quinta-feira, 26 de outubro de 2017

As Duas Irenes - Entrevista e Crítica

MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE EM A TARDE (18/10/2017)



Fábio Meira cria em As Duas Irenes fábula 

cujos silêncios dizem muito



Por João Paulo Barreto

É o não dito que constrói a gama de sentimentos presentes no longa de estreia do já experiente diretor de curtas metragens e roteirista Fábio Meira. Na feliz opção de não criar uma narrativa expositiva através de soluções fáceis em diálogos explicativos, As Duas Irenes é composto basicamente por olhares.

São aqueles olhares oriundos da jovem de 13 anos que, ao descobrir que possui uma irmã com seu mesmo nome e idade, decide se aproximar da outra. Seus silêncios e observações do que acontece naquele novo e atraente universo fascinam tanto a ela quanto ao espectador. Descobrimos junto com a garota mirrada cada nuance daquela vida que seu pai mantém às escondidas. E são aquelas descobertas que passam a moldar, também, uma nova personalidade para a quase, e ainda ingênua, criança.

As Irenes são opostas, mas suas personalidades se equilibram. A primeira, com seu corpo franzino e ainda infantil, começa sua fase de experimentações justamente por conta de seu contato com a irmã homônima, mais madura e desenvolvida fisicamente, apesar da mesma idade. As duas acabam se completando justamente por possuírem em comum apenas o mesmo pai. Suas personalidades opostas, no entanto, gradativamente se complementam. Enquanto Madalena (pseudônimo adotado pela primeira) tem na presença da meia irmã a influência necessária para colocá-la diante dos comuns momentos chave de qualquer adolescência normal, como o primeiro beijo, o primeiro porre, o contato com roupas mais ousadas, o flerte com garotos no cinema; a segunda Irene, diante de tanta autoconfiança, experimenta sensações que, ao seu ver, pareciam ser cabíveis somente à irmã.

O contraste de maturidades a se mesclar nas duas irmãs
O diretor Fábio Meira observa que essas diferenças vão gradativamente se tornando sutis. “Elas são muito diferentes. Só que, ao conviver juntas, vão ficando parecidas, até que chega um momento de quase uma troca. Elas vão se conduzindo para um lugar onde uma vai se contaminando com a outra. O momento chave dessa troca é aquela segunda cena no cinema, quando acontece uma real troca de lugar”, afirma o cineasta.

As decepções de cada uma parecem, também, trocar de lugar, quando, nessa mesma cena, a Irene tão madura e autoconfiante, sofre seu primeiro revés amoroso e experimenta um pouco da introspecção tão comum à sua nova irmã, que já se percebe segura o suficiente para experimentar, naquele mesmo momento, seu primeiro beijo. “Para mim tudo, passa pela questão do amadurecimento. Elas conseguem ter a capacidade de aprender com a outra. As duas acabam por crescer juntas em um curto espaço de tempo”, complementa Fábio Meira.

As Duas Irenes traz para o espectador uma atmosfera de fábula. Por não se localizar em nenhum recorte temporal (algo bem perceptível pelo fato de que tecnologias atuais não permitiriam que o segredo durasse 13 anos), o filme acerta na criação de um ambiente que capta o espectador pela identificação com símbolos de uma vida mais simples e pacata. Justamente por isso, uma visão acolhedora. A identificação regional é certeira.

Em um roteiro repleto de rimas visuais e elementos representativos do amadurecimento e cumplicidade das protagonistas, o filme reafirma sua ideia de deixar para o espectador as conclusões das consequências daquela omissão por parte de Tonico, vivido por um inspirado Marco Ricca.

Na entrevista abaixo, o cineasta Fábio Meira fala justamente dessa opção e dessas rimas visuais que cativam o público em As Duas Irenes.

O cineasta Fábio Meira
A construção do personagem do Marco Ricca deixa para o espectador a interpretação  do que passa pela cabeça dele em relação a tudo aquilo. Do mesmo modo, não há muita exposição acerca do que passa pela cabeça de Irene, há apenas o processo de descoberta intimo dela. Suas ações falam por ela. Essa opção de contar a história de modo mais fluído, sem muito didatismo, sempre foi sua intenção desde o roteiro?

Com certeza. Isso tem a ver, também, com a minha experiência como espectador. Para mim, me interessa mais os filmes que tenham que colocar algo de mim dentro deles. Que eu tenha que apontar com a minha bagagem, que eu tenha que apontar com  a minha história e com a minha experiência, do que os filmes que me entregam tudo. Para mim, as melhores emoções que existem estão no dia seguinte, na hora em que eu acordar e lembrar do filme que vi no dia anterior. Quando você tem esse envolvimento com um filme, você consegue se apropriar daquela experiência com os personagens. É quando você transforma aquela experiência de ver aquele filme em uma experiência sua. Essa era minha uma intenção.

Existe uma clara opção sua de priorizar as imagens e ação em detrimento de diálogos. Como se deu essa opção?

O ponto de partida dessa história surgiu de um curso que eu fiz com o Gabriel Garcia Marques, em Cuba. E ele falou uma coisa que eu me lembro sempre: “Dialogo e cinema são coisas que não combinam tanto”. Então, a imagem é muito mais forte. É muito mais forte você se apropriar da imagem do que de um diálogo. Porque o diálogo já vem meio pronto. E ele ainda passa, também, pela interpretação de um ator. É diferente quando você mesmo passa pelo diálogo de um livro que você se apropria disso naquela hora, e tudo aquilo faz sentido na sua cabeça e tudo aquilo é super reinterpretado. Em um filme, isso é mais difícil. Este era um fato importante para mim. E tem uma terceira coisa que, também, eu acho muito interessante: o filme existe e gira ao redor destes silêncios familiares, destes tabus. Eu já o exibi em várias cidades onde havia pessoas de minha família na plateia.  E na primeira vez que foi exibido, uma prima minha perguntou que história era aquela. Ela não sabia que era a história de uma tia nossa. Eu apresentei o filme em Fortaleza, e lá estava lá um outro tio meu. Ele também não sabia da história. A mulher dele sabia. Porque a minha avó contou para a nora, mas não contou para o próprio filho. Estes são os tabus aos quais me refiro. São os silêncios familiares. Por conta disso, para contar uma história como essa, eu acho que ela deveria ser contada com imagens muito potentes, não necessariamente apenas com o suporte da fala. 

A cumplicidade e confiança demonstradas em belas rimas visuais
Nesse uso de imagens, eu observo o uma construção de rimas bem eficientes em sua história. Algumas delas saltam aos olhos, como o momento em que as irmãs compartilham a bicicleta, com uma indo no quadro na primeira vez e a outra ocupando esse lugar na segunda, o que denota uma confiança, uma cumplicidade.

E eu ainda colocaria mais uma cena da bicicleta que é que ela está sozinha. Na primeira vez sozinha, na segunda vez com a irmã recém descoberta, e, depois, elas trocam de lugar. O filme tem esse desenho. As Irenes são como um ser invertido. Elas são muito diferentes. Só que elas vão convivendo e vão ficando parecidas, até que elas quase que trocam de posição. Elas vão conduzindo para um lugar onde acabam se contaminando uma com a outra. E tem aquela segunda cena no cinema, também. Naquela segunda vez, acontece a mesma coisa em relação à troca de lugar. Que para mim tudo passa pelo que você já falou antes que é a questão do amadurecimento. Elas conseguem ter a capacidade de aprender com a outra. Ser influenciadas e se deixar contaminar pelo olhar do outro. 

A Irene que primeiro descobre o segredo do pai parece ter naquelas experiências os gatilhos para diversas mudanças em sua vida durante aquela fase de crescimento. As experiências no cinema, as idas à cachoeira, por exemplo. Fico me perguntando como seria esse processo de formação dela se sua vida tivesse seguido normalmente, sem aquela mudança drástica.

Tem uma coisa que é importante que é a escolha da idade da Irene. Treze anos. É esse limiar entre a vida infantil e a vida adulta. A Irene está perdendo a sua ingenuidade, ela esta de olho em como as coisas acontecem na vida adulta, quais são as regras sociais. Ela está percebendo a hipocrisia dos adultos, ela está percebendo um monte de coisa. Ela tem esse trauma que é descobrir esse segredo do pai, e que é uma cosia que a toca profundamente. A partir disso, ela é obrigada a crescer. Então, ela tem essa decisão de crescer com prazer, também. E aí entra uma coisa interessante que você observou que é o papel da sala de cinema dentro do filme. O filme tem dois lados para mim. Desde o roteiro. É a cachoeira e o cinema. Ali as coisas são permitidas, sabe? Ali, eles estão fora do olhar dos adultos. Do olhar social. E ali eles podem experimentar, podem brincar, porque eles estão protegidos. São anônimos.

E você escolhe um cinema como sendo o local que melhor representa essa experimentação. É lá onde ela tem o primeiro beijo. Esse gatilho acaba por influenciá-la em seu crescimento, uma vez que seu amadurecimento surge bem mais rápido a partir daquele, digamos, trauma. E a partir daí ela passa a ter as decisões dela.

Sim. E uma outra coisa que eu te conto que é um curiosidade: a Priscila (Bittencourt), que faz a Irene, deu o primeiro beijo da vida dela nessa cena. Ali ela teve o primeiro beijo dela. Eu acho muito interessante porque ela é uma atriz nata. Muito especial, assim como a Isabela (Torres).  Eu acho muito bonito uma atriz dar o primeiro beijo dela fazendo um filme em uma cena dentro de um cinema. E eu ainda escolhi um menino que nunca tinha beijado. E não contei para ninguém (risos). Então, aquela cena ali é basicamente documental. 

Tonico (Marco Ricca) e o peso de um segredo cujo desgaste é iminente
O filme inverte uma expectativa quando não se rende ao clichê catártico da casa caindo, das brigas acontecendo. Esse é um dos méritos. Você deixa essa interpretação para o espectador. Foi sua intenção, também?

Sim. E isso tem a ver com sua primeira pergunta, a de deixar que o público coloque a experiência dele ali. Eu acho que quando você deixa essas lacunas, o espectador se coloca, ele tem que uma postura ativa, uma postura emocional Isso aumenta a carga de emoção. Eu acho mais emocionante não mostrar tudo do que mostrar.  Quantas vezes a gente já não viu essas cenas de gritarias e brigas e de não sei o que? E quem mais aguenta ver isso? Para mim, é muito mais interessante que a pessoa faça isso na própria cabeça. Eu acho que o filme continua mais vivo nela mais tempo depois, por conta disso. 

É curioso como o público parece esperar por esse tipo de desfecho.

Sim, é verdade. Olha, o filme já passou em vários festivais da Europa, EUA e América Latina. E eu já escutei coisas muito interessantes. Eu até me surpreendo, às vezes. No México e no Peru diziam muito: "Ah, que bom que não é um dramalhão." Uma outra pessoa observou: "que bom que não tem violência". Lá em Gramado, uma criança com uns seis anos, ator de outro filme, falou: ''eu gostei muito porque não tem ódio". Isso me fez pensar bastante. Hoje, por exemplo, saindo de casa, eu presenciei uma situação no trânsito que pareceu um acidente. E eu via as pessoas tirando fotos do corpo no chão.  Fiquei pensando no como a gente está acostumado com ódio e com violência. E como isso é doentio. De repente, chama mais atenção você não mostrar ódio, quando o natural, para mim, é que o ódio chamasse atenção. A violência chamasse atenção. E não o contrario. A gente está em um momento muito complexo da vida. Um momento muito violento, muito complicado não só na história do país como do mundo. É estranho que o fato de você não ser violento chame a atenção. 



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