domingo, 29 de junho de 2014

Jersey Boys

(EUA, 2014) Direção: Clint Eastwood. Com John Lloyd Young, Vincent Piazza, Erich Bergen, Michael Lomenda, Christopher Walken.



Por João Paulo Barreto

Clint Eastwood dirigiu em 1988 o ótimo Bird, cinebiografia da lenda do jazz, Charlie Parker. Filme cuja entrega do protagonista Forest Whitaker e a coragem de um roteiro que não temia flertar com as polêmicas da vida desregrada de Parker, Bird, quando revisto na sequência de Jersey Boys, mais uma cinebiografia musical levada por Eastwood às telas, nos ajuda a perceber de forma clara os erros cometido pelo veterano diretor neste seu novo trabalho.

Não que a obra sobre a maravilhosa banda Four Seasons seja um desastre. Longe disso. Mas, o que sobrava em Bird no que se refere a ousadia, falta (e muito) em Jersey Boys. Talvez por possuir os próprios músicos na produção executiva e a base do roteiro ser o popular musical da Broadway que conta a trajetória do grupo, a chapa branca do trabalho acabou por se tornar mais do que previsível.

Mas, friso, o filme, apesar de suas falhas e superficialidade no abordar da trajetória dos músicos, fica longe de ser descartável. Clint visita a Nova Jersey do começo dos anos 1950, reduto de ítalo-americanos e local onde Francesco Castellucio começaria sua banda se tornando o vocalista de voz melosa Frankie Valli. Em uma reconstrução de época exemplar, (algo que não surpreende em filmes do diretor, como no recente A Troca), a Nova Jersey e a Grande Maçã recriadas por Eastwood e seu habitual diretor de arte Patrick Sullivan impressionam.

Tommy DeVito e seu papo com o espectador
O filme acerta ao inserir os personagens que viriam a compor o Four Seasons em conversas diretas com o espectador, criando uma atmosfera de mockumentary. Já em sua primeira aparição, o guitarrista Tommy DeVito (Vincent Piazza) nos explica sua relação com o lugar onde vive. Fala dos golpes com o amigo Frankie, enquanto este canta e varre o chão da barbearia local tentando aprender o oficio barbeando o mafioso do bairro, Gyp DeCarlo (Christopher Walken sempre divertido). É um mergulho naquele tipo de cultura que Scorsese soube abordar tão bem, mas que Eastwood não teve a mesma ousadia de exibir de forma mais profunda, apenas pincelando todo aquele universo.

Após entradas e saídas de reformatórios, os integrantes da banda vão se consolidando em shows de bar e outros inferninhos. Mudam de nome algumas vezes, até chegar à marca Four Seasons. O momento em que o compositor e pianista Bob Gaudio (Erich Bergen) entra para banda é o mais marcante na trajetória dos rapazes, que passaram a contar com a união perfeita da voz incrível de Valli e a competência como compositor de Gaudio. A partir daí, o sucesso de canções como Big Girls Don´t Cry, Sherry e, finalmente, Can´t Take my Eyes off You, música mais marcante de toda a trajetória do grupo, mas que foi lançada já na fase em que os integrantes se separaram, sendo este um crédito solo de Valli com composição de Gaudio e Bob Crewe.

Frank Valli se arriscando no ramo da barbearia com o mafioso Gyp DeCarlo
Com um foco mais voltado para vida de Valli, o roteiro tenta trazer detalhes da trajetória pessoal do vocalista, mas acaba esbarrando em uma superficialidade que incomoda. Como, por exemplo, a relação do músico com sua esposa alcoólatra e instável, que é exibida apenas como alguém entregue aos vícios, em um perfil unidimensional que causa estranheza ao espectador.

Apesar de pecar nesse desenvolvimento superficial dos seus personagens, Jersey Boys acaba sendo um longa que traz algo da marca simplista de Eastwood filmar. Sem excessos ou a necessidade de apelar para o melodrama, por exemplo, o diretor traz um doloroso momento  da trajetória do grupo em uma rápida sequência, na qual o protagonista perde alguém por demais importante em sua vida. O que de início poderia ser tachado de superficial, afinal, é uma morte traumática que poderia desestabilizar a vida de qualquer um, é colocado por Clint na história sem a necessidade de tirar o filme do seu eixo, mostrando o protagonista em seu luto, mas mantendo a trajetória dos músicos em primeiro plano.

Valli: voz fantástica e trajetória de vida traumática
No entanto, há pontos desse mesmo eixo que são tratados de forma rasa, algo que, de fato, incomoda. A relação do guitarrista Tommy DeVito (cujo nome é o mesmo do personagem de Joe Pesci em Goodfellas) com os agiotas que extorquem a banda é exibida como algo fácil, sem refletir o violento universo que aquela situação possui.  Mais uma vez é perceptível a coragem que um Scorsese teria de adentrar nesse mundo.

Ao final, quando os personagens precisam explicar para a câmera suas motivações (confirmando, assim, a fragilidade do roteiro) e, logo em seguida, são vistos dançando na rua ao som de mais um sucesso do Four Season, consolida-se a impressão que tivemos desde o início. Eastwood se rendeu a uma produção, de fato, chapa branca, com a anuência de seus personagens reais e buscando trazer para a tela a leveza dos musicais da Broadway.


Observação: Note a citação ao próprio Joe Pesci, que teve participação na trajetória da banda sendo também oriundo de Nova Jersey.  

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Hiroshima Meu Amor

(Hiroshima Mon Amour, França, Japão, 1959) Direção: Alain Resnais. Com Emmanuelle Riva, Eiji Okada.

Por João Paulo Barreto

Um dos símbolos mais marcantes da Nouvelle Vague, Hiroshima Mon Amour, do recém falecido diretor Alain Resnais, foi o terceiro filme exibido no Cineclube Glauber Rocha. Projeção em película 35mm, som acachapante, Emmanuelle Riva em toda sua beleza estonteante, equilibrando momentos de felicidade plena com lampejos de tristeza e desespero agonizantes no papel de uma atriz que grava, 14 anos depois da guerra, um filme em Hiroshima sobre a paz mundial.

Resnais apresenta em sua obra uma síntese sensível dos males que a guerra trouxe para o ser humano. Sem ser panfletário, o roteiro de Marguerite Duras tem duas faces de uma dor lancinante que destruiu vidas de forma brutal e que trouxe para a protagonista, uma francesa sem nome (nos créditos, simplesmente batizada de "Elle" - ela, no idioma francês), uma batalha intima e psicológica que parece tirar seu equilíbrio. A guerra terminou, mas suas feridas permanecem abertas nos habitantes de Hiroshima, bem como nas suas torturas mentais.

 
Um dos poucos (e aparentes) momentos de paz
Ao colocar o espectador diante de imagens dos sobreviventes retalhados da explosão nuclear, de pedaços de metal retorcido expostos em museus; peles e cabelos humanos conservados e exibidos como símbolos da insanidade da bomba, Hiroshima Mon Amour constrói uma relação entre toda aquela barbárie física com as dores pessoais de sua protagonista, que não viveu o horror de Hiroshima, mas teve seus reflexos em sua vida. Apaixonada por um soldado inimigo, sua tortura mental em ter perdido esse amor para a guerra a coloca em um conflito de aceitação desta perda e a adaptação de um novo amor que, apesar de fugaz, lhe oferece a atenção necessária para não sucumbir.

Um arquiteto japonês fluente em francês parece representar esse novo amor. Ela, apesar de casada, se deixa levar pela paixão por aquele homem, o qual, pacientemente, tenta entender seus traumas, tornando sua guerra interna menos insuportável. Na resistência em se deixar ajudar pelo anônimo rapaz, ela foge daquela relação, porém, permitindo-se usá-lo como alguém que a escute em sua autoflagelação, cede aos seus cuidados. Em certo momento, ela parece não ter forças nem para erguer um copo, algo que denota bem sua condição física e psicológica. Quando questionada sobre a nacionalidade de sua paixão durante a guerra, silencia por receio de admitir ter se apaixonado pelo inimigo.

A fraqueza diante da dor de um passado revisitado

Resnais construiu uma obra que aborda a culpa e a forma como a mesma pode destruir um ser humano em sua fraqueza e insegurança.Ela passa justamente por isso e tenta fugir de seu passado com a mesma intensidade com que o busca incessantemente em memórias dolorosas e conflitantes. Ao contar sua trajetória de vida, ela retorna a Nevers, cidade francesa onde cresceu e passou pelos momentos de horror durante a guerra. Revisitar aquele passado a esgota, e seu renegar daquela cidade simboliza toda a dor que esta representa. “Jamais voltarei a Nevers”, afirma.

Ao inserir a protagonista em andanças perdidas por uma cidade onde o idioma é um enigma e seus pensamentos seguem à deriva, Resnais nos mostra uma face daquele sofrimento que apenas o encarar do passado pode lhe trazer algum conforto. Curiosamente, é este mesmo encarar que a faz perder o equilíbrio e mergulhar no desespero. Na paixão inconsequente pelo japonês, um vestígio de uma paz fugaz, mas logo suplantada por uma razão que insiste em fazê-la voltar ao comportamento estoico.

Nos desencontros daquela última madrugada juntos em Hiroshima, os dois se percebem presos a um passado comum, maculado pelo trauma de uma guerra que, apesar da insistência mútua pelo esquecimento, acaba aceito por ambos na marcante afirmação de suas origens. “Hiroshima é seu nome”, afirma ela. “Sim. E Nevers é o seu”, replica ele. É quando se conclui que a dor de um passado é algo sem a possibilidade de se suplantar.