MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE EM A TARDE (18/10/2017)
Fábio Meira cria em As Duas Irenes fábula
cujos silêncios dizem muito
Por João Paulo Barreto
É o não dito que constrói a gama de
sentimentos presentes no longa de estreia do já experiente diretor de curtas
metragens e roteirista Fábio Meira. Na feliz opção de não criar uma narrativa
expositiva através de soluções fáceis em diálogos explicativos, As Duas Irenes é composto basicamente
por olhares.
São aqueles olhares oriundos da jovem
de 13 anos que, ao descobrir que possui uma irmã com seu mesmo nome e idade,
decide se aproximar da outra. Seus silêncios e observações do que acontece
naquele novo e atraente universo fascinam tanto a ela quanto ao espectador.
Descobrimos junto com a garota mirrada cada nuance daquela vida que seu pai
mantém às escondidas. E são aquelas descobertas que passam a moldar, também,
uma nova personalidade para a quase, e ainda ingênua, criança.
As Irenes são opostas, mas suas
personalidades se equilibram. A primeira, com seu corpo franzino e ainda
infantil, começa sua fase de experimentações justamente por conta de seu
contato com a irmã homônima, mais madura e desenvolvida fisicamente, apesar da
mesma idade. As duas acabam se completando justamente por possuírem em comum
apenas o mesmo pai. Suas personalidades opostas, no entanto, gradativamente se
complementam. Enquanto Madalena (pseudônimo adotado pela primeira) tem na
presença da meia irmã a influência necessária para colocá-la diante dos comuns
momentos chave de qualquer adolescência normal, como o primeiro beijo, o primeiro
porre, o contato com roupas mais ousadas, o flerte com garotos no cinema; a
segunda Irene, diante de tanta autoconfiança, experimenta sensações que, ao seu
ver, pareciam ser cabíveis somente à irmã.
O contraste de maturidades a se mesclar nas duas irmãs |
O diretor Fábio Meira observa que
essas diferenças vão gradativamente se tornando sutis. “Elas são muito
diferentes. Só que, ao conviver juntas, vão ficando parecidas, até que chega um
momento de quase uma troca. Elas vão se conduzindo para um lugar onde uma vai
se contaminando com a outra. O momento chave dessa troca é aquela segunda cena
no cinema, quando acontece uma real troca de lugar”, afirma o cineasta.
As decepções de cada uma parecem,
também, trocar de lugar, quando, nessa mesma cena, a Irene tão madura e
autoconfiante, sofre seu primeiro revés amoroso e experimenta um pouco da
introspecção tão comum à sua nova irmã, que já se percebe segura o suficiente
para experimentar, naquele mesmo momento, seu primeiro beijo. “Para mim tudo,
passa pela questão do amadurecimento. Elas conseguem ter a capacidade de
aprender com a outra. As duas acabam por crescer juntas em um curto espaço de
tempo”, complementa Fábio Meira.
As Duas
Irenes traz para o espectador uma atmosfera de fábula. Por não se localizar
em nenhum recorte temporal (algo bem perceptível pelo fato de que tecnologias
atuais não permitiriam que o segredo durasse 13 anos), o filme acerta na
criação de um ambiente que capta o espectador pela identificação com símbolos
de uma vida mais simples e pacata. Justamente por isso, uma visão acolhedora. A
identificação regional é certeira.
Em um roteiro repleto de rimas visuais
e elementos representativos do amadurecimento e cumplicidade das protagonistas,
o filme reafirma sua ideia de deixar para o espectador as conclusões das
consequências daquela omissão por parte de Tonico, vivido por um inspirado
Marco Ricca.
Na entrevista abaixo, o cineasta Fábio
Meira fala justamente dessa opção e dessas rimas visuais que cativam o público
em As Duas Irenes.
O cineasta Fábio Meira |
A construção do personagem do Marco Ricca
deixa para o espectador a interpretação
do que passa pela cabeça dele em relação a tudo aquilo. Do mesmo modo,
não há muita exposição acerca do que passa pela cabeça de Irene, há apenas o
processo de descoberta intimo dela. Suas ações falam por ela. Essa opção de
contar a história de modo mais fluído, sem muito didatismo, sempre foi sua
intenção desde o roteiro?
Com certeza. Isso tem a ver, também,
com a minha experiência como espectador. Para mim, me interessa mais os filmes
que tenham que colocar algo de mim dentro deles. Que eu tenha que apontar com a
minha bagagem, que eu tenha que apontar com a minha história e com a
minha experiência, do que os filmes que me entregam tudo. Para mim, as
melhores emoções que existem estão no dia seguinte, na hora em que eu
acordar e lembrar do filme que vi no dia anterior. Quando você tem esse
envolvimento com um filme, você consegue se apropriar daquela experiência com os
personagens. É quando você transforma aquela experiência de ver aquele filme em
uma experiência sua. Essa era minha uma intenção.
Existe uma clara opção sua de priorizar as imagens e ação em detrimento
de diálogos. Como se deu essa opção?
O ponto de partida dessa história
surgiu de um curso que eu fiz com o Gabriel Garcia Marques, em Cuba. E ele
falou uma coisa que eu me lembro sempre: “Dialogo e cinema são coisas que não
combinam tanto”. Então, a imagem é muito mais forte. É muito mais forte você se
apropriar da imagem do que de um diálogo. Porque o diálogo já vem meio pronto.
E ele ainda passa, também, pela interpretação de um ator. É diferente quando
você mesmo passa pelo diálogo de um livro que você se apropria disso naquela
hora, e tudo aquilo faz sentido na sua cabeça e tudo aquilo é super
reinterpretado. Em um filme, isso é mais difícil. Este era um fato importante
para mim. E tem uma terceira coisa que, também, eu acho muito interessante: o
filme existe e gira ao redor destes silêncios familiares, destes tabus. Eu já o
exibi em várias cidades onde havia pessoas de minha família na plateia. E na primeira vez que foi exibido, uma prima
minha perguntou que história era aquela. Ela não sabia que era a história de
uma tia nossa. Eu apresentei o filme em Fortaleza, e lá estava lá um outro tio
meu. Ele também não sabia da história. A mulher dele sabia. Porque a minha avó
contou para a nora, mas não contou para o próprio filho. Estes são os tabus aos
quais me refiro. São os silêncios familiares. Por conta disso, para contar uma
história como essa, eu acho que ela deveria ser contada com imagens muito
potentes, não necessariamente apenas com o suporte da fala.
A cumplicidade e confiança demonstradas em belas rimas visuais |
Nesse uso de imagens, eu observo o uma construção de rimas bem
eficientes em sua história. Algumas delas saltam aos olhos, como o momento em
que as irmãs compartilham a bicicleta, com uma indo no quadro na primeira vez e
a outra ocupando esse lugar na segunda, o que denota uma confiança, uma cumplicidade.
E eu ainda colocaria mais uma cena da
bicicleta que é que ela está sozinha. Na primeira vez sozinha, na segunda vez
com a irmã recém descoberta, e, depois, elas trocam de lugar. O filme tem esse
desenho. As Irenes são como um ser invertido. Elas são muito diferentes. Só que
elas vão convivendo e vão ficando parecidas, até que elas quase que trocam de
posição. Elas vão conduzindo para um lugar onde acabam se contaminando uma com
a outra. E tem aquela segunda cena no cinema, também. Naquela segunda vez,
acontece a mesma coisa em relação à troca de lugar. Que para mim tudo passa
pelo que você já falou antes que é a questão do amadurecimento. Elas conseguem
ter a capacidade de aprender com a outra. Ser influenciadas e se deixar
contaminar pelo olhar do outro.
A Irene que primeiro descobre o segredo do pai parece ter naquelas
experiências os gatilhos para diversas mudanças em sua vida durante aquela fase
de crescimento. As experiências no cinema, as idas à cachoeira, por exemplo.
Fico me perguntando como seria esse processo de formação dela se sua vida
tivesse seguido normalmente, sem aquela mudança drástica.
Tem uma coisa que é importante que é
a escolha da idade da Irene. Treze anos. É esse limiar entre a vida infantil e
a vida adulta. A Irene está perdendo a sua ingenuidade, ela esta de olho em
como as coisas acontecem na vida adulta, quais são as regras sociais. Ela está
percebendo a hipocrisia dos adultos, ela está percebendo um monte de coisa. Ela
tem esse trauma que é descobrir esse segredo do pai, e que é uma cosia que a
toca profundamente. A partir disso, ela é obrigada a crescer. Então, ela tem
essa decisão de crescer com prazer, também. E aí entra uma coisa interessante
que você observou que é o papel da sala de cinema dentro do filme. O filme tem
dois lados para mim. Desde o roteiro. É a cachoeira e o cinema. Ali as coisas
são permitidas, sabe? Ali, eles estão fora do olhar dos adultos. Do olhar
social. E ali eles podem experimentar, podem brincar, porque eles estão
protegidos. São anônimos.
E você escolhe um cinema como sendo o
local que melhor representa essa experimentação. É lá onde ela tem o primeiro
beijo. Esse gatilho acaba por influenciá-la em seu crescimento, uma vez que seu
amadurecimento surge bem mais rápido a partir daquele, digamos, trauma. E a
partir daí ela passa a ter as decisões dela.
Sim. E uma outra coisa que eu te
conto que é um curiosidade: a Priscila (Bittencourt), que faz a Irene, deu o
primeiro beijo da vida dela nessa cena. Ali ela teve o primeiro beijo dela. Eu acho
muito interessante porque ela é uma atriz nata. Muito especial, assim como a
Isabela (Torres). Eu acho muito bonito
uma atriz dar o primeiro beijo dela fazendo um filme em uma cena dentro de um
cinema. E eu ainda escolhi um menino que nunca tinha beijado. E não contei para
ninguém (risos). Então, aquela cena ali é basicamente documental.
Tonico (Marco Ricca) e o peso de um segredo cujo desgaste é iminente |
O filme inverte uma expectativa quando
não se rende ao clichê catártico da casa caindo, das brigas acontecendo. Esse é
um dos méritos. Você deixa essa interpretação para o espectador. Foi sua
intenção, também?
Sim. E isso tem a ver com sua
primeira pergunta, a de deixar que o público coloque a experiência dele ali. Eu
acho que quando você deixa essas lacunas, o espectador se coloca, ele tem que
uma postura ativa, uma postura emocional Isso aumenta a carga de emoção. Eu
acho mais emocionante não mostrar tudo do que mostrar. Quantas vezes a gente já não viu essas cenas
de gritarias e brigas e de não sei o que? E quem mais aguenta ver isso? Para
mim, é muito mais interessante que a pessoa faça isso na própria cabeça. Eu
acho que o filme continua mais vivo nela mais tempo depois, por conta
disso.
É curioso como o público parece esperar por esse tipo de desfecho.
Sim, é verdade. Olha, o filme já
passou em vários festivais da Europa, EUA e América Latina. E eu já escutei
coisas muito interessantes. Eu até me surpreendo, às vezes. No México e no Peru
diziam muito: "Ah, que bom que não é um dramalhão." Uma outra pessoa
observou: "que bom que não tem violência". Lá em Gramado, uma criança
com uns seis anos, ator de outro filme, falou: ''eu gostei muito porque não tem
ódio". Isso me fez pensar bastante. Hoje, por exemplo, saindo de casa, eu
presenciei uma situação no trânsito que pareceu um acidente. E eu via as
pessoas tirando fotos do corpo no chão. Fiquei
pensando no como a gente está acostumado com ódio e com violência. E como isso
é doentio. De repente, chama mais atenção você não mostrar ódio, quando o
natural, para mim, é que o ódio chamasse atenção. A violência chamasse atenção.
E não o contrario. A gente está em um momento muito complexo da vida. Um
momento muito violento, muito complicado não só na história do país como do
mundo. É estranho que o fato de você não ser violento chame a atenção.
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