quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O Fantasma da Sicília - Entrevista e Crítica

MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE EM A TARDE (16/10/2017)


Diretor de O Fantasma da Sicília fala sobre o perigo da 

romantização da máfia


Por João Paulo Barreto

Há em O Fantasma da Sicília uma abordagem que ultrapassa o filme como apenas uma peça de entretenimento cinematográfico. Na obra dirigida por Fabio Grassadonia e Antonio Piazza, o principal mérito reside no resgate de uma história brutal e deixada de lado pelo passar dos anos, mas que jamais deve ser colocada no esquecimento tanto do povo italiano quanto do restante do mundo.

Ao trazer para o cinema a breve vida de Giuseppe di Matteo, adolescente sequestrado e morto pela máfia siciliana no começo dos anos 1990, os cineastas jogam uma nova luz nesse caso brutal de crueldade e frieza, algo que, assim como acontece em diversas partes do mundo, se torna banal com o suplantar de novas barbáries trazidas pela mídia e que transformam casos em meras notícias de ontem.

Os cineastas Antonio Piazza e Fábio Grassadonia
Uma das principais funções do filme é na desmistificação da máfia e de seu suposto glamour. “Não desmereço filmes que abordem a violência da máfia por esse viés. Não há dúvidas de que trabalhos como O Poderoso Chefão são obras primas. Mas, em nosso cinema, buscamos evitar esse estereótipo tão comum. Evitamos essa romantização por achá-la algo muito perigoso”, afirma Antonio Piazza na conversa que tivemos por telefone.

Ele e Fábio Grassadonia optam, no entanto, por uma abordagem lúdica no contar a sua história. Mas sem querer, dessa forma, mascarar o teor violento de seu roteiro baseado na história original oriunda do livro de Marco Mancassola. Por contar apenas com os relatos trazidos pela imprensa à época, quando os responsáveis pelo crime chegaram a ser presos pela polícia siciliana, os diretores escolhem de forma feliz trazer à tona a trajetória de Giuseppe pela óptica de Luna, colega de sala apaixonada por ele e que, diante do seu desaparecimento, segue em sua busca no vilarejo italiano tomado pelo poder da máfia.
Desde os seus minutos iniciais, quando a câmera nos coloca dentro de um ambiente aquático que encontrará ecos no chocante desfecho do filme, o trabalho de construção de sua história segue em uma nuance de mescla entre sonho e realidade, algo que salienta ainda mais o impacto emocional e a tristeza de seu desenvolvimento. Em certos momentos, uma borboleta surge como representação da liberdade de Giuseppe, e é impossível não pensar em Papillon , livro de Henri Charrière que gerou o clássico com Dunstin Hoffman e Steve McQueen.

“Apesar de amarmos esse filme, foi uma coincidência. Mas é curioso você lembrar dele, pois ratifica a ideia de nosso cinema se calcar mais no sonho em comparação à aspereza que essa obra traz”, afirma Piazza.
A tristeza, aqui, suplanta a esperança que o personagem de Charrière nutria em seus devaneios lúdicos dentro de sua cela, quando sonhava com a liberdade que, no final, acaba por alcançar. Diferente dele, Giuseppe não chegou a se tornar a papillon que invadia seus sonhos.

Na conversa abaixo, o cineasta Antonio Piazza fala um pouco acerca dessa construção lúdica de sua obra, referência Hector Babenco e seu Pixote, e fala sobre a ironia da canção Italy, que fecha seu filme.

Confira!

Seu filme aborda uma história bastante conhecida na Itália e na Europa à época do ocorrido, mas, no Brasil, não foi um caso amplamente divulgado. Isso, para o público daqui, acaba por tornar sua construção ainda mais surpreendente, pois alimenta uma esperança no espectador que é derrubada de forma chocante.
Sim, a história de Giuseppe foi bastante veiculada na Itália, Europa quando aconteceu na Sicília nos anos 1990. Ela acabou contribuindo com uma mudança no modo como a opinião pública olhava para organizações criminosas como a máfia siciliana. Aquele crime foi o mais horrendo em uma série de ações contínuas na Sicília, um lugar repleto de assassinatos ligados a atividades criminosas dos mafiosos. Mas, atualmente, a história desse garoto foi esquecida. A atual geração de jovens da Itália, até mesmo na Sicília, não conhece mais a história de Giuseppe. Até mesmo para o público italiano, principalmente na Sicília, redescobrir essa história tem um impacto emocional pesado. Nossa intenção era fazer o público ter aquela experiência através da óptica de Giuseppe, através do que ele passou. Deste modo e através dos olhos de Luna, sua colega de classe, uma garota apaixonada por ele. Para mim e para o Fábio (Grassadonia, co-diretor), essa era a única forma de contar essa história. Porque era um modo de colocar o público na mesma experiência que eles passaram quando tudo aconteceu. Foi uma forma de dar a Giuseppe algo que ele não teve durante sua vida, que foi o amor, a experimentação da paixão adolescente, algo que ele não chegou a ter. E, claro, se você não sabe se tratar de uma história real, o desfecho daquela é bem impactante. E, sim, trata-se de um filme doloroso porque é uma história dolorosa. Ao mesmo tempo, aquilo foi real, aquilo aconteceu. Com essa mensagem, nós queremos dizer que talvez a nova geração possa ter um mundo melhor. Talvez ela possa ter um destino diferente daquele que Giuseppe teve.

Giuseppe e Luna - O lúdico como fuga
Ainda em relação ao público brasileiro, há uma identificação com a realidade violenta que temos aqui no Brasil, com ações de traficantes e a complacência da polícia, que age muitas vezes como milicianos ou cúmplices na criminalidade.
Sim, de fato. Claro que você conhece a realidade do Brasil melhor do que eu, mas nós sabemos que o filme pode ressoar também em outros lugares além da Itália. Infelizmente, este é um problema recorrente em vários países. Há outro filme dos anos 1980, um filme brasileiro, inclusive, chamado Pixote, do Hector Babenco. O estilo ali, claro, é completamente diferente de nossa proposta pelo ideia de ser um filme de aproximação mais realista dos fatos ao contar a história daquele garoto. Foi um filme seminal para nós. É o tipo de obra que causa uma dor e impacto que ficam conosco. Quando começamos a escrever este O Fantasma da Sicilia, nós sabíamos que buscávamos o mesmo tipo de impacto. De algum modo, nós sabíamos que teríamos que encarar aquele mesmo tipo de dor.

Existe no cinema uma espécie de romantização dos mafiosos italianos ou ítalo-americanos, principalmente em obras feitas nos Estados Unidos. No entanto, em filmes de origem italiana, eu observo mais uma desmistificação dessa imagem. É caso de obras como Gomorra e o seu próprio filme. Há essa intenção entre os realizadores italianos?
Sim, eu concordo totalmente com sua observação. Quando você conta uma história sobre a máfia, acaba-se correndo alguns riscos. Um destes é este que você mencionou. Você transforma criminosos em pessoas míticas. Até mesmo na Itália, filmes como O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, que, indiscutivelmente é uma obra prima. Mas, infelizmente, é um caso que abriu uma visão estereotipada que foi utilizada em muitos outros filmes, especialmente em outras ficções da televisão. Em nossa filmografia, buscamos uma maneira de mostrar a verdadeira face destes criminosos. Neste novoo filme, e em nosso trabalho anterior, Salvo, de 2013, nós queríamos mostrar a estupidez que há nessa mitificação dos mafiosos. Eles não são mentes poderosas e geniais a serviço do crime. No fundo, eles não passam de pessoas violentas e com recursos financeiros para ascender às custas dos mais fracos. Essa opção que trouxemos para nossos trabalhos no cinema é uma forma de evitar o possível estereotipo tão comum em filmes sobre a máfia. De certa forma, é um modo de evitar a possível romantização que se criou em torno da ideia dos mafiosos, o que considero como algo muito perigoso.

Inclusive, o filme termina com a canção Italy, da artista musical Soap & Skin, que me soa
como uma mensagem para o mundo acerca dessa romantização do país e de sua violência.


Você leu algo que nós colocamos nas entrelinhas, se posso dizer desse modo. Nossa abordagem nunca foi diretamente política, mas ela acaba sendo, de fato. E a música é um bom exemplo disso. Inclusive, durante o filme, o que buscávamos com a trilha incidental era que, sendo a narrativa observada pela percepção das crianças, ela funcionasse como uma expressão da percepção deles com o mundo. Nós tivemos essa colaboração com a Soap & Skin, que ela compôs a partir do nosso script. Depois, ela esteve presente conosco na montagem. A canção que toca nos créditos é um trabalho escrito especialmente para o filme. De certo modo, sim, há um tom de ironia intencional vindo da letra da música, que segue para o direcionamento que você descreveu. Há sempre uma tensão entre adicionar uma forma de rebelião contra a realidade do modo como ela é de verdade. Mas, ao mesmo tempo, queremos vê-la como um mundo diferente. Ao nosso modo de ver as coisas, sonhar possui uma postura política. É uma abordagem diferente do que existe no cinema italiano, que possui uma forma mais realista e diretamente política em seu dimensionamento. Para nós, ao Invés disso, seguimos em busca da fantasia. E a construção dessa música seguiu nesse direcionamento, também.

Luna e sua busca pelo amigo: amadurecer traumático
Vocês optam por inserir diversos momentos lúdicos demonstrando uma tentativa dos personagens principais de fugir e atenuar seus sofrimentos. Isso dá ao filme uma atmosfera que ajuda bastante com o impacto trazido pelo seu final. Essas inserções lúdicas, inclusive, me remeteram ao livro de Henri Charrière, Papillon, que virou filme nos anos 1970. Há alguma relação, uma vez que existem aqueles momentos de Giuseppe com uma borboleta?
(risos) Bem lembrado. Mas, enfim, é uma coincidência. Claro que este é um filme que nós amamos,
mas é só uma coincidência. Mas o que você diz é verdade. A intenção era criar uma fuga para os
personagens através do lúdico, do sonho. Uma fuga através daquilo que pertence a um universo mais
inocente, infantil. Para nós, o filme é primeiramente um conto siciliano sobre a morte no qual o amor
pode vencê-la. Um amor tão profundo, tão precioso que pode vencer a morte. O que mantém Luna
firme na procura por Giuseppe é a capacidade que ela tem de sonhar. Ela diz uma coisa no filme que
a define bem. “Se você sonha com alguma coisa, significa que aquilo pode existir”. Ela não consegue
mudar a realidade do que aconteceu, mas através do lúdico, ela pode se rebelar contra aquilo. Para
nós, é uma forma de buscar criar revolução através da fantasia. A fantasia possui um significado
político, um significado de revolução. Porque, com a fantasia, você pode mudar essa revolução no
modo como ela se apresenta. Então, nas fugas pelos sonhos, tanto de Giuseppe quanto de Luna,
eles se encontram. Nos seus sonhos, eles podem escapar dos perigos. De qualquer modo, você
mencionou uma obra que tem o fato de estar preso como tema principal. Em nosso filme há
Giuseppe, que eles sequestram e levam para uma prisão. Este tema é central em nosso cinema
porque nós o vemos como algo que a realidade nos dá, mas, ao mesmo tempo, nós criamos uma
contradição através do nosso estilo, que é mais conectado ao sonho. Há sempre um diálogo no filme
entre a realidade da prisão e o modo como o personagem escapa dela através do lúdico.









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