sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Pendular

Cineasta Júlia Murat analisa a perda do espaço 
individual no instigante Pendular


Por João Paulo Barreto

Em que ponto o respeito ao espaço mútuo que equilibra uma relação profissional e amorosa se perde diante de uma rotina de decepções tanto artísticas quanto emocionais? Em que ponto tais frustrações explodem não somente em reações de fúria, mas, também, de extravasar físico? 

Com Pendular, Júlia Murat consegue uma abordagem plena acerca do impacto emocional que tais restrições causam a um casal cujos espaços individuais, tanto físicos quanto íntimos e sentimentais, começam se chocar em uma mescla de autodestruição e estoicismo. A roteirista e diretora constrói aquela espiral sem necessariamente colocá-la como descendente. Há uma esperança inicial na saúde daquele relacionamento. 

O filme, aliás, não aponta dedos para julgar seus protagonistas como certos ou errados. Não há maniqueísmo. Não há vilões e mocinhos aqui. O que existe é uma saturação que exige cuidado de ambas as partes, mas que, diante de um bloqueio criativo e de frustrações  atreladas à sensação de vazio, a força que cada um esperava encontrar no outro se esvai  de modo quase fugaz. Gradativamente, aquele equilíbrio tão bem representado por brincadeiras, como aquela representada por uma bolinha de papel, se esvai em inseguranças.

Ela a observar a perda gradativa de seu espaço físico e emocional
Dentro daquela dupla, Ela utiliza a dança para extravasar suas ansiedades. Dois corpos ágeis a se confrontar em respirações sem fôlego. Quando sozinha a bailar, balança rapidamente ao som de Joy Division em uma rima sonora eficiente, uma vez que a música fala justamente de boas intenções amorosas que são responsáveis por aquela quebra de sintonia. Na cama, o extravasar positivo de ambos é pleno. Do mesmo modo, o entregar-se àquele momento é sem pudores, algo que denota muito bem o uso do sexo como válvula de escape. Não é ali que eles se vêem mal resolvidos, para usar uma expressão popular. Mas, quando fora daquela cama, as dores parecem suplantar qualquer prazer anterior. O sexo parece não ser lembrado como um desejo que querem voltar a reviver, mas, sim, uma necessidade física de extravasamento.

Já Ele, quando frustrado por não conseguir inspiração na criação de suas esculturas, joga videogame e conversa com estranhos on lne, características que denotam certa imaturidade e não muita perspicácia no que tange à propostas feitas em momentos de impulso. “Quero te dar um filho”, afirma após um orgasmo simultâneo. Ela, em segundos de silêncio, replica que não quer um filho. Antes de tudo, a colocação infeliz do parceiro já delimita o estado daquela relação. O filho, para ele, seria dado à parceira. Para Ela, porém, seria mais uma coisa a representar a tomada de seu lugar por Ele. Em um simbolismo delicado, a perda que Ela sofre do espaço físico no ambiente de trabalho inicialmente dividido de modo exato pelos dois, avança para sua própria vida, com a dedicação de suas preocupações aos problemas dele. Em uma compreensível autopreservação, o espaço em seu útero é algo que Ela quer somente para si, não cabendo qualquer suposto presente que Ele queira lhe dar. Talvez se colocação fosse “quero nos dar um filho”, o impacto tivesse sido menos frustrante.

TRABALHO COMO FUGA

Ela, enquanto profissional da dança, mesmo em momentos de fuga, usa sua arte como extravasamento. Não há uma separação entre lazer e trabalho. Para Ela, a dança é o que lhe localiza, lhe norteia. Sua inspiração naquela criação é o que lhe ajuda a prosseguir. Seu trabalho funciona como uma válvula de escape. Apenas o sexo, em sua totalidade, lhe serve como folga. “Isso vem um pouco da dança. Dessa entrega que as bailarinas costumam ter. Além disso, na dança, ela encontrava momentos de riso, de descontração, algo que ele não encontrava em momento algum em seu trabalho”, afirma Júlia Murat, durante o diálogo pós sessão em Salvador, no Espaço de Cinema Glauber Rocha.  Na situação dele, inclusive, o filme é ainda mais incisivo ao colocá-lo sem amigos reais. O único que supostamente seria um amigo é, também, um crítico de arte. “Essa acaba sendo uma relação de vaidade, de disputa que ele tem. Tudo, menos de amizade”, complementa a diretora. Travado em um bloqueio intelectual, Ele ainda encontra meios de separar-se de sua labuta deixando-a de lado para leitura e jogos. O sexo é algo a mais. Mas, no fundo, frustrado por não conseguir realizar, acaba não se desligando.

Júlia Murat em entrevista concedida ao Portal EBC

PERDA AFETIVA E MATERNAL

Na afirmação d'Ele para Ela acerca do tal presente, uma simbologia perfeita dessa retirada do último espaço que ela ainda mantinha como sendo seu. “Espaço e corpo acabam, no filme, sendo a mesma coisa”, afirma Murat “Essa gravidez se torna uma invasão desse espaço em seu corpo. Por isso o diálogo em que Ela fala que se sente como se houvesse uma vespa a devorando por dentro”, complementa. Tal ideia, a partir desse ponto, encontra consequências duras para os dois. O trauma daquela gravidez indesejada é o estopim para o fim.

Após privações e perdas, entretanto, o repassar de lições, o olhar para trás, a análise que se pretende fria de uma relação já esgotada traz tudo menos uma conciliação real daqueles dois artistas. Talvez por isso, percebe-se que a única forma de uni-los está justamente na arte.

O simbolismo de vê-la bailando sobre uma escultura produzida pelo próprio parceiro ecoa com ainda mais força ao se alcançar esta percepção.

Filme segue em cartaz no Cine XIV, Pelourinho.

Ela e Ele: frustrações, perdas e bloqueios



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