domingo, 29 de setembro de 2019

Sócrates


Existência como martírio e resistência


Com Sócrates, jovem Christian Malheiros estreia com atuação

densa para drama de um Brasil amargo e real

Por João Paulo Barreto

A jornada de dor do garoto Sócrates começa sem nenhum tipo de prólogo. É como a sua própria existência e realidade se apresentam para ele. Logo no primeiro frame do homônimo filme dirigido por Alexandre Moratto, a aspereza da vida daquele menino é lançada na tela de maneira violenta. Não há uma comparação entre o antes e o depois. A vida dele é aquilo que vemos se desenhar. Deparar-se com o corpo da mãe, que parece ter falecido durante o sono, é o inicio de uma fase ainda pior na trajetória do adolescente de 15 anos.  A partida dela é como um chute do destino em suas costas, que o empurra de maneira agressiva em direção a uma rotina em que cada esquina lhe chega como um soco na cara. Tendo na mãe seu único porto seguro, Sócrates se vê na vida sem qualquer norte, e é nesse mergulho sem direção que a câmera de Moratto nos leva.

Na presença de Christian Malheiros (da série Sintonia) como protagonista daquela jornada, a construção de um jovem que tem o peso do mundo sobre si, mas segue em um insistente duelo contra este esmagamento. Malheiros constrói seu Sócrates de forma gradativa. Aos poucos vemos aquele mundo quebrar o menino. E é doloroso ver isso. Aqui, não há deus ex machina ou a estrutura de conto de fadas. A vida de Sócrates não é uma fábula onde sua rotina é desenhada como uma série de percalços, lutas, e reviravoltas para, finalmente, surgir um final feliz. Não. Sua realidade é uma constante batalha pelo próximo dia, pois é nele que a fome vai chegar; é nele que a grana vai faltar; é nele que o aluguel vai vencer e que a solidão vai bater dolorosamente. E ele não vai ter opção alguma a não ser a de levantar e seguir.

Tales Ordakji no papel de Maicon e Christian Malheiros

LUTO E AMOR NEGADOS


Com uma entonação otimista de sua voz, Malheiros dá a Sócrates uma forma de esconder, mesmo que brevemente, seu cansaço. Ele quer continuar lutando, mas o que vem do lado de lá insiste em jogá-lo no chão. Porém, lá está ele, naquele tom empolgado, dizendo que pode fazer aquele trabalho, que está aí caso precisem de alguém para cobrir aquele turno ou que está disposto a aprender o que a função exige que ele aprenda. Porém, nem mesmo o luto lhe é permitido. Precisa esconder a morte da mãe para que não perca o emprego nos serviços de limpeza, vaga que pertence a ela, mas que conseguiu substituir para que, enquanto convalescia, não perdesse o trabalho.  

Nos poucos momentos que se permite escapar daquele peso, Sócrates dança embriagado por água ardente ou pela breve paixão por Maicon (Tales Ordakji), que tem um segredo em sua vida que impedirá de seguir com ele. Até mesmo essa paixão por Maicon surge em sua vida de maneira violenta, quando os olhares entre si terminam em socos de auto-recriminação e medo de demonstrar fraqueza por se sentir atraído. Na despedida, quando o segredo de Maicon lhe é apresentado em uma cena que se equilibra entre algo tão bonito, porém doloroso, mas que significa a percepção do fim por Sócrates, Maicon coloca um dinheiro em seu bolso, dizendo para ele ir embora. Ao menos ali estava alguém que se importava, mesmo que a sua própria realidade o impedisse de seguir em sua felicidade.

Sócrates e um reencontro amargo

SEM VOYEURISMO

No reencontro com pai, que apenas conhecíamos pela resistência de Sócrates em não querer tê-lo de volta em sua vida, percebemos a razão para aquele trauma exigindo a distância. Não há afeto, mas, sim, uma autoridade doente, baseada em hipócritas preceitos religiosos e em um sádico comportamento homofóbico. Ao atingir um nível alarmante de necessidade, recorrendo ao lixo para não morrer de fome, é quando sua fúria contra aquele que deveria lhe dar afeto ao invés de sadismo se manifesta. Apesar da catarse ao ver Sócrates se vingar de toda aquela animosidade, não a sentimos como sendo algo a nos dar regozijo. Ali, Sócrates encontra, ao menos, algo que traga uma mera lembrança de sua mãe, mesmo que seja um símbolo de sua partida. Símbolo este que se tornará um rito de passagem para aquele garoto.

Moratto coloca o público dentro da realidade de Sócrates não como um voyeur. Não há estilização do sofrimento para a plateia retirar 70 minutos do seu tempo como modo de experimentar e avaliar aquele percalço alheio de maneira oportunista. A reflexão que Sócrates, o filme, concede ao espectador atento é a de uma realidade que está ali, densa, pesada, sem floreios, frases de efeito ou epifanias. E ela permanece até o fim. Nem mesmo o purificador mergulho no mar de Santos a representar o citado rito faz o público deixar de carregar consigo o peso daquela história para fora da sala de exibição. E que este peso sirva como uma reflexão e busca de solução para uma realidade que assombra a muitos.

 *Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 29/09/2019


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