Tempo e Artista
O registro da História Cultural de um país plural é o foco de
Memórias do Brasil, série em 13
episódios que revisita trajetórias de nomes pilares das Artes desta nação que
precisa valorizá-las
Por João Paulo Barreto
Dentro da necessidade intrínseca a um povo consciente de sua História, bem como da relevância do seu patrimônio cultural enquanto país detentor de um legado ameaçado por hordas de ignorantes que buscam a todo custo apagá-lo, falar (e registrar para a posteridade) de trajetórias de pessoas que ajudaram o Brasil a construir alguns de seus pilares culturais é tarefa crucial neste 2020 que não parece o futuro que imaginávamos.
Assim, celebrar trajetórias de pessoas que seguem
construindo essa identidade, bem como honrar
a memória de algumas delas que já nos deixaram, surge como um dos ponto mais
louváveis de Memórias do Brasil, série
em 13 episódios que tem exibição toda sexta-feira no Canal Arte 1, sempre às
20h30. Outro ponto louvável é a
possibilidade de apresentar tais pessoas às novas gerações, tão presas ao
imediatismo e à superficialidades dentro do consumo bombardeador de informações
rasas em um século que chega a sua segunda década movido pela criação (e pelo
fugaz esquecimento) de "ídolos" instantâneos e sem muito a oferecer
além de polêmicas em redes sociais, "stories"e
"lacrações".
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A cineasta Vania Lima e o artista plástico Severino Vitalino |
Idealizada por Vania Lima (que dirigiu dois episódios), da
TêmDendê Produções, a série conta com sua direção geral, e teve em seus capítulos a direção de mais
três cineastas: Diogo Oliveira, Walkiria Hamu e Rodrigo Luna. Sobre essa
questão citada em relação a importância do resgate da memória, Vania explica:
"Eu tenho um pertencimento muito forte a essa ideia de resgate. Na minha
ideia, memória é algo que você escolhe lembrar ou escolhe esquecer. Meu
trabalho todo se baseia nesse aspecto da História. O Brasil tem essa síndrome. Parece
que queremos apagar coisas da nossa memória deliberadamente. E eu queria muito
começar a construir materiais orgânicos que pudessem trazer coisas que não
pudessem ser assim tão facilmente apagadas," explica a cineasta por trás
da direção dos capítulos sobre Lia de Itamaracá e sobre Severino Vitalino.
DIFERENTES ESTRADAS
Ao visitarmos as estradas percorridas pelos nomes ilustrados
em cada um dos 13 episódios da série, temos a sensação de um adentrar temporal que,
sem preciosismo ou uma exacerbada valorização do passado, permite olhar para
tais trajetórias artísticas e nos perguntar como poderemos viver em um país que
não se volta para as expressões da Cultura como o tesouro potencial que elas
representam. E isso tanto em identidade de um povo como em uma maneira de fortalecimento
econômico de uma nação.
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O DP Cláudio de Jesus, Lia Robatto e o cineasta Rodrigo Luna |
A série ilustra esse potencial a partir dos nomes de Lia de Itamaracá,
Tuzé de Abreu, Lia Robatto, Gerônimo, Nildão, Luiz Melodia, Gerson King Combo,
Maria Alcina, Mara Salles, Zé Celso, Milton Hatoum, Fernando Mello e Severino
Vitalino. Adentramos, assim, em suas
expressões artísticas a partir da Música, Dança, Culinária, Artes Plásticas e
Visuais, Direção e Cenografia Teatral, bem como da Literatura.
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Memórias do Brasil trouxe Luiz Melodia em sua última série de entrevistas |
Diretor de quatro dos 13 episódios, o cineasta Rodrigo Luna construiu narrativas que mergulham nas vidas da coreógrafa Lia Robatto, dos músicos Tuzé de Abreu e Gerônimo, além do cartunista Nildão. No processo de captação de entrevistas e na montagem dos episódios (que teve direção capitaneada pela diretora de Montagem, Taguay Tayussy), Luna destaca a importância desse processo através da muitas horas de captação e do garimpo de imagens e de momentos chave no trabalho de montar os capítulos. Um exemplo é quando o diretor de Fotografia, Cláudio Antonio de Jesus, pede para a coreógrafa lhe explicar sobre a perspectiva de lente no movimento dos bailarinos. "Esse é o tipo de momento que eu mais gosto. Quando eu vi que rolou, foi um achado", explica Luna. "Eu senti que eu estava documentando esse processo de criação, mesmo. Eu acho que não tem questão de vaidade, pois, para mim, o audiovisual é coletivo. E ali eu estava vendo um diretor de Fotografia falando com a diretora do espetáculo. Era isso que estava sendo registrado naquele momento. E, como disse, foi um grande achado. É um garimpo na montagem que, para mim, torna bem importante essa momento", finaliza Rodrigo Luna.
Vania Lima traz ainda outros aspectos desse processo: "Quando
falamos em arte visual, buscamos pulsar em caminhos diferentes dessa arte. Descobrir
quais eram os neurônios dessa memória que queríamos ativar. Queríamos falar de
um Luiz Melodia em um país branco, onde vivia um artista negro que não era do
jeito que se imaginava. Tinha uma Lia de Itamaracá, que é do interior de
Pernambuco, e que trazia uma cantiga de roda. Uma coisa que os paulistas,
quando viram a primeira vez, não entenderam. 'O que é isso? Música de criança?' Eles não entendiam porque as
pessoas davam as mãos e giravam. A gente queria falar dessas coisas que estão
na nossa memória, mas que precisam ser ativadas", define a diretora geral.
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Lia de Itamaracá em cena do episódio dirigido por Vania Lima |
RITMOS ÚNICOS
Na construção de narrativas através dos depoimentos, cada pessoa focalizada pelas lentes dirigidas por Rodrigo Luna, Vania Lima, Diogo Oliveira e Walkiria Hamu requer um ritmo diferente. Vania pontua a introspecção de Severino Vitalino durante as filmagens, o que a fez adentrar no tempo do escultor. "Com Severino, o caminho foi muito de observar, esperar e acreditar no tempo dele. Já com Lia de Itamaracá, foi outro movimento. Ela é uma mulher muito forte que teve muitas questões na sua vida. De ter que combater, de ter que sair desse lugar de opressão. Então, ela trouxe o discurso. Ela quis ir à praia. Lembro que ela disse: 'Vamos na praia. Meu movimento é no mar. Se a gente vai fazer uma ciranda, tem que ser na praia'. Ela se colocou mais em função de trazer coisas e discursos. Era um outro movimento. Temos que respeitar, também, e dialogar com esse outro movimento. No meu caso, foi assim que se deu. Eu tenho essa questão de muito observar. Eu gosto muito de trabalhar com as câmeras ligadas o máximo de tempo. " compara Vania.
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O cantor Gerônimo, em episódio dirigido por Rodrigo Luna |
Outro personagem de destaque nessa composição da série é o músico Gerônimo. Rodrigo Luna, que dirigiu o episódio sobre o cantor e compositor, destaca esse processo. "Uma coisa que eu admiro nele é essa coisa de falar mesmo. De ser verborrágico e não ter papas na língua. O Gerônimo é mais esculhambado, no melhor sentido da palavra.. Acho que esculhambado é a melhor forma de definir", explica Luna entre sorrisos. "Ele conta a sua história com muita propriedade. Foi massa! O episódio nós filmamos onde ele nasceu, na Ilha de Santo Antonio dos Pobres. Foi bonito porque nós passamos na rua onde ele cresceu. Ele se sentindo em casa e contando sua história. E bem daquele jeitão dele, natural. Bem aquilo mesmo", relembra Luna.
Com mais duas temporadas já previstas, uma com foco em
mulheres que representam essa cultura brasileira, e outra em artistas que
trabalharam a afrobrasilidade, Memórias
do Brasil se torna um registro ainda mais amplo e necessário dessa História
que se esforçam em querer apagar nesse tempo distópico .
*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 04/09/2020
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