sábado, 26 de dezembro de 2020

The Office

 A Beleza no Comum



TELEVISÃO The Office completa quinze anos em 2020 e segue como um dos tesouros do humor oriundo da TV no período anterior às maratonas fugazes e sem aprofundamento do streaming

Por João Paulo Barreto

Adaptar o ácido e sagaz humor britânico para a TV dos EUA pode ser uma tarefa complicada de se cumprir. Quando, em 2001, o ainda quase anônimo Ricky Gervais lançou, pela BBC de Londres, uma série que abordava a rotina da Wernham Hogg, companhia do ramo do papel na pequena cidade de Slough, interior da Inglaterra, ele não imaginava que o nonsense e quase agressivo comportamento envolvendo o seu protagonista, David Brent, pudesse ser levado para o canal estadunidense NBC de forma tão eficiente. Ao cruzar o atlântico e ser adaptada para terras ianques, The Office saiu do padrão "duas temporadas de seis episódios mais Especial de Natal" do canal londrino para arriscar, em 2005, uma estrutura inicialmente semelhante de seis episódios, mas que logo se demonstraria formidável em seu sucesso de público e crítica, permitindo que se prolongasse até 2013 e chegando a nove temporadas com mais de dez episódios cada. Mas o humor que de começo seguia o mesmo padrão de silêncios desconfortáveis e análise do asqueroso e mesquinho comportamento oriundo do seu britânico protagonista beberrão, chefe incompetente e misógino David Brent, encontrou no Michael Scott de Scranton, Pensilvânia (terra de Joe Biden), uma combinação de carência afetiva, competência no trabalho e infantilidade nas atitutdes que o tornaria adorável e cativante no decorrer das sete temporadas protagonizadas por Steve Carell.  

Michael e seu reino: carência afetiva e busca por aceitação

Nessa ligação do público com seus personagens, Michael e suas inseguranças se tornaram o caminho exato para a comédia e para o laço afetivo do espectador com aquelas figuras. Isso juntamente a um grupo de coadjuvantes afiado e que foi descobrindo suas marcas e demonstrando-as para a audiência no decorrer das temporadas com cada personalidade sendo desenhada pelo time de roteiristas de modo experimental e gradativo, e as encaixando cada vez melhor nas exatas tiradas do roteiro. E, claro, havia o arco romântico necessário (e quase inalcançável) para manter aquelas primeiras temporadas dentro de uma expectativa diante do público que ainda não tinha o streaming e as maratonas sanando ansiedades (ou criando ainda mais), e precisava esperar a passagem dos dias para um novo episódio.

"EFEITO SEINFELD"

A série The Office de Scranton, com sua companhia Dunder Mifflin a também vender papel, trouxe algo ainda mais inovador que era a "comédia geográfica". Explico: o prédio onde funcionava a empresa passou a servir, no decorrer das temporadas, como, também, objeto de criação e de situações cômicas. Assim, para além de um apartamento (Seinfeld), um bar (Cheers)  ou de um café (Friends) a servir como local explorado de maneira mais simples, estática e direta, o criador da versão dos EUA, Greg Daniels, soube utilizar a limitação física de um prédio em enquadramentos e movimentos de câmera para que o "falso documentário" (ou mockumentary) chegasse a uma fluidez cômica admirável dentro do uso daqueles mesas, cubículos, corredores e estacionamento.

"Ah, ha, ha, ha, stayin' alive, stayin' alive": cena mais engraçada

Até alcançar, dentro do citado desenvolvimento afetivo de seus personagens junto ao público que se tornaria cativo, o nível de comédia que a consagraria, The Office passou por alguns testes. Um deles é o notório "efeito Seinfeld", no qual a audiência inicialmente declina em encarar o programa como um eventual sucesso, mas, depois de alguns episódios (no caso, toda a primeira temporada), percebe o tesouro que tem em mãos. O mesmo aconteceu com a série criada por Jerry Seinfeld e Larry David no final do anos 1980 e que, também, teve nove temporadas, se tornando um fenômeno em um período no qual a TV convencional ditava o humor que era feito. Hoje, em uma época fugaz e pouco fluída, quando o streaming e suas maratonas ditam as regras, pepitas como essas duas não teriam muitas chances de seguir com temporadas para além da primeira. O sucesso precisa ser imediato. A audiência, muitas vezes preguiçosa, requer uma recompensa instantânea para seu tempo investido.


Dwight e sua ambição insana por poder

ELENCO DE APOIO

Junto a Steve Carell, que começava a despontar tanto em papéis de comédia mais escrachada, como Todo Poderoso O Virgem de 40 Anos, quanto em personagens mais sutis como o do acadêmico suicida de Pequena Miss Sunshine, estava  um elenco de apoio formado basicamente por desconhecidos. Alguns deles, inclusive, usando os próprios nomes e trabalhando, também, como membros da equipe técnica, ajudavam a moldar uma série de situações absurdas que aquela rotina de labor trazia. Dentre estes, Rainn Wilson, na pele do (quase psicopata) Dwight Schrute, e John Krasinski vivendo o pregador peças, Jim Halpert, se destacavam. Dwight, em sua obsessão megalomaníaca por poder e na bajulação constante para com Michael. Jim, em sua noção exata de como poderia usar sua jornada enfadonha para provocar o colega de vendas e, assim, fazer sorrir a garota dos seus sonhos, a recepcionista Pam (Jenna Fisher). Tais figuras se tornam de cara as outras duas pernas daquele equilíbrio exato de comédia, drama e romance, que tinha em Carell a outra parte no mesmo equilíbrio. Mas não somente eles, claro. No decorrer de suas nove temporadas, principalmente nas duas já sem a presença de Michael, é perceptível a força de todo o elenco como um conjunto para tornar The Office o sucesso que foi. No pós série, seus protagonistas seguiram por caminhos bem distintos em suas carreiras, com Carell focando em papéis dramáticos que lhe renderam indicação ao Oscar e Globo de Ouro, e Krasinski se tornando um proeminente ator de ação e um diretor/roteirista surpreendente com a excelente franquia Um Lugar Silencioso.

Série equilibra-se entre a comédia e a emoção


FINAL EMOTIVO

Diferente de Seinfeld em seu final tão nonsense quanto várias de suas situações abordadas durante toda trajetória do programa, The Office, em seu fechamento e despedida, preferiu seguir por um apelo mais emocional daquele "dizer adeus" a tão carismáticos e queridos personagens. Desde a saída de Steve Carell do show (desculpe pelo spoiler), seu perfil de tendência ao afeto dentro daquela rotina acabou por prevalecer em diversos momentos. Mas não como um erro, friso. A maneira tenra como nos despedimos daquelas pessoas soa como um modo mais do que adequado para deixar aqueles que parecem se tornar companheiros em nossa própria, e muitas vezes estúpida, rotina em escritórios (e eu digo isso por experiência própria) quanto na necessidade de confinamento nesse 2020 terrível.

The Office serviu como muitas curas de ansiedades e busca por algum conforto diante de tanta angústia e incertezas. Na última fala de toda a série, a personagem de Pam diz que "há muita beleza nas coisas comuns." Após meses olhando paredes e tentando encontrar paciência e foco na esperança de dias melhores, o final de The Office ajudou bastante a encontrar a motivação para encarar o dia após dia desse ano que se encerra.  

*Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, dia 27/12/2020




terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O Ano da Mídia Física


Estreitando diálogo com colecionadores e focando em lançamentos  de filmes com extras, embalagens especiais e memorabilia, distribuidoras e lojas de DVDs e blu-rays reinventam o mercado

Por João Paulo Barreto

Em abril, quando A TARDE abordou em uma reportagem o consumode filmes em  mídia física (DVDs eblu-rays), o termo "combalido" para referenciar esse mercado foi utilizado não de maneira errônea, mas, ainda assim, precipitada. Claro, naquele momento,  vínhamos de um período difícil. Tais lançamentos, principalmente em blu-rays, estavam se tornando escassos no Brasil. Com poucas distribuidoras a investir capital em tiragens de filmes a partir de um tipo de mídia ameaçada pelo streaming (com seus algoritmos a definir preferências, escolhas e tempo limitado para acesso a obras), via-se um futuro com os dias contados para essa maneira de se consumir cinema, conhecer escolas e obras completas de cineastas de todo o mundo. Com a pandemia deflagrada, fechamento de salas, suspensão de estreias e o (ainda necessário) confinamento tendo seu início por aqui, a percepção era de um mercado com os dias contados. Essa previsão, porém, vista hoje em retrospecto, não poderia estar mais distante da realidade.

Além das já conhecidas distribuidoras, como Obras-Primas do Cinema, Versátil e CPC Umes Filmes, que já tinham em seus catálogos lançamentos em blu-ray oriundos de períodos anteriores, o ano de 2020 trouxe para o conhecimento amplo do público neste mercado atualmente de nicho e (quase) restrito a colecionadores, lojas virtuais que também passaram a investir em lançamentos exclusivos. É o caso da FAMDvD e The Originals, cujos proprietários, Fabio Martins e Fernando Alves, respectivamente, mantêm em suas áreas de trabalho um foco centrado a um tipo de clientela ciente do esforço em se manter viva essa maneira de se consumir cinema em um tipo de entretenimento para além do streaming e suas limitações de qualidade.  


Fabio Martins, proprietário da FAMDvD

"Eu pensava muito sobre essa possibilidade de trazer um lançamento em blu-ray de um filme que estava esgotado. Sobre ser ou não viável. A pergunta era: 'por que não pode ser feito? Alguém já tentou?'  Nas conversas que eu  tinha com distribuidoras e outros lojistas, eles falavam: 'olha, blu-ray acabou. Isso não dá dinheiro. Aqui no Brasil, não vingou.'  E isso me incomodava muito porque eu olhava para o (site) Mercado Livre, e pediam altos valores por filmes esgotados. A conta não fechava. Como pode um produto ser tão valorizado por alguns, e quem está vendendo diz que não vingou, que blu-ray não vende?", relembra Fabio Martins, cuja loja, FAMDvD, no ramo há 12 anos, bancou no primeiro semestre, através da Universal Pictures, uma nova tiragem do filme A Bruxa. Sucesso de crítica lançado em mídia física em 2016, o longa teve todo seu estoque vendido na ocasião e, consequentemente, unidades passaram a ser especuladas no Mercado Livre. Fabio ainda trouxe de volta, através da Sony Pictures, outro fenômeno de vendas em uma nova tiragem: O Barco, clássico filme de Wolfgang Petersen, cujas poucas unidades em blu-ray à venda no mesmo Mercado Livre chegavam a valores que ultrapassavam R$500,00. Atualmente, já está esgotado.

Fernando Alves, proprietário da The Originals

No mesmo ramo, Fernando Alves, da The Originals, loja virtual que desde os anos 2000 atua nesse mercado, também foi responsável por trazer para o Brasil filmes de apelo ao público colecionador no formato do blu-ray, cujo som e imagem digitais deixam para trás qualquer opção em streaming ou DVD. O critério de escolha do que será lançado passa por um crivo analítico de quem atua já há quase vinte anos no ramo de filmes em mídia física. "É um risco muito grande os lançamentos exclusivos que fazemos hoje. Para fazer chegar esses títulos aos colecionadores. E não podemos errar muito, porque somos empresas pequenas. Não temos essa margem para erro", comenta Fernando em relação a escolha de quais filmes traz para o acervo de lançamentos exclusivos de sua loja, lembrando que as tiragens são de mil unidades. Dentre esses acertos, Nós, filme do Jordan Peele, até então inédito em mídia física no Brasil, bem como Ex Machina, surpreendente ficção científica de 2014, compõem parte do seu variado catálogo, cujos lançamentos exclusivos acompanham de perto as demandas dos colecionadores brasileiros.

Igor Oliveira, coordenador do selo CPC Umes Filmes

NICHO DO NICHO

Mas para além do apelo da cultura pop em filmes cujo chamado "hype" já colabora bastante em estratégias de vendas e interesse do público que ainda consome DVDs e blu-rays, o CPC Umes Filmes trabalha exclusivamente com obras do cinema soviético e russo, cuja audiência focada em um filmografia fora do apelo hollywoodiano denota uma característica ainda mais marcante para esse mercado. " O CPC UMES Filmes é o nicho dentro do nicho. Mas esse mercado de nicho do colecionismo tem essas duas características. Ele é muito restrito, e quem está dentro dele, tem uma qualidade de interesse de informação muito alta", explica Igor Oliveira, coordenador da distribuidora, cujas obras em blu-ray como Stalker, Andrei Rublev Solaris (pilares de Andrei Tarkovsky), bem como Vá e Veja, obra prima de Elem Kilmov, e o principal lançamento do ano em mídia física, o box do filme Guerra e Paz, adaptação de Tolstoi dirigida por Serguei Bondarchuk, dão ao público cinéfilo um acesso de qualidade única para tão rico cinema. 

Produtos lançados pelo selo Obras Primas do Cinema

SAÍDA DAS LIVRARIAS

Com o fechamento da Livraria Saraiva, além da recuperação judicial da Cultura, distribuidoras como Obras-Primas do Cinema e Versátil passaram a investir em seus próprios sites de vendas e em uma maior proximidade com o consumidor final através de redes sociais. Valmir Fernandes, diretor do selo OP, destaca como essas mudanças nortearam o modo de vendas em 2020. "A FAMDVD começou o ano com lançamentos exclusivos em blu-ray. A Versátil anunciou vários, também. Então, resolvemos experimentar e colocamos o blu-ray  de Um Lobisomem Americano em Londres exclusivo no nosso site. Só no primeiro mês, foram 700 clientes novos cadastrados. Após alguns meses, a tiragem de 2500 unidades esgotou", comemora Valmir.

Produtos lançados pela Versátil Home Vídeo


Como novo panorama do mercado, a importância do foco na própria loja, criando uma ponte direta com o público colecionador, também é pontuada por André Melo, diretor do selo Versátil.  "Eu lembro que, em dezembro de 2019, reuni toda a equipe e apresentei os dados daquele ano. Iniciei falando: 'precisamos avaliar o que faremos para sobreviver nesse mercado.'  E os principais pontos levantados foram: 'Vamos voltar para o blu-ray. Vamos desenvolver a nossa loja,  melhorar o nosso SAC e a nossa forma de envio.' ", relembra André. Com 2020 iniciando e o anúncio de uma coleção em blu-ray dos filmes de John Carpenter, dentre diversos outros títulos que se seguiram, o período acabou, também, se demonstrando surpreendente para a Versátil.  

Observar esse ano atípico se encerrar como um símbolo da (ainda) força da mídia física, tem como principal lição a percepção de um mercado como algo feito por (e voltado para) seu público colecionador. Que se torne um aprendizado e foco constante para a perenidade.  


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 16/12/2020