domingo, 29 de setembro de 2019

Sócrates


Existência como martírio e resistência


Com Sócrates, jovem Christian Malheiros estreia com atuação

densa para drama de um Brasil amargo e real

Por João Paulo Barreto

A jornada de dor do garoto Sócrates começa sem nenhum tipo de prólogo. É como a sua própria existência e realidade se apresentam para ele. Logo no primeiro frame do homônimo filme dirigido por Alexandre Moratto, a aspereza da vida daquele menino é lançada na tela de maneira violenta. Não há uma comparação entre o antes e o depois. A vida dele é aquilo que vemos se desenhar. Deparar-se com o corpo da mãe, que parece ter falecido durante o sono, é o inicio de uma fase ainda pior na trajetória do adolescente de 15 anos.  A partida dela é como um chute do destino em suas costas, que o empurra de maneira agressiva em direção a uma rotina em que cada esquina lhe chega como um soco na cara. Tendo na mãe seu único porto seguro, Sócrates se vê na vida sem qualquer norte, e é nesse mergulho sem direção que a câmera de Moratto nos leva.

Na presença de Christian Malheiros (da série Sintonia) como protagonista daquela jornada, a construção de um jovem que tem o peso do mundo sobre si, mas segue em um insistente duelo contra este esmagamento. Malheiros constrói seu Sócrates de forma gradativa. Aos poucos vemos aquele mundo quebrar o menino. E é doloroso ver isso. Aqui, não há deus ex machina ou a estrutura de conto de fadas. A vida de Sócrates não é uma fábula onde sua rotina é desenhada como uma série de percalços, lutas, e reviravoltas para, finalmente, surgir um final feliz. Não. Sua realidade é uma constante batalha pelo próximo dia, pois é nele que a fome vai chegar; é nele que a grana vai faltar; é nele que o aluguel vai vencer e que a solidão vai bater dolorosamente. E ele não vai ter opção alguma a não ser a de levantar e seguir.

Tales Ordakji no papel de Maicon e Christian Malheiros

LUTO E AMOR NEGADOS


Com uma entonação otimista de sua voz, Malheiros dá a Sócrates uma forma de esconder, mesmo que brevemente, seu cansaço. Ele quer continuar lutando, mas o que vem do lado de lá insiste em jogá-lo no chão. Porém, lá está ele, naquele tom empolgado, dizendo que pode fazer aquele trabalho, que está aí caso precisem de alguém para cobrir aquele turno ou que está disposto a aprender o que a função exige que ele aprenda. Porém, nem mesmo o luto lhe é permitido. Precisa esconder a morte da mãe para que não perca o emprego nos serviços de limpeza, vaga que pertence a ela, mas que conseguiu substituir para que, enquanto convalescia, não perdesse o trabalho.  

Nos poucos momentos que se permite escapar daquele peso, Sócrates dança embriagado por água ardente ou pela breve paixão por Maicon (Tales Ordakji), que tem um segredo em sua vida que impedirá de seguir com ele. Até mesmo essa paixão por Maicon surge em sua vida de maneira violenta, quando os olhares entre si terminam em socos de auto-recriminação e medo de demonstrar fraqueza por se sentir atraído. Na despedida, quando o segredo de Maicon lhe é apresentado em uma cena que se equilibra entre algo tão bonito, porém doloroso, mas que significa a percepção do fim por Sócrates, Maicon coloca um dinheiro em seu bolso, dizendo para ele ir embora. Ao menos ali estava alguém que se importava, mesmo que a sua própria realidade o impedisse de seguir em sua felicidade.

Sócrates e um reencontro amargo

SEM VOYEURISMO

No reencontro com pai, que apenas conhecíamos pela resistência de Sócrates em não querer tê-lo de volta em sua vida, percebemos a razão para aquele trauma exigindo a distância. Não há afeto, mas, sim, uma autoridade doente, baseada em hipócritas preceitos religiosos e em um sádico comportamento homofóbico. Ao atingir um nível alarmante de necessidade, recorrendo ao lixo para não morrer de fome, é quando sua fúria contra aquele que deveria lhe dar afeto ao invés de sadismo se manifesta. Apesar da catarse ao ver Sócrates se vingar de toda aquela animosidade, não a sentimos como sendo algo a nos dar regozijo. Ali, Sócrates encontra, ao menos, algo que traga uma mera lembrança de sua mãe, mesmo que seja um símbolo de sua partida. Símbolo este que se tornará um rito de passagem para aquele garoto.

Moratto coloca o público dentro da realidade de Sócrates não como um voyeur. Não há estilização do sofrimento para a plateia retirar 70 minutos do seu tempo como modo de experimentar e avaliar aquele percalço alheio de maneira oportunista. A reflexão que Sócrates, o filme, concede ao espectador atento é a de uma realidade que está ali, densa, pesada, sem floreios, frases de efeito ou epifanias. E ela permanece até o fim. Nem mesmo o purificador mergulho no mar de Santos a representar o citado rito faz o público deixar de carregar consigo o peso daquela história para fora da sala de exibição. E que este peso sirva como uma reflexão e busca de solução para uma realidade que assombra a muitos.

 *Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 29/09/2019


domingo, 22 de setembro de 2019

Os Jovens Baumann


O desaparecimento dos dias da juventude


Com suspense como falsa ambientação, Os Jovens Baumann cria reflexão s
obre a nostalgia de uma fase deixada para trás

Por João Paulo Barreto

Dentre os filmes definidos como found footage, termo em inglês que indica obras de ficção a emular uma quase documental realidade, trágica ou não, acontecida no passado através de registros caseiros ou não profissionais, uma gama diversa de possibilidades narrativas pode ser concebida. Habitualmente relacionado ao terror sobrenatural ou ao gore (estilo mais sanguinolento e gráfico de violência no cinema), os found footage (em tradução literal, “gravações encontradas”) têm um dos seus primeiros registros no cinema com Holocausto Canibal, obra de 1980 que trazia a trágica incursão de um grupo de aventureiros/cientistas em visita às matas da América do Sul em uma viagem que custaria suas vidas e, antes disso, sanidades. De lá pra cá, o mais famoso dos exemplares é A Bruxa de Blair, que também trazia as fitas com registros encontrados de um grupo de pessoas a desvendar uma floresta com um folclore sobrenatural em suas raízes. 

Mas, diante dessa citada gama de possibilidades narrativas, o que a diretora Bruna Carvalho Almeida alcança em Os Jovens Baumann, exemplar brasileiro do gênero, é justamente o subverter dessa expectativa pesarosa para seu público. Aqui, ela cria uma narrativa baseada em imagens encontradas em um local onde supostamente algo trágico ocorreu. No entanto, essa expectativa é mantida sempre em um limiar de entrega de algo catártico, mas que nunca se concretiza. E é justamente neste aspecto que seu filme se consolida como ótimo exemplar desse gênero. Pelo suspense não manipulador, mas que, ao mesmo tempo, se faz sempre presente de maneira a causar aquele bem-vindo comichão incômodo.

Um dos Baumann brinca como se desse adeus 

OLHAR RETRÔ

A rotina dos primos da Família Baumann, herdeiros de uma longa tradição no cultivo de café, em visita a uma fazenda parte dessa herança, é o mote para a criação dessa expectativa na audiência que convive por pouco mais de uma hora com as brincadeiras daquele grupo simpático de jovens. Na captação através de uma câmera VHS e com breves interlúdios narrativos explicando as circunstâncias do desaparecimento do grupo e o subsequente encontrar das fitas, o longa cria uma ambientação na qual sabemos que algo trágico se avizinha. Gradativamente, penetramos nas conversas e brincadeiras daqueles garotos e garotas de classe média alta a contar suas aventuras prévias e a definir ao público suas personalidades.

Localizado em 1992, o contexto social no qual está inserido o grupo é pincelado ao espectador de maneira sutil. Algumas pistas são colocadas ali para entendermos o quão abastada é aquela família, como quando um deles brinca em um interrogatório para saber quem planejava roubar a fortuna dos Baumann. Até mesmo a postura elitista daquela classe é desenhada no momento em que a reforma agrária entra como tema de uma conversa e uma das jovens destila certo preconceito ao falar que mendigos iriam invadir o lugar. Tais inserções, para além de qualquer intenção de se lançar em um terreno que se baseie em uma crítica social daquelas pessoas, servem mais como uma ilustração de suas maturidades, colocando-os, quando vistos pela cortina do tempo e pelo olhar da câmera retrô, como uma maneira dos jovens se perceberem ingênuos na passagem de1/4 de século. Algo que, claro, não se concretiza pela tragicidade dos fatos.

Brincadeiras como prelúdio de uma despedida

ALEGORIA DA JUVENTUDE

Com suas liberdades expostas e comportamentos o tempo inteiro festivos, os integrantes daquele grupo de primos são desenhados como símbolos de uma época nostálgica, algo denotado ainda mais pela utilização das imagens de uma captação em VHS. A fuga de um cavalo, o desaparecimento de uma cidade nas águas de uma represa, são elementos a representar esse escape e perda.

Disfarçado como um filme de suspense, Os Jovens Baumann se torna uma alegoria eficiente para a juventude descompromissada, a mesma que desaparece com o passar dos anos no encontro com outros focos e pesos na vida. No final, esse é o suspense que se consolida.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 22/09/2019





domingo, 15 de setembro de 2019

Legalidade


Quando Brizola peitou os golpistas


Com Legalidade, um vislumbre de um Brasil que poderia ter escapado da tragédia da ditadura

Por João Paulo Barreto

Impressionante como o timing do lançamento de um filme se torna preciso de acordo com a época e a conjuntura social e política em que ele é lançado. Se tivesse estreado há 10 ou 15 anos, Legalidade, novo trabalho dirigido por Zeca Brito (do excelente A Vida Extraordinária de Tarso de Castro) geraria, sim, reflexão e impacto semelhante ao que vemos hoje, em um desolador 2019, ano vitima que resultou de manipulações jurídicas e fake news em um processo de eleitoral vicioso.

Porém, adentrar atualmente no processo de luta liderado pelo então governador do Rio Grande do Sul em 1961, Leonel Brizola, por ocasião da renúncia desastrosa do presidente Jânio Quadros, torna inevitável a reflexão, comparação e consequente desânimo diante de nossos dias.  Jânio, em livro organizado pelo seu neto, admitiu no leito de morte que usou o ato da renúncia como uma tentativa de recuperar popularidade voltando “nos braços do povo ao poder”. Para que este não assumisse, enviou seu vice, João Goulart, em visita diplomática à China e acabou dando um tiro no pé (e no país) uma vez que, de fato, deixou a presidência e abriu as portas para a sombra das Forças Armadas.

A partir disso, a manipulação militar para impedir que Goulart assumisse, ou que assumisse através de um acordo com os milicos (como aconteceu), a influência estadunidense nestes conchavos e o folclore propagado em torno do “terror vermelho” (sensação de déjà vu com a campanha de 2018), levou o Brasil a apenas três anos de governo de Jango e uma caminhada à beira de um precipício uma vez que, em abril de 1964, este foi deposto e país caiu nas trevas da ditadura.

Brizola (Leonardo Machado) convoca população à luta

MOVIMENTO PELA LEGALIDADE

O foco, porém, está nas ações perpetradas por Leonel Brizola (Leonardo Machado) e o movimento iniciado a partir do Palácio Piratini, sede do governo gaucho. Legalidade recria os momentos de tensão com o comunicado da renúncia de JQ e ausência de Jango no país. Brizola, percebendo os interesses militares em não deixar que o vice-presidente assumisse, inicia uma série de comunicados ao povo do RS informando-os acerca da real possibilidade de um golpe militar. Assim, diante de ameaças de bombardeios no palácio, fechamento de rádios e transmissão de pronunciamentos a partir dos porões da sede do governo, Brizola passou a comandar a frente democrática para que Goulart, ao retornar ao Brasil, assumisse a presidência.

O falecido ator Leonardo Machado (a quem o filme é dedicado) constrói a presença de Brizola em todos os trejeitos exatos que o PDTista possuía. Desde sua entonação pausada, com palavras pronunciadas em cada silaba, até seu olhar compenetrado, de baixo pra cima, que prenunciava um sorriso aberto, Machado recriou a presença do jovem Brizola de maneira precisa.

Como contra ponto para o foco biográfico da obra, o roteiro de Legalidade insere a presença fictícia da jornalista correspondente do Washington Post, Cecília (Cleo Pires, que, na verdade, interpreta uma agente infiltrada do governo dos EUA) em um triângulo amoroso com os irmãos Luis Carlos (um antropólogo revolucionário vivido por Fernando Alves Pinto) e Tonho (José Ligabue, que interpreta um fotojornalista em um escape para o humor no longa).

Nesta abordagem, o filme perde força por conta da fragilidade deste arco narrativo, bem como o tom um tanto de novela com que o diretor Zeca Brito optou por trazer aquele romance. Assim, It´s Now or Never, na voz de Elvis, e outras músicas incidentais não ajudam muito na dramaticidade do filme, trazendo uma proposta que incomoda por conta dessa opção pelo tom folhetim. Para perceber isso, basta observar como o impacto do diálogo entre Cecília e Luiz em frente a um desfiladeiro com o mar ao fundo gera muito mais apelo dramático com o som ambiente do que com qualquer música a embalar o momento.

Luz pela legalidade: Brizola nos porões da democracia
FUTURO REPETE PASSADO

Ligando os acontecimentos da juventude de Brizola aos seus dias na velhice (com Sapiran Brito no papel), temos a filha de Cecília (vivida por Letícia Sabatella) em busca de respostas acerca da trajetória da mãe, morta em 1968. Em visitas a arquivos públicos durante o ano de 2004, mesmo do falecimento de Brizola, a personagem consegue criar um elo representativo da memória do brasileiro com seu passado, algo que parece não ser muito possível quinze anos depois. Uma metáfora eficiente, mesmo que, em uma dessas visitas, o filme falhe ao mostrar a personagem rabiscando um jornal do acervo.

Apesar de uma construção clichê da relação de Cecília com o governo estadunidense (as cenas em que ela conversa com um agente da CIA entregam essa fragilidade do roteiro), a inserção da personagem na trama denota bem a manipulação do governo de Kennedy e seu interesse em manter a influência dos Estados Unidos entre os líderes da América Latina. A ideia de uma sombra vermelha, propagandeada pelos ianques e abraçada pelos militares daqui como meio de manipular a opinião pública é bem desenhada pelo texto de Leo Garcia e do próprio diretor Zeca Brito.  A comparação citada no começo em relação aos diferentes meios de manipulação de um mesmo rumor para criar uma massa de manobra entre eleitores é algo que se repetiu de forma muito mais sórdida em tempos recentes.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 15/09/2019


quinta-feira, 5 de setembro de 2019

It - Capítulo 2


A relevância do Terror


Apesar do tom episódico com sequências de terror, 
conclusão de It – A Coisa faz jus à grandeza do clássico de Stephen King

Por João Paulo Barreto

Quando se inicia o capítulo dois e final de It – A Coisa, adaptação da obra literária homônima de Stephen King, uma atmosfera específica inserida pelo cineasta argentino Andy Muschietti desde sua primeira parte, de 2017, surge. Trata-se da eficiente ideia de nostalgia misturada ao terror dos medos infantis. O já comum uso de risadas de crianças para criar essa tensão colabora, claro, mas é por conhecer a proposta de seu autor, tanto o literário King quanto a do roteirista Gary Dauberman (que já havia explorado esses medos no ótimo Annabelle 2), que percebemos o quão aterrorizante  é esse retorno à infância, podendo ser representado apenas por uma saudade, mas que, aqui, se relaciona com um genuíno pavor.
Derry, a cidade imaginada por Stephen King para ilustrar A Coisa e diversos de seus outros livros reaparece em It – Capítulo 2 como um presságio. Inicialmente, como uma lembrança doce. Os sons de um parque de diversões, o cheiro da pipoca, o sorriso das crianças e os casais de mãos dadas nos trazem isso. 

Ao utilizar a nostalgia de um parque que, mesmo funcionando em 2019, remete o espectador (e o leitor) a uma visita em sua infância de muitos anos antes, Muschietti, junto ao seu diretor de fotografia, o peruano Checco Varese, recriam exatamente a palpável tensão marcante de sua fonte original. Mesmo diante do medo, lá estão o ar de cidade de interior, os aromas, as cores douradas a nos levar a períodos equivalentes de encanto.  Mas, conhecendo a literatura de King, percebe-se que o mal está incrustado em tudo, apenas esperando o momento mais oportuno para se manifestar. Logo, essa crueldade se torna um anúncio para a tragédia quando aquele ambiente declina para uma violência homofóbica que serve como prelúdio para o ressurgimento do personagem central e símbolo daquele horror.

Perdedores em suas versões adultas

PERDEDORES DE VOLTA

Nas versões adultas, os losers do primeiro filme seguem em suas vidas. Alguns com sucesso, outros nem tanto. No mais simbólico dos casos, Beverly Marsh (agora vivida por Jessica Chastain), vive em um casamento abusivo e escapa dessa violência a partir do chamado de Mike Hanlon (Isaiah Mustafa), o único dos “perdedores” do grupo a ter ficado em sua cidade natal. Mike, ao perceber o retorno do símbolo daquele horror citado, convoca os amigos a cumprirem o juramento de voltar à Derry para enfrentar o mal representado pelo palhaço Pennywise, interpretado magnificamente por Bill Skarsgård. Assim, lá estão de volta Bill Denbrough (James McAvoy), Richie Tozier (Bill Hader, hilário), Ben Hanscom (Jay Ryan) e Eddie Kaspbrak (James Ransone, em uma impressionante semelhança física com o ator Jack Dylan Grazer, sua versão criança).

Neste reencontro, porém, é onde o filme, com seus quase 170 minutos, demonstra sua falha, algo perceptível principalmente em comparação à sua primeira parte. Com a necessidade de abarcar os dramas de todos os personagens junto ao terror oriundo do contato com Pennywise, o roteiro de It – Capítulo 2 acaba, em alguns momentos, por perder seu ritmo, tornando-se episódico e expositivo na ideia de criar sequências de terror. Assim, cada um dos adultos passa a ter uma experiência singular com a criatura, algo que espelha um trauma vindo da infância. Diante de tantos momentos nos quais o palhaço surge como um elemento fantasioso a explorar o medo de cada um dos perdedores (ou otários, em sua adaptação), o longa perde um pouco do seu impacto como filme de terror, como, por exemplo,  a sequência envolvendo uma estátua gigante de lenhador a ganhar vida.

Porém, é válido salientar que, em algumas dessas sequências, como a que aborda o encontro de Bill e seu irmão caçula junto a um bueiro conhecido ou o momento em que Beverly se vê de volta à casa onde morou com seu pai molestador e alcoólatra, assustam justamente por abordar dramas onde o terror fantasioso de Pennywise se torna uma alegoria para o real trauma psicológico de seus protagonistas, algo muito bem explorado nessa conclusão com outros personagens, também. Dentre eles, Stanley Uris (Andy Bean), que, em breve participação, insere um denso tom dramático em um arco envolvendo suicídio.

Pennywise e sua verdadeira face

REENCONTRO COM PASSADO

Excetuando o caráter episódico existente na ideia abordar diversas passagens de terror em seus muitos personagens, essa conclusão de It figura como um ótimo exemplar do gênero, e isso se deve principalmente à participação de Bill Skarsgård como Pennywise. Aqui, inclusive, é possível um vislumbre do ator sem a pesada maquiagem de palhaço, em uma pertinente homenagem que Muschietti faz ao seu protagonista. E ele consegue transferir em sua versão humana horror tão sufocante quanto o de sua persona circense e doentia.

Demonstrando uma montagem precisa em relação a mesclar flashbacks com a trama que acontece na atualidade, trazer a continuidade da história dos losers ainda adolescentes e criar diversas rimas visuais de suas vidas com suas atormentadas versões adultas, a conclusão da adaptação da obra de Stephen King (que faz uma participação hilária em cena) coloca It – O Filme, considerando ambos como uma obra única, como aquele tipo de transposição para os cinemas a ocupar o mesmo lugar afetivo do seu original literário.

E ver em It e em suas homenagens (as que abordam Carrie e O Iluminado, ambas obras de King, saltam aos olhos) o Terror como gênero alcançar tamanha relevância dentro de uma onda de filmes que se repetem e se banalizam em suas propostas de causar medo, não é algo a se menosprezar.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 06/09/2019






domingo, 1 de setembro de 2019

Yesterday


E se os Beatles...


Em Yesterday, Danny Boyle adapta para o artificial século XXI
a espontaneidade da criação de um fenômeno cultural

Por João Paulo Barreto

Imaginar os Beatles surgindo em pleno século XXI, distante das limitações publicitárias dos anos 1960 em termos de divulgação e alcance, em um modo totalmente distinto do atual no que tange a investir em um lançamento musical, é um exercício curioso de se fazer. Quando os rapazes despontaram para o sucesso, em 1962, com os shows realizados no Jacaranda e no Cavern, pubs britânicos, o alcance que tiveram se restringiu inicialmente à Inglaterra em meio à influência do Mersey Beat, tablóide de Liverpool que divulgava as bandas da cidade, e o boca a boca entre o já fervoroso grupo de fãs que surgia.

Após a ida para Hamburgo, cidade alemã onde tocaram em inferninhos e puderam aprimorar sua experiência em palcos; após o aparecimento de Brian Epstein, empresário local de Liverpool que se propôs a representar aqueles garotos na busca por um contrato de gravadora; e, claro, a entrada em cena do produtor musical George Martin, responsável pela lapidação de suas composições, a ascensão de John, Paul, George e Ringo (no lugar de Pete) à fama com seu primeiro disco, Please Please Me, junto à inevitável ida aos Estados Unidos após o lançamento do single I Wanna Hold Your Hand, resumem bem o início meteórico dos garotos em sua dominação mundial.

EPISÓDIO DE TWILIGHT ZONE

Mas todas essas informações não são novidade se você viveu parte da vida no caldeirão de cultura pop ou se interessa minimamente por boa música. A utilização delas, aqui, serve apenas para uma ilustração desse exercício citado acima. Mas é em Yesterday, divertidíssima comédia romântica dirigida por Danny Boyle (Trainspotting), que imagina um mundo no qual os Beatles e outra série de elementos físicos e culturais do mundo deixam de existir da noite para o dia, que concretizamos tal brincadeira e analisamos essa ideia da grandeza mercadológica da banda, bem como o modo como isso seria explorado atualmente, tempos em que curtidas definem carreiras.

Jack chega à encruzilhada de sua vida

Na figura do único que parece inicialmente lembrar, o talentoso e sem sucesso músico Jack Malik (Himesh Patel) é quem, após um atropelamento, acorda nessa realidade paralela na qual os FabFour não mais existem e somente ele conhece suas canções.  Logo, mesmo ainda confuso, o rapaz passa a cantá-las comercialmente e é abordado por um grande selo para gravação das pérolas.

Neste ponto, a ideia de comparar o modo como os Beatles ascenderam e a preparação minuciosa de um “produto musical”, como define a arrogante e gananciosa empresária Debra Hammer (Kate McKinnon), espécie de Allen Klein, empresário vigarista dos Beatles, ou com um símbolo dessa nova forma de criar tais produtos na presença hilária de Ed Sheeran, dá ao público uma maneira ainda mais recompensadora de absorver Yesterday – O Filme, esse quase episodio de Além da Imaginação.

Diferente de Across the Universe, musical de 2007 que utilizava as canções da banda como meios de diálogo e contar de uma trama (algo que às vezes soava um tanto forçado), Yesterday, apesar de referenciar a trajetória dos quatro Beatles diretamente (o momento em que é emulada uma cena de A Hard Day´s Night, longa de Richard Lester, é de puro encantamento), consegue mesclar uma proposta de ficção romântica sem a necessidade prolixa de recontar ou readaptar a história do fenômeno cultural.

Help! e o seu real pedido de socorro
Assim, é no drama pessoal vivido por Malik, que sente a consciência pesada por, na verdade, se tratar de um plagiador, que está a essência do longa. O momento em que Help! é cantada a plenos pulmões e o pedido de ajuda é escutado por apenas duas pessoas na platéia traz essa profundidade necessária para seu personagem. E conhecendo a circunstância da composição de John Lennon como um real grito de socorro, tal cena ganha ainda maior simbolismo.

Ainda em relação a Lennon, um momento ímpar do filme faz uma alusão direta à luta do músico em manter-se junto à mulher que amava. Um paralelo íntimo, apesar de em menor circunstância, é oportunamente feito pelo roteiro de Richard Curtis, que já havia escrito o tocante Questão de Tempo. Aqui, a questão vinculada ao par romântico de Malik, Ellie (Lily James), a então amiga e empresária dos tempos de insucessos, sugere, a partir de um belo encontro entre Jack e um personagem histórico, essa motivação para conseguir escapar daquela armadilha oportunista que a fama lhe colocou.

Yesterday não é obrigatoriamente um filme que divertirá apenas os fãs dos Beatles. Aqueles que se encantam diariamente com suas canções e sempre se surpreendem com a influência cultural que suas composições, atitudes e ações causaram no século XX. Ele também é sobre a não obrigatoriedade de se considerar uma estrela. É sobre lidar com a fama de maneira a não se tornar escravo dela. Ao final, é sobre a ideia de conseguir enxergar o sucesso também em pequenas ações, de enxergar o amor ao seu redor. É sobre também multiplicar esse amor. Algo que John, Paul, George e Ringo fizeram tão bem.

Em tempo: há um curta metragem mineiro, de 2008, chamado Os Filmes que não Fiz. Dirigido por Gilberto Scarpa, o filme é uma série de episódios abordando roteiros nunca concretizados por Gilberto. Em um deles, Zelvis, um mundo no qual o rei do rock não existe, é ilustrado com o personagem assumindo o manto de Elvis Presley, cujos discos ainda existem. Algumas pessoas cogitaram a ideia de plágio, uma vez que o filme foi exibido na Europa e está disponível on line. Observando uma essência real de fato presente ali, fica a julgamento do público essa questão.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 01/09/2019