sua participação histriônica, acaba por ser responsável pela fala que define a ideia de trazer uma obra como Dumbo de volta ao destaque. “Você me levou de volta à minha infância”, profere o milionário V. A. Vandervere, vivido pelo Batman de Burton. Com essa nova leva de adaptações reais para desenhos animados que, ainda esse ano, terá O Rei Leão e Aladdin na esteira de lançamentos, é esse o intento que a Disney está alcançando. Além, claro, para não ser ingênuo, de muito dinheiro.

Mas é bom se permitir um pouco de ingenuidade no revisitar fabulesco de um adorável elefantinho voador.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 01/04/2019