quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Tenet

Tenet (EUA,UK, 2020) Direção: Christopher Nolan. Com John David Washington, Robert Pattinson, Kenneth Branagh.


Por João Paulo Barreto

Notório por desafiar sua audiência no desvendar da construção fílmica, o cineasta Christopher Nolan se propõe a transformar seus filmes em uma experiência de decodificação. Se desde sua estreia, com Following (1999), a premissa de buscar por inspiração através do contato com estranhos já apresentava nuances que reverberariam nos ainda mais instigantes Memento (2000), com sua montagem reversa injustamente chamada de "perfume visual", e com o diretor alcançando seu ápice nesse desafiar mental com Inception (2010) e Interstellar (2014), Tenet (2020) apresenta ao espectador um nível maior de comprometimento.

Na história de um agente especial vivido por John David Washington,  chamado apenas de "protagonista" (em mais uma prova da artimanha cinematográfica proposta pelo cineasta britânico), a premissa não é a clichê ideia de se abordar viagens no tempo, mas, sim, inversões deste mesmo tempo e de seus objetos em cena, sejam eles pessoas ou simplesmente materiais. Com isso, Nolan se vê em uma condição de apresentar não somente uma história de espionagem, mas, sim, de quebrar barreiras narrativas para além do que foi colocado em seu roteiro. Logo, a premissa do salvamento de uma mãe e seu filho da violência de um marido bilionário, psicopata e abusivo (vivido com gosto por Kenneth Branagh), permite a camadas bem mais densas dentro de uma proposta que vai além de um simples roteiro de ação e perseguições.

John David Washington e Robert Pattinson

Tais camadas têm, claro, a recompensa visual espetacular já esperada de uma produção desse porte, principalmente com a assinatura do homem que revolucionou a franquia do Batman. Porém a ideia de se criar dentro de um filme linear aspectos de não linearidade (ou uma linearidade inversa) acompanhando  uma mesma construção de montagem é algo que vai além do que foi proposto em 2010, com suas realidades embutidas dentro de uma das outras em A Origem, ou na apenas quebra de cronologia de Memento. Na obra estrelada por Leonardo DiCaprio, suas várias narrativas separadas de algum modo por ambientações distintas e por "tempos" variados, ainda dava a sua audiência um maneira de mergulhar na sua proposta de forma gradativa. Aqui, bom, aqui Nolan vai além.

Sem a intenção de revelar muito da história ao leitor, me proponho nesse texto  a trazer uma análise não de sua trama em si, o que envolveria a necessidade de descrever cenas ou argumentos de Tenet. Porém, sugiro a quem estiver lendo antes de ver o filme que se permita observar a ideia de construção (olha a palavra aqui de novo) de Cinema na obra. Nolan inverte (sim, da sua premissa vem o uso desse verbo aqui) imagens, sons, trajetórias de elementos físicos, de pessoas, tudo dentro de um mesmo enquadramento ou movimento de câmera. Ao se propor em colocar diversas estruturas do fazer cinema dentro de uma mesma suposta linearidade, invertê-las e "brincar" com essas possibilidades, o diretor e roteirista alcança seu intento de desafio sem se perder dentro daquele labirinto. Labirinto, aliás, que se aplica de maneira ainda mais adequada do que em sua obra de 2010.

Washington e Nolan

Tenet, para algo a mais do que sua espetacular sequência envolvendo barras de ouro e um avião gigantesco (algo que, em suas diversas perspectivas, a torna ainda mais precisa) traz em sua essência a ideia do espectador se propor a aceitar um desafio de sair da caixinha da linearidade do cinema com começo, meio e fim sem necessariamente se ater apenas a uma "montagem perfume", como, friso novamente, injustamente são chamados Memento e Inception. Ao levar diversos de seus elementos (pessoas e objetos) a se reencontrarem dentro de um mesmo tempo que, visualmente, parece linear ("o que aconteceu, aconteceu", repete um de seus personagens), percebemos seus diferentes níveis, Nolan propõe, de fato, um desafio ao espectador dentro de sua história. Mas é o que está para além dela que se destaca.

É a ideia de ousar dentro das ferramentas que o cinema pode oferecer.

Ainda mais curioso para saber qual outra barreira essa cara poderá ultrapassar nessa labuta.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A Verdade da Mentira

Política Suja



STREAMING A Verdade da Mentira, documentário que analisa o modo como as notícias falsas (fake news) são propagadas nas redes sociais, chega ao público em oportuno momento eleitoral de 2020

Por João Paulo Barreto

Amanhã completam-se dois anos do segundo turno da eleição presidencial de 2018. Pleito que, hoje comprovadamente, foi marcado por manipulações ilegais da mídia no intuito de alçar ao palácio do Planalto a presente gestão executiva do país. Para citar algumas, o (no momento suspenso ) julgamento da cassação da chapa do atual presidente da República pelo TSE por conta da acusação da invasão e hackeamento, por seus simpatizantes, da página do Facebook "Mulheres Unidas Contra Bolsonaro", que teve seu nome e postagens modificados para parecerem apoiar o truculento candidato de extrema-direita. Logo em seguida, convenientemente, o próprio candidato compartilhou em suas redes sociais um agradecimento ao tal "apoio". A página continha mais de dois milhões de seguidores e sua alteração manipulada foi decisiva na votação. Além disso, nas semanas que antecederam a votação, informações privilegiadas oriundas de um delegado da PF, simpatizante à eleição do atual divulgador de cloroquina, informou à família Bolsonaro acerca da sigilosa investigação que ligava-os ao esquema das rachadinhas, e que a mesma estava para ser deflagrada. Propositalmente, porém, isso só veio a ocorrer após o segundo turno acontecer e o candidato ser eleito com 55,13% dos votos válidos.

Os dois exemplos citados no começo deste texto crítico do documentário A Verdade da Mentira, dirigido por Maria Carolina Telles, foram trazidos aqui com o intuito de gerar uma reflexão acerca do quão impactante e importante é para o espectador/leitor/eleitor ter ciência do como sua presença em mídias sociais é algo a ser visto com sagacidade. Além disso, ter a noção exata de como seus meios pessoais de busca por informações e critérios para analisar notícias vão influenciá-lo(a) nas suas escolhas políticas e, por consequência, no como tais escolhas influenciarão toda uma sociedade por quatro anos. O modo de manipulação desonesta de uma página com milhões de seguidores, bem como o vazamento de uma investigação sigilosa por alguém cuja imprescindível obrigação com a Justiça ficou abaixo dos seus conchavos com uma família sob diversas investigações criminais, conseguiram delinear os nortes de um país. Exatos dois anos depois, nos afogamos em um período no qual a desinformação é regra para o chefe do executivo e as guerras ideológicas sobrepõem prioridades de salvar as vidas de 155 mil vítimas de um vírus cujo impedimento de propagação fica em segundo plano perante os interesses de poucos.

Para a primeira pergunta, temos a resposta exata

ROBÔS DE PROPAGAÇÃO

O documentário A Verdade da Mentira volta ao período de dois anos atrás para falar sobre como tudo se prenunciava e em como parecia, ainda, não ser possível evitar o modo como as eleições poderiam ser manipuladas através das fake news. O filme inicia, a partir da pesquisa da jornalista Petria Chaves, com uma entrevista de fonte sigilosa falando sobre como os robôs virtuais (perfis gerados por ele para desencadear mensagens em massa) passaram a funcionar como meio de propagação de informações nas redes. Corta para o jornalista Pedro Doria, editor do Canal Meio,  salientando o fato de que a mentira sempre existiu no jogo eleitoral, mas que "quando você joga meios digitais, a velocidade e alcance da mentira é muito maior. (...) Da maneira como existe hoje, (essa propagação) jamais existiu. Isso é novo", explana.  Corta novamente para a fala da ministra do TSE, Rosa Weber, que, em uma afirmação perigosa e preguiçosa, afirma que a descoberta de um modo para impedir as fake news seria "um milagre". Uma frase que, captada em um aparentemente longínquo 2018, soa como um alerta para a conivência de altos escalões governamentais diante do que lhes parece conveniente no atual estado das coisas.

Voltamos ao caótico 2020, e vemos redes sociais como Twitter, Facebook e Instagram criando filtros de checagem de fatos e marcando as publicações como notícias falsas quando as mesmas trazem informações não confirmadas. Em resumo, tal "milagre" requeria "apenas" fiscalização da sociedade e do estado, bem como investimento e responsabilidade das empresas por trás das redes sociais. Os dois momentos citados tornam-se simbólicos do documentário. O primeiro em sua abertura, e o segundo em seus momentos finais. No ínterim entre os dois pontos, A Verdade da Mentira vai construindo para sua audiência uma análise de como as redes sociais se tornaram o "quinto elemento na estrutura política do Brasil e do mundo", trazendo, através de depoimentos de especialistas, comprovações da forma como a desinformação direcionada ganhou espaço dentro das mesmas redes.

Pedro Doria (Canal Meio): alerta sobre a perda da democracia

DIDATISMO BENÉFICO

O modo didático como o documentário traz seus fatos contribui de maneira positiva para que a reflexão acerca de um tema tão urgente chegue de forma mais orgânica ao seu público. Por exemplo,  ao visitar uma agência de monitoramento do alcance de postagens falsas, a Sala de Democracia Digital, parte do departamento de pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, a jornalista Petria Chaves ouve o coordenador Amaro Grassi explicar que a agência não investiga a notícia falsa em si, mas, sim, o seu alcance feitos por robôs dentro das redes sociais. Provando o necessário didatismo do doc, um gráfico ilustrativo que pode soar redundante ao entendimento, mas que é importante para tornar claro ao público como funciona o processo, é exibido. Em seguida,  Chaves visita a agência de checagem de fatos Lupa, na qual conversa com a jornalista Cristina Tardáguila, sua fundadora. Na entrevista, Tardáguila apresenta uma análise de fotografias falsas compartilhadas por sites tanto de tendência de esquerda quanto de direita, nas quais os fatos são distorcidos. As duas fotos, até o momento em que a agência de checagem as comprovou publicamente como falsas, haviam sido compartilhadas milhares de vezes (e permaneceram no ar mesmo após a checagem) contribuindo para acirrar teorias conspiratórias inúteis e oportunistas, bem como a violência dos diálogos nas redes. 

Petria Chaves entrevista Cristina Tardáguila

"Uma das premissas da democracia é a população estar bem informada. (...) Se a sua única fonte de informação é o próprio governo, você perdeu a democracia.", alerta Pedro Doria, do Canal Meio. A frase é dita em um contexto atrelado ao mesmo cuidado frisado aqui anteriormente: o de buscar fontes concretas do Jornalismo honesto em suas maneiras de se informar. Em um governo atual "capitaneado" por um projeto de ditador genocida que aposta suas fichas na desinformação das redes sociais, na busca pela difamação dos meios de imprensa que não lhe agradem, e que atiça seguidores contra tais meios, bem como sentencia-os a "calar a boca" e ameaça-lhes "encher a boca de porrada" quando uma pergunta lhe é feita, bom, temos o resultado claro de como a manipulação midiática consegue eleger canalhas.

A Verdade da Mentira
Assista no Net Now, Looke e Vivo Play


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 27/10/2020





sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Glen Keane

Ao Mestre 

com Carinho


NETFLIX Glen Keane, mestre lendário do cinema de animação, fala sobre A Caminho da Lua, filme realizado durante a quarentena, bem como sua trajetória nos desafios enfrentados ao deixar a Disney para trás

Por João Paulo Barreto

Glen Keane é dono de uma estrada impressionante dentro do cinema de animação. Presente como animador em obras marcantes dos estúdios Disney como Bernardo e Bianca, A Pequena Sereia, A Bela e a Fera, Aladdin, Pocahontas, Tarzan, entre outros, Keane construiu uma reputação de respeito dentro do gigantesco (e, agora, nocivo e monopolizador) castelo do Mickey. Porém, após décadas dentro desse mesmo castelo, a criatividade do ganhador do Oscar pelo curta Dear Basketball,  estava sendo aprisionada.  "Eu não pensava que a vida aconteceria assim. Mas houve um momento  na Disney em que eu percebi que precisava estar fora daquela zona de conforto. E lá havia se tornado muito confortável para mim. Como artista, eu adorava estar lá. Mas, eu sentia que havia algo a mais que eu não saberia como fazer se estivesse na Disney", explica o cineasta em entrevista coletiva através do Zoom.

Assim, Glen, há oito anos, após uma sólida carreira de décadas construída na Disney, resolveu se aventurar fora dessa zona de conforto. O resultado não poderia ter sido melhor.  "Lembro da minha esposa perguntando: 'Se você sair da Disney, para onde você vai? O que você vai fazer?' Eu disse: 'Eu não sei. Google?' Ela disse: 'Google? Eles não produzem animação.'  Ao que eu repliquei: 'Eu sei, mas não seria maravilhoso levar o que eu sei, o que eu aprendi, e aplicar a lugares que são inteiramente novos na animação?' E essa acabou sendo a primeira coisa que aconteceu quando recebi uma ligação do Google depois que sai da Disney", contextualiza o cineasta. Assim, Glen dirigiu o curta Duet, uma bela experiência técnica realizada em 360º de realidade virtual acerca do crescer em sonhos e alcances pessoais. Em seguida, uma parceria com o Ballet de Paris, através do Garnier Opera House, trouxe à vida Nephtali, curta que mistura live action com animação ao abordar com singeleza a criação da arte da dança através de uma bailarina. No ano seguinte, um telefonema do saudoso Kobe Bryant deu um novo norte à carreira de Mr. Keane.

Kobe e Glen durante a cerimônia do Oscar 2017

OSCAR  E SUPERAÇÃO

"'Kobe, você sabe que tens o pior jogador de basquete na Terra fazendo essa animação para você?' E ele disse que estava tudo bem, porque eu iria aprender tudo através dele", relembra Glen ao pensar no começo da relação frutífera que teria com a lenda do basquete, Kobe Bryant. A amizade gerou o belo relato Dear Basketball, uma carta de despedida do jogador ao esporte que lhe dera uma carreira. Desenhado a mão, o curta metragem de 2017 acabou, infelizmente, ganhando uma face de epitáfio para o atleta, que faleceu, junto a sua filha, em janeiro desse ano em um desastre de helicóptero. "Ele era meu amigo. Aquela foi uma perda imensurável", lamenta Glen Keane. A parceria e amizade gerou o primeiro Oscar ao cineasta e ao próprio jogador, que assinou o roteiro do curta.

O passo seguinte seria, claro, a direção de um longa metragem.  Com a Netflix começando a desenvolver um braço na produção de animações, o projeto A Caminho da Lua, uma aventura musical infantil que aborda a perda e a superação de uma garotinha chinesa cuja mãe morre de câncer, se apresentou como o maior desafio para a profícua carreira de Keane. O roteiro foi escrito por Audrey Wells (de O Sol sob Toscana e Duas Vidas, com Bruce Willis) que, infelizmente, não pôde ver o projeto pronto, pois veio a falecer em decorrência, também, de um câncer. Com um foco na história de Fei Fei, a jovem que, buscando superar a orfandade, constrói um foguete para a lua onde vive Chang-o, lendária personagem do folclore chinês, cujas histórias ouvia a mãe contar, A Caminho da Lua se tornou um legado de Audrey Wells em relação à sua própria filha. Glen explica: "Essa história é algo muito pessoal para Audrey Wells, que escreveu o filme, mas não pôde estar aqui para vê-lo pronto. Para nós, dar algo à sua filha não era uma meta teórica, mas, sim, real. Nós colocamos essa meta como algo vindo do coração. Nós priorizamos isso", pontua.

Glen Keane e a arte de A Caminho da Lua

O filme teve sua produção interrompida em março, quando, subitamente, a sede da Netflix foi fechada e todos tiveram que deixar o local por conta da pandemia. "Tínhamos importantes deadlines todas as sextas. Em uma quinta-feira, às 11h da manhã, minha produtora chegou e disse que a Netflix estava fechando o prédio e que nós tínhamos que ir embora naquele momento. Às 11h30min, todos tínhamos ido embora. E não voltamos àquele prédio desde então. Os copos de café devem ainda estar lá nas mesas. Os casacos ainda estão pendurados nas cadeiras", pontua Glen. A produção de A Caminho da Lua precisou se adaptar a um formato, até então, inédito, com os profissionais atuando de suas casas. " A única maneira pela qual nós fomos capazes de realizar esse filme dessa forma é pelo fato de acreditarmos que estávamos trabalhando em algo que era maior do que todos nós. Ninguém queria ser o elo fraco que poderia causar um fracasso na produção. Cada um foi para sua casa e, de alguma modo, nos próprios computadores, continuamos a trabalhar. Continuamos a construir o design de figurino; a criar a animação de cabelo, criar a gravação das músicas", relembra o cineasta.

RESPEITO ÀS CULTURAS

No foco de uma animação como A Caminho da Lua, cujo tema central é o folclore de um lugar tão rico culturalmente quanto a China, Glen Keane explica que sua aproximação com o país o ajudou a lidar da maneira ainda mais respeitosa em sua abordagem. "Eu fui para a China no ano passado com uma expectativa grande de encontrar pessoas que eram tão autênticas e reais quanto eu mesmo. Eu só queria conhecê-las. Quando cheguei lá, fui a uma escola onde havia crianças que me lembraram meus próprios netos. Eles correram em minha direção. Uma centena em minha volta. Eles pensaram que eu era Walt Disney (risos). Eles eram tão maravilhosos. Havia uma aula de animação para crianças da terceira série. Pequenas crianças de dez anos de idade aprendendo a fazer animação! Eu sentei na sala de aula deles e os assisti fingindo serem Kobe Bryant e fazendo cestas no basquete", sorri Glen durante a conversa.

As tradições familiares chinesas são focos da animação 

Em um período de tensões políticas envolvendo a China, Glen salienta seu foco no aspecto intelectual e cultural chinês. "Em certo momento, o governo chinês estava bem entusiasmado com nosso filme. Eles perguntaram se nós poderíamos encontrar um espaço na animação para citar o veículo espacial criado por eles. Pareceu, para nós, natural abraçar não somente a lenda, como também a cultura atual, como o trem de levitação magnética e o veículo lunar.E eu me recusei a escutar outra coisa a não ser as melhores intenções de uma nação que quer crescer, enriquecer suas tecnologias, suas histórias, o amor por suas famílias, por sua culinária, por sua arte e por sua música. Tudo isso foram as coisas que me inspiraram. Então, eu escolhi ignorar quaisquer fossem as situações políticas que estávamos atravessando, e focar nas coisas que eu sabia que realmente significavam muito para mim". 

Sabedoria real de um mestre.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 24/10/2020

 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Revista Elipse

 Jornalismo Cultural
no meio impresso resiste


AUDIOVISUAL Única revista impressa exclusivamente voltada ao Cinema Brasileiro em seus vários aspectos de produção, a Elipse traz ao segundo exemplar um foco na Bahia

Por João Paulo Barreto

Durante a entrevista para o Jornal A Tarde, o editor-chefe da Revista Elipse, Paulo Henrique Silva, cravou uma precisa análise da triste, porém necessária, metáfora existente no nome da única publicação impressa  atualmente dedicada aos variados aspectos de criação do Cinema Brasileiro:  "Depois de duas décadas de uma produção contínua, de uma mesma política, um pensamento para o cinema brasileiro, isso está sendo, mais uma vez, descontinuado. Mas buscamos outras maneiras de pensar. E eu acho que a (palavra) elipse é muito clara nesse sentido. Agora, estamos um pouquinho longe do sol, mas vamos fazer esse movimento. Daqui a pouco, estaremos próximos e vamos nos aquecer de novo."

Ao manter um olhar voltado à produção nacional, a revista Elipse, concebida em Minas Gerais pela ONG Contato, salienta a importância do nosso Cinema como modo de propagação da Cultura Brasileira, bem como um potente gerador de emprego e renda. Algo, hoje, ainda mais urgente. E esse salientar acontece de modo embasado, distante de falácias e "achismos" que regram a opinião comum que busca marginalizar a produção cinematográfica do país. Na leitura da Elipse, é perceptível uma preocupação com tal embasamento das informações apresentadas, mantendo um senso crítico, sim, mas, do mesmo modo, apresentado fatos concretos, oriundos de pesquisas oficiais, para comprovar a estupidez governamental de um projeto de executivo calcado em birras, polêmicas infundadas  e em um proposital e leviano interesse na desinformação como plataforma política.

O editor Paulo Henrique Silva e o exemplar dois da revista Elipse

Paulo Henrique explica uma das mais elucidativas e importantes seções da Elipse no aspecto da abordagem do Cinema como meio de geração de renda e de uma identidade. "Temos uma coluna do Alfredo Manevy, que foi secretário do Ministério da Cultura e presidente da SPCine. Alguém que conhece profundamente a história da política cultural no país desde muito tempo. Quando ele fala sobre a falta que o MinC faz em um governo como o de hoje, faz todo sentido. Porque você vê a Cultura está sendo jogada de secretaria em secretaria, de ministério em ministério, mostrando qual é a dimensão que esse governo tem dela. Enquanto você tem um ministério, você valoriza a Cultura de um país. Você tem como criar mecanismo para capacitar mais. Engrandecer mais essa arte que é produzida. Historicamente, isso é comprovado em números. O retorno quando você tem um ministério, quando você investe fortemente na Cultura do país, e o que isso traz simbolicamente e economicamente, também." 

BAHIA EM DESTAQUE

Após a edição 1 trazer a atriz paraense Dira Paes na capa e um foco na produção cinematográfica mineira, a ponte Minas com Bahia é feita para o exemplar 2.  Duas entrevistas pujantes com dois dos principais nomes recentes da atuação oriundos do estado apresentam um panorama analítico do cenário: Wagner Moura e Fabrício Boliveira. O diretor de Marighela traz um relato profundo sobre vivermos a época do "triunfo do homem medíocre", quando governantes de dois dos principais países economicamente relevantes no mundo apresentam uma "predisposição psicopática" durante a atual crise pandêmica. Paulo Henrique explica que " a entrevista é muito forte na maneira como ele (Wagner Moura) percebe o Cinema, a Cultura e a própria política do Brasil. E isso vindo de uma pessoa que está morando (a trabalho) nos Estados Unidos, país com um governante que é, também, conservador, e que tomou atitudes muito semelhantes (às do daqui) no início da pandemia em relação ao enfrentamento da doença viral. O Wagner, na entrevista, fala sobre isso com muita propriedade. Nós queríamos uma entrevista que fosse algo de fôlego, como aconteceu na primeira edição, quando a capa foi com a Dira Paes", compara.

Fabrício Boliveira é um dos destaques da Bahia presente

Na presença de Fabrício Boliveira como outro destaque da Bahia na edição de Elipse, uma conversa sobre questões de raça dentro do audiovisual, bem como acerca das atitudes predatórias do governo contra o potencial de uma indústria como a cultural. "Nessa entrevista, ele falou sobre a idiotice que é a atitude de um governo ir contra o próprio Cinema. Porque o Cinema é economia. O audiovisual movimenta muito mais recursos que outros setores da economia. É dinheiro que está sendo investido em diversas áreas do audiovisual. Então, é uma burrice", contextualiza Paulo. O editor-chefe da Elipse salienta, ainda, a fala de Boliveira na comprovação de que, apesar da sabotagem, o movimento cinematográfico não vai parar. " Os grupos e os coletivos vão continuar fazendo cinema. Mesmo que seja na guerrilha", pontua.

Com matéria sobre a rica produção do cinema de animação na Bahia; uma reportagem sobre Café, Pepi e Limão, próximo lançamento de Lula Oliveira (DocDoma), bem como um resgate de duas obras simbólicas a tratar dos aspectos da religiosidade de matriz africana e da diáspora (Barravento, de Glauber; e Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro) em um brilhante artigo escrito por um professor e babalorixá, o acadêmico Erisvaldo Pereira dos Santos, a edição dois de Elipse abrange, em suas 72 páginas, um panorama histórico do cinema baiano, sem deixar de focar no futuro desse cenário.

"Quando começamos a pensar a número 2, chegou a passar pela cabeça a possibilidade de lançar tudo digital. Mas, não. O carinho das pessoas (pelo impresso) ficou evidente. Vamos perceber isso daqui a dez, quinze anos, quando alguém chegar e falar que tem guardada a revista até hoje. Que tem muito carinho com ela, que a usa como fonte para as matérias, para as pesquisas, para os estudos", finaliza Paulo no viés da preservação tão necessária do aspecto físico do cinema brasileiro.

REVISTA ELIPSE
72 Páginas
Pode ser solicitada gratuitamente pelo e-mail

ongcontato@gmail.com

EDIÇÃO 1 DA REVISTA https://issuu.com/ongcontato/docs/elipse1

EDIÇÃO 2 DA REVISTA https://issuu.com/ongcontato/docs/elipse2


*Texto originalmente publiFcado no Jornal A Tarde, dia 21/10/2020




domingo, 11 de outubro de 2020

HQ Arquivos Secretos da Segunda Guerra Mundial

 Sequências de
 Guerra


Com desenhista baiano na criação, HQ Arquivos Secretos da Segunda Guerra Mundial
traz abordagem profunda e fatos reais do Brasil no conflito, bem como liberdade
para um viés calcado no fantástico

Por João Paulo Barreto

Dentro dos quadrinhos voltados para um público não infantil, o tema das guerras e suas consequências físicas e psicológicas nos seres humanos  sempre foi um terreno incrivelmente fértil para abordagens mais densas e desafiadoras. Tais desafios de narrativas chegam tanto a desenhistas quanto a roteiristas, inclusive. Pensar em obras como Persépolis, Ás Inimigo, Maus, Leões de Bagdá, O Árabe do Futuro, Crônicas de Jerusalém, para citar algumas, nos dá uma confirmação de como a insanidade dos conflitos bélicos, além de suas consequências monstruosas, podem gerar obras de reflexões urgentes, e que, muitas vezes, são oriundas das próprias vivências dos artistas por trás da criação daquelas páginas. Em outras, o estudo aprofundado e a fidelidade às pesquisas de fatos em torno do período histórico rendem narrativas que, baseadas em fatos real, trazem ao leitor uma imersão dentro daqueles dias sombrios. Do mesmo modo, a liberdade criativa e imaginativa de desenhistas e roteiristas podem mesclar aquelas realidades a situações em que o fantástico oferece resultados catárticos e recompensas narrativas que preencham as imersões destes mesmos leitores.

Trechos de Arquivos Secretos da WWII - Arte de Ademir Leal

Arquivos Secretos da Segunda Guerra Mundial é um exemplo desse tipo de proposta. Com 160 páginas, o quadrinho lançado pela Editora Draco alcançou mais de 300% de sua meta de financiamento coletivo, permitindo, assim, a editora investir em um acabamento de qualidade, imprimir e lançar o material no mercado. Dentre as histórias na coletânea, Ligeiro, desenhada pelo artista baiano, Ademir Leal, e roteirizada por Celso Menezes, aborda a participação brasileira na Segunda Guerra durante as missões dos pracinhas na Itália fascista de Mussolini.  "Como apreciador de temas militares, venho estudando sempre sobre os fatos e histórias da FEB (Força Expedicionária Brasileira) durante a Segunda Guerra Mundial com historiadores, tendo meu próprio acervo digital contendo imagens de armamentos, uniformes, mapas, livros e datas de conflitos. Com isso, facilitou a elaboração da HQ Ligeiro usando essas referências, tornando-se prazerosa em fazer e estruturar o contexto com o roteiro, e entregar o projeto conforme Celso e Raphael (Fernandes, editor) esperavam", explica Ademir acerca do processo de junção do texto escrito por Celso com sua arte.

O desenhista Ademir Leal em seu ambiente de criação

O roteirista Celso Menezes com um dos livros de sua pesquisa

TRAÇO E TEXTO

Ainda no quesito da criação textual e casamento com imagens, o roteirista Celso Menezes já vem de experiências prévias na abordagem acerca da Segunda Guerra. Autor de Jambocks!,quadrinho  lançado há dez anos e que traz uma abordagem voltada para a Força Aérea Brasileira, Celso trouxe para a escrita de Ligeiro essa experiência alcançada durante suas entrevistas e pesquisas.  "Quando pesquisei para o Jambocks!, reuni material para uns dez livros, pelo menos. Quando o Raphael (Fernandes, editor)  fez a proposta, não demorou muito para eu me lembrar de algo que tivesse achado interessante. Cada cena e personagem foram baseados em algo ou alguém que existiu. Eu só adaptei para as vinte páginas. Sobre os layouts, eu tento deixar o artista livre para explorar seu talento como narrador visual. Às vezes, eu detalho uma cena para uma melhor compreensão, mas, no geral, eu tento deixar algumas lacunas para serem exploradas pelo desenhista. E, assim como foi com o Felipe Massafera, em Jambocks!, toda colaboração do Ademir engrandeceu o resultado. Cada vez que chegava uma página, eu notava como ele é um artista nato", elogia Celso.

Dono de um traço realista, Ademir Leal cita diversos nomes centrais que o influenciaram no desenvolvimento de um talento impressionante para o desenho gráfico. "Sempre fui apaixonado pela arte do realismo, no estilo de pintura barroco de Caravaggio, dos artistas mais atuais como Norman Rockewell, Frank Frazetta e quadrinistas como Alex Ross, Stuart Immonen, Olivier Coipel e Riccardo Federici.  Tenho me inspirado nesses artistas e em vários outros", explica.  Do mesmo modo que diversos desses nomes, Ademir também começou a treinar seu traço artístico ainda na infância, tendo a disciplina e o foco como direcionamentos. "Sou autodidata. Comecei a desenhar desde os 4 anos de idade, e sempre tive em mente de que queria seguir nessa área como profissional. Há 15 anos, não imaginaria que estaria voltado para área digital, quadrinhos e gráficos. Meus planos eram trabalhar como retratista e pintura em tela. Mas, hoje, trabalho com tudo. Sempre estudo tudo que é voltado para artes, seja tradicional ou digital", explica o desenhista.


Página de abertura da história Ligeiro

GUERRA ATUAL

Em um tema tão importante quanto o resgate da História, principalmente em um 2020 no qual somos governados por pretensos autoritários que carregam em seus discursos ações que rimam com um neofascismo centrado no espalhar de informações falsas, falar da Segunda Guerra Mundial, mesmo através dos quadrinhos, é um modo de salientar ações de luta contra esse mesmo fascismo que baseou atuais correntes políticas extremistas. Celso Menezes aborda essa ideia de preservação histórica a partir de sua pesquisa. "Apesar do trabalho de resgate e conservação da memória e patrimônio histórico no Brasil serem uma vergonha desde sempre, há um vasto material produzido através de conversas com veteranos. Tive a felicidade de entrevistar alguns da FAB (Força Aérea Brasileira) e isso enriqueceu muito a minha pesquisa", explica Celso.

Do mesmo modo, a abordagem da escrita perante os acontecimentos trágicos em uma guerra é algo que se torna uma marca do tipo de história. Porém, a abordagem de soldados brasileiros diferencia Ligeiro de outros quadrinhos. "As estruturas dos acontecimentos e dramas já foram muito exploradas. O medo de morrer, o temor de matar, o frio, a lama, a fome, os colegas sendo mortos... tudo isso é meio universal numa guerra. O que eu acho que diferencia o brasileiro é um certo senso de humor e capacidade de adaptação a dificuldades. Em Ligeiro, eu tento passar um pouco disso. Apesar da situação tensa que os personagens estão passando, sempre há um espaço para o inusitado", finaliza Celso Menezes.


*Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, dia 12/10/2020 





 

 

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Lennon 80

 


MEMÓRIA  Nascido há 80 anos, John Lennon nos faz refletir acerca de sua ausência e legado como um artista ciente da sua função imprescindível perante a sociedade que o alçou: 
a de questioná-la sempre

Por João Paulo Barreto

Imaginar o que os quarenta anos a mais que a vida ficou lhe devendo e poderia lhe trazer em termos de novos desafios artísticos, reinvenções como músico e buscas na cura para seus muitos conflitos internos é um exercício curioso ao pensarmos em um John Lennon octogenário em pleno 2020. Imaginá-lo passar por toda Era Reagan, nos exageros consumistas do país que o beatle adotara para viver; imaginar um John afiado em protestos contra Bush pai e a intervenção estadunidense na guerra do Iraque; ou, ainda, pensar em John testemunhando os EUA repetir os mesmos erros com Bush filho tanto na derrocada do 11 de setembro quanto na nova intervenção militar dos Estados Unidos (ou a atual Trumplandia negacionista) no Oriente Médio, é um esforço mental deveras pertinente. Isso para, ao menos, tentarmos visualizar um século XXI no qual a figura de John Lennon permaneceu não como a lenda que ele se tornou, mas, sim, como uma presença física ainda necessária para influenciar mentes e ações.

Quando foi assassinado em 08 de dezembro de 1980, John Lennon deixou para trás não somente sua presença física nesse planeta. Ao ser baleado em frente ao prédio onde morava, naquela fria Nova York de final de ano, John deixou para trás a ideia física do ídolo, do artista interessado em compor, em lançar suas impressões de mundo em letras e acordes, para se tornar um símbolo. Naquele momento, o Lennon artista era apenas John, pai de Sean e de Julian. Porém, durante toda aquela década anterior, tal símbolo já havia começado a se tornar, a partir de letras como Power to the People, Gimme Some Truth e, claro, Imagine, algo para além do "simples" artista John Lennon . Com participações em atos públicos de protestos,  campanhas pelo fim da guerra do Vietnam e ações de conscientização feitas a partir do próprio quarto de hotel, ao lado de sua esposa, Yoko Ono, Lennon já havia começado a se tornar aquela ideia que a sua partida precoce consolidaria dentro da noção exata de lenda. Até aquele momento, John era o homem, o artista. Após aquela trágica e chocante noite, ele se tornou um ideal.

John e Sean Lennon em 1980

VIDA PLENA

Esse texto, apesar do tom inicialmente trágico, não serve para nos lembrar do músico a partir da sua partida, mas, sim, a partir de sua vida. Alçado à fama como em uma explosão ao lado dos amigos de adolescência, Paul, George e Ringo, John teve no desafio do sucesso a missão de se manter são diante de um mundo que se apresentou aos quatro quase como um monstro a engoli-los. No decorrer dos anos 1960, sua evolução como letrista e músico, junto com a de seu parceiro, Paul, ditou as tendências e os desafios de um novo contexto cultural que se apresentava .  Mas, para ele, a noção era outra. "Nós éramos apenas uma banda que conseguiu um sucesso muito, muito grande. Só isso", disse John em uma entrevista sobre os primórdios dos Beatles. Porém, aquele tsunami de sucesso não foi algo para o qual ele estava preparado. É notória, por exemplo, sua crise emocional trazida à tona em Help!, com sua letra de literal pedido de ajuda, ou a fase pré Sgt. Pepper, quando passara por crises de depressão pesadas durante o período de criação de  Strawberry Fields Forever. Seu vicio em heroína, que só não o destruiu no final dos anos 1960 por causa de Yoko, seria retratado na letra de Cold Turkey, uma das brilhantes em sua carreira solo.

John viria a encontrar parte da sua paz durante os anos 1970, quando pôde, junto à esposa, expor a criatividade e os anseios de ambos através de diversas expressões artísticas e atos de protesto. Em 1975, resolveu se desligar de tudo e dedicar-se por cinco anos à paternidade do filho com Yoko, Sean. Ausente da criação de Julian, decidiu não cometer o mesmo erro. Melhor escolha que fez. Ao voltar ao trabalho, cinco anos depois, foi impedido de continuar.

John e Lizzie Bravo em 1967

JOHN POR SEUS FÃS

Lizzie Bravo tinha 15 anos quando desembarcou em Londres a 14 de fevereiro de 1967. Mal teve tempo de deixar as malas no albergue, e foi arrastada pela amiga Denise para a frente do Abbey Road Studios, local onde os Beatles gravavam o Sgt. Pepper Lonely Hearts Club Band, naquele rigoroso inverno britânico. Logo no primeiro dia, estaria de frente para seus ídolos. Menos de um ano depois, cantaria com eles na faixa Across the Universe. "No meu primeiro dia em frente aos estúdios, algumas horas depois de chegar lá, eu já me deparei com eles. Primeiro saíram John e Ringo. Depois, Paul e George, junto com o Brian Epstein", relembra Lizzie e indaga: "Você imagina o choque? Em um dia eu estou no Leme, Rio de Janeiro. No dia seguinte, estou vendo os quatro Beatles . Foi meio de supetão. Foi de uma vez."

Após meses comparecendo diariamente à frente dos estúdios junto a outros fãs dos Beatles, Lizzie criou uma confortável relação com a banda, vendo-os com frequência e conversando com eles. Em 04 de fevereiro de 1968, Paul McCartney saiu e perguntou se alguma das garotas ali presentes conseguia manter um tom agudo enquanto cantava. Lizzie Bravo e Gayleen Pease foram as escolhidas para cantar em Across the Universe junto com os Beatles. "O clima estava super agradável, tranquilo. Sem pressão nenhuma. Um clima leve, engraçado. Foi uma experiência única. O John me chamou para cantar no microfone com ele. Naquele momento, a minha emoção era uma emoção de menina apaixonada. Em nenhum momento eu pensei: 'estou cantando com um dos maiores ícones..,' sabe?", relembra Lizzie que, nos anos seguintes, se tornaria cantora e gravaria com diversos nomes da MPB.

John e Marco Antonio Mallagoli em 1980

Marco Antonio Mallagoli, outro fã que conheceu John Lennon, estava iniciando a empreitada de abrir o Fã Clube Revolution dos Beatles no Brasil, quando esteve em Nova Iorque há exatos quarenta anos, ocasião em John completaria 40 anos de idade. "Eu estava na cidade e deixei uns dias para ficar de plantão na porta do Edifício Dakota. No dia 08, John saiu, entrou no carro e algumas pessoas lhe desejaram feliz aniversário. Ele acenou e agradeceu. Eu havia levado comigo o disco brasileiro Os Reis do Iê Iê Iê (Versão nacional de A Hard Day's Night) e pedi ao porteiro para lhe entregar", conta Marco. No dia seguinte, data do aniversário, para a surpresa do brasileiro, o assistente de John, que havia trazido presentes para os fãs, lhe falou que o músico havia gostado muito do presente e que passara o dia ouvindo Beatles, algo que não fazia há anos. Mas foi somente no dia 10 que Marco pôde realizar o sonho de conversar com seu ídolo. Ele relembra: "Foi uma emoção muito grande. Lembro que lhe perguntei sobre o novo disco e o convidei para tocar no Brasil. Ele falou da turnê que ia iniciar, e que pretendia ir ao Brasil. E aí ele falou uma coisa muito importante para mim. Eu vejo isso como uma frase muito significativa na vida dele e dos Beatles. Ele falou: 'Depois que eu terminar essa turnê, eu vou chegar aqui em NY e ligarei para os outros três para perguntar o que a gente vai fazer da vida'". E ficamos com aquela sensação de que poderia ter sido diferente caso aquele 1980 terminasse de outra forma.

Em Lizzie Bravo, a data do aniversário gera um sentimento estranho. "Eu acho estranho comemorar o aniversário de uma pessoa que não está mais aqui. Vamos celebrar o nascimento dele, mas, infelizmente, ele não está aqui para se desejar feliz aniversário. É difícil falar do John, porque ele é uma pessoa tão importante na minha vida. Eu me sinto muito privilegiada de ter podido ficar um pouquinho perto dele. Mesmo na condição de quase criança e fã, mas, um pouquinho, eu consegui. E, também, eu tenho orgulho de ter deixado uma gotinha mínima de Brasil na história dos Beatles com a minha voz no Across the Universe", finaliza. 

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 09/10/2020




 


sábado, 3 de outubro de 2020

Goodfellas 30 Anos

 Crime e Castigo


CLÁSSICO 
Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese, completa trinta anos trazendo a tragédia de uma vida dedicada ao crime, bem como a reflexão da falácia dos EUA como a "terra da oportunidade"

Por João Paulo Barreto

É uma rima temática irresistível comparar o aniversário de trinta anos de Goodfellas (Os Bons Companheiros, no Brasil), obra-prima que Martin Scorsese dirigiu em 1990, ao período de também trinta anos que o seu protagonista baseado em uma pessoa real, Henry Hill, passou dentro do mundo da máfia. Da mesma forma como a estrada do garoto de 12 anos que começou seu contato com os Ciceros, família de criminosos com atividades nos subúrbios de Nova Iorque, a estrada do filme de Scorsese durante estas três décadas foi de ascensão e alcance de um status de admiração únicos. Aqui, claro, dentro da História do Cinema. No caso de Hill, essa evolução dentro de um glamour criminoso teve um norte diferente. Nesta relação temporal das duas trajetórias,  usadas neste preâmbulo como simples ilustração comparativa, a diferença da trágica virada de Henry Hill após o mesmo período de trinta anos a contar dos seus primeiros e pequenos delitos sob a guarda dos Cíceros, encontrou sua derrocada de maneira bem menos "brilhante" do que os seus engenhosos e lucrativos esquemas.  

Em uma das frases proferidas por Hill (na voice over precisa de Ray Liotta), a definição de sua existência em uma simples bravata: "Se nós queríamos alguma coisa, apenas pegávamos. Se alguém reclamasse, apanhava tanto que nunca mais abriria a boca."  No mesmo contexto, o golpista definia a sua ideia de mundo: "Não havia outra forma de viver para nós. Aqueles que trabalhavam em seus empregos de merda, por um contracheque vagabundo, preocupando-se com boletos e pegando metrô cheio, estavam mortos. Não tinham a nossa coragem." Na visão deturpada de mundo daquele garoto que crescera em uma casa com outros seis irmãos (um deles paralítico), um pai eletricista (e de temperamento explosivo), uma mãe dona de casa, todos passando dificuldades financeiras, conseguir um destaque social mesmo dentro do crime e se tornar um gangster era "melhor do que se tornar presidente dos Estados Unidos". A ironia de ver, trinta anos depois, milicianos e pretensos gangsters nos cargos mais altos daquele país e do nosso é de nos fazer lamentar com os dentes trincados.


Henry Hill: "Melhor do que ser o presidente"


LIVRO ORIGINAL

Na obra baseada em fatos reais, o verdadeiro Henry Hill inspirou o livro escrito pelo jornalista Nicholas Pileggi, que lançara, em 1985, Wiseguy - Life in a Mafia Family. Pileggi entrevistou Hill durante anos, após o seu acordo de delação com o departamento de narcóticos dos Estados Unidos. Quando, após a publicação do livro, o telefone tocou na casa de Pileggi e, do outro lado linha, alguém falou: "Aqui é Marty, o diretor", Pileggi respondeu: "Sei quem você é. Eu venho esperando por uma ligação sua a minha vida toda". Não para menos. O intenso livro escrito por Pileggi tinha todas as características visuais de uma obra dirigida pelo homem por trás de Touro Indomável .   

Lá estava a trajetória de um homem solitário (aqui, apesar de seu título retratar uma irrestrita amizade, a figura de Henry Hill acaba desamparada), cuja luta pelo sucesso financeiro e o ato de tornar-se escravo de um consumismo e estilo de vida não poderiam ser ações mantidas de maneira inabalável por muitos anos. Lá estava o desenhar de um país megalomaníaco, de uma realidade opressora, e de um esforço hercúleo de se manter são. Já havíamos presenciado trajetórias semelhantes em Taxi Driver, Alice Não Mora Mais Aqui e Caminhos Perigosos, obras de Martin Scorsese que também narram aquele esforço de sanidades dentro de uma vida que pode ou não ser honesta. Mas o alcance de reflexão trazido por Goodfellas dentro dessa análise de um país e das ambições de um povo era singular, só vindo a ser reprisado à altura por Scorsese na sua outra obra-prima, O Irlandês, lançada ano passado.

Karen e Henry no sedutor (e viciante) glamour do crime

DERROCADA

A ascensão  e queda de Henry Hill são destrinchadas passo a passo. Em uma cena chave do longa, vemos Hill se desesperar  e chorar feito uma criança ao saber que Karen, sua esposa (e cúmplice no tráfico de drogas, vivida por Lorraine Bracco), descartou sua última carga de cocaína, aquela cuja venda ia permitir que ele se reerguesse. No desespero, senta-se ao chão do quarto e coloca a mãos no rosto entre as lágrimas de um choro compulsivo dele e de Karen. Scorsese os filma abraçados, no chão. Vistos do alto, acuados contra o canto do quarto, esta é a moldura do final daquele casal que, poucos anos antes, ostentava o glamour. Esta é a queda de ambos. A ascensão é aquela em que vemos o garoto de vinte e poucos anos estacionar seu cadilac em mão dupla, de frente a um hidrante, ignorar a fila de acesso e adentrar o glamoroso restaurante Copacabana, em Nova Iorque. De mãos dadas a Karen, entra no recinto pelas portas da cozinha, passa por todos os funcionários que lhe abrem portas enquanto ele distribui notas de US$20, e senta-se à frente do palco, em uma mesa que já lhe esperava pronta. Da rua, do asfalto, da sarjeta lá fora, à mesa mais privilegiada do mais caro restaurante, sob  cumprimentos e champanhe oferecidos. Em um plano sequência, a precisa noção de Scorsese ao desenhar para sua audiência quem é Henry Hill na ascensão representada por aquele momento de sua vida. E essa sequência justifica de modo exato a frase do autor e co-roteirista, Nicholas Pileggi, ao falar que esperou por toda a sua vida por aquela ligação do cineasta.

Tommy (Joe Pesci) e as nuances da psicopatia 

Os Bons Companheiros, trinta anos depois, alcança um status de filme pilar da cultura pop e do Cinema. Repleto de momentos e falas simbólicas, como a atuação insana de Joe Pesci, pela qual ganhou um Oscar (o assustador questionar: "funny how?" na famosa cena do restaurante é um dos momentos chave), ou a elipse temporal de sua abertura rimando à fala central de Hill sobre "sempre ter desejado ser um gangster" junto à percepção, a partir do ecoar das balas do revolver de Jimmy Conway (Robert De Niro), de que aquela sua vida de crimes foi longe demais, são apenas dois exemplos.

Junte a isso um soundtrack que se torna marca da pesquisa musical de Martin Scorsese, que, no filme, não utiliza música incidental, apenas trilha de artistas solos e bandas clássicas. O resultado pode ser visto no momento paranóia de Henry Hill, naquele começo dos anos 1980 regados a pó e prestes a desmoronar, quando Scorsese pontua cada trecho com uma seleção que vai de Harry Nilsson, passando por Mick Jagger, The Who, George Harrison e Muddy Waters. E, ainda, qualquer pessoa que tenha assistido a Goodfellas no decorrer das últimas três décadas, é improvável que, ao ouvir os acordes do Piano Exit de Layla, clássico de Derek and The Dominos, não pense na traição e descarte de amizades que considerava sólidas para Hill e Conway.  É esse tipo de quebra de confiança e traição que delineia esse tratado de Cinema.  


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 04/10/2020