Cineasta Júlia Murat analisa a perda do espaço
individual no
instigante Pendular
Por João Paulo Barreto
Em que ponto o respeito ao espaço mútuo que equilibra uma
relação profissional e amorosa se perde diante de uma rotina de decepções tanto
artísticas quanto emocionais? Em que ponto tais frustrações explodem não
somente em reações de fúria, mas, também, de extravasar físico?
Com Pendular, Júlia
Murat consegue uma abordagem plena acerca do impacto emocional que tais
restrições causam a um casal cujos espaços individuais, tanto físicos quanto
íntimos e sentimentais, começam se chocar em uma mescla de autodestruição e
estoicismo. A roteirista e diretora constrói aquela espiral sem necessariamente
colocá-la como descendente. Há uma esperança inicial na saúde daquele
relacionamento.
O filme, aliás, não aponta dedos para julgar seus protagonistas
como certos ou errados. Não há maniqueísmo. Não há vilões e mocinhos aqui. O
que existe é uma saturação que exige cuidado de ambas as partes, mas que,
diante de um bloqueio criativo e de frustrações atreladas à sensação de vazio, a força que
cada um esperava encontrar no outro se esvai de modo quase fugaz. Gradativamente, aquele
equilíbrio tão bem representado por brincadeiras, como aquela representada por uma
bolinha de papel, se esvai em inseguranças.
Ela a observar a perda gradativa de seu espaço físico e emocional |
Dentro daquela dupla, Ela utiliza a dança para extravasar
suas ansiedades. Dois corpos ágeis a se confrontar em respirações sem fôlego.
Quando sozinha a bailar, balança rapidamente ao som de Joy Division em uma rima
sonora eficiente, uma vez que a música fala justamente de boas intenções
amorosas que são responsáveis por aquela quebra de sintonia. Na cama, o
extravasar positivo de ambos é pleno. Do mesmo modo, o entregar-se àquele
momento é sem pudores, algo que denota muito bem o uso do sexo como válvula de
escape. Não é ali que eles se vêem mal resolvidos, para usar uma expressão
popular. Mas, quando fora daquela cama, as dores parecem suplantar qualquer
prazer anterior. O sexo parece não ser lembrado como um desejo que querem
voltar a reviver, mas, sim, uma necessidade física de extravasamento.
Já Ele, quando frustrado por não conseguir inspiração na
criação de suas esculturas, joga videogame e conversa com estranhos on lne,
características que denotam certa imaturidade e não muita perspicácia no que
tange à propostas feitas em momentos de impulso. “Quero te dar um filho”,
afirma após um orgasmo simultâneo. Ela, em segundos de silêncio, replica que
não quer um filho. Antes de tudo, a colocação infeliz do parceiro já delimita o
estado daquela relação. O filho, para ele, seria dado à parceira. Para Ela,
porém, seria mais uma coisa a representar a tomada de seu lugar por Ele. Em um
simbolismo delicado, a perda que Ela sofre do espaço físico no ambiente de
trabalho inicialmente dividido de modo exato pelos dois, avança para sua
própria vida, com a dedicação de suas preocupações aos problemas dele. Em uma
compreensível autopreservação, o espaço em seu útero é algo que Ela quer
somente para si, não cabendo qualquer suposto presente que Ele queira lhe dar. Talvez
se colocação fosse “quero nos dar um filho”, o impacto tivesse sido menos
frustrante.
TRABALHO COMO FUGA
Ela, enquanto profissional da dança, mesmo em momentos de
fuga, usa sua arte como extravasamento. Não há uma separação entre lazer e
trabalho. Para Ela, a dança é o que lhe localiza, lhe norteia. Sua inspiração
naquela criação é o que lhe ajuda a prosseguir. Seu trabalho funciona como uma
válvula de escape. Apenas o sexo, em sua totalidade, lhe serve como folga.
“Isso vem um pouco da dança. Dessa entrega que as bailarinas costumam ter. Além
disso, na dança, ela encontrava momentos de riso, de descontração, algo que ele
não encontrava em momento algum em seu trabalho”, afirma Júlia Murat, durante o
diálogo pós sessão em Salvador, no Espaço de Cinema Glauber Rocha. Na situação dele, inclusive, o filme é ainda
mais incisivo ao colocá-lo sem amigos reais. O único que supostamente seria um
amigo é, também, um crítico de arte. “Essa acaba sendo uma relação de vaidade,
de disputa que ele tem. Tudo, menos de amizade”, complementa a diretora. Travado
em um bloqueio intelectual, Ele ainda encontra meios de separar-se de sua
labuta deixando-a de lado para leitura e jogos. O sexo é algo a mais. Mas, no fundo,
frustrado por não conseguir realizar, acaba não se desligando.
Júlia Murat em entrevista concedida ao Portal EBC |
PERDA AFETIVA E MATERNAL
Na afirmação d'Ele para Ela acerca do tal presente, uma
simbologia perfeita dessa retirada do último espaço que ela ainda mantinha como
sendo seu. “Espaço e corpo acabam, no filme, sendo a mesma coisa”, afirma Murat
“Essa gravidez se torna uma invasão desse espaço em seu corpo. Por isso o
diálogo em que Ela fala que se sente como se houvesse uma vespa a devorando por
dentro”, complementa. Tal ideia, a partir desse ponto, encontra consequências
duras para os dois. O trauma daquela gravidez indesejada é o estopim para o
fim.
Após privações e perdas, entretanto, o repassar de lições, o
olhar para trás, a análise que se pretende fria de uma relação já esgotada traz
tudo menos uma conciliação real daqueles dois artistas. Talvez por isso, percebe-se
que a única forma de uni-los está justamente na arte.
O simbolismo de vê-la bailando sobre uma escultura produzida
pelo próprio parceiro ecoa com ainda mais força ao se alcançar esta percepção.
Filme segue em cartaz no Cine XIV, Pelourinho.
Ela e Ele: frustrações, perdas e bloqueios |
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