sábado, 26 de dezembro de 2020

The Office

 A Beleza no Comum



TELEVISÃO The Office completa quinze anos em 2020 e segue como um dos tesouros do humor oriundo da TV no período anterior às maratonas fugazes e sem aprofundamento do streaming

Por João Paulo Barreto

Adaptar o ácido e sagaz humor britânico para a TV dos EUA pode ser uma tarefa complicada de se cumprir. Quando, em 2001, o ainda quase anônimo Ricky Gervais lançou, pela BBC de Londres, uma série que abordava a rotina da Wernham Hogg, companhia do ramo do papel na pequena cidade de Slough, interior da Inglaterra, ele não imaginava que o nonsense e quase agressivo comportamento envolvendo o seu protagonista, David Brent, pudesse ser levado para o canal estadunidense NBC de forma tão eficiente. Ao cruzar o atlântico e ser adaptada para terras ianques, The Office saiu do padrão "duas temporadas de seis episódios mais Especial de Natal" do canal londrino para arriscar, em 2005, uma estrutura inicialmente semelhante de seis episódios, mas que logo se demonstraria formidável em seu sucesso de público e crítica, permitindo que se prolongasse até 2013 e chegando a nove temporadas com mais de dez episódios cada. Mas o humor que de começo seguia o mesmo padrão de silêncios desconfortáveis e análise do asqueroso e mesquinho comportamento oriundo do seu britânico protagonista beberrão, chefe incompetente e misógino David Brent, encontrou no Michael Scott de Scranton, Pensilvânia (terra de Joe Biden), uma combinação de carência afetiva, competência no trabalho e infantilidade nas atitutdes que o tornaria adorável e cativante no decorrer das sete temporadas protagonizadas por Steve Carell.  

Michael e seu reino: carência afetiva e busca por aceitação

Nessa ligação do público com seus personagens, Michael e suas inseguranças se tornaram o caminho exato para a comédia e para o laço afetivo do espectador com aquelas figuras. Isso juntamente a um grupo de coadjuvantes afiado e que foi descobrindo suas marcas e demonstrando-as para a audiência no decorrer das temporadas com cada personalidade sendo desenhada pelo time de roteiristas de modo experimental e gradativo, e as encaixando cada vez melhor nas exatas tiradas do roteiro. E, claro, havia o arco romântico necessário (e quase inalcançável) para manter aquelas primeiras temporadas dentro de uma expectativa diante do público que ainda não tinha o streaming e as maratonas sanando ansiedades (ou criando ainda mais), e precisava esperar a passagem dos dias para um novo episódio.

"EFEITO SEINFELD"

A série The Office de Scranton, com sua companhia Dunder Mifflin a também vender papel, trouxe algo ainda mais inovador que era a "comédia geográfica". Explico: o prédio onde funcionava a empresa passou a servir, no decorrer das temporadas, como, também, objeto de criação e de situações cômicas. Assim, para além de um apartamento (Seinfeld), um bar (Cheers)  ou de um café (Friends) a servir como local explorado de maneira mais simples, estática e direta, o criador da versão dos EUA, Greg Daniels, soube utilizar a limitação física de um prédio em enquadramentos e movimentos de câmera para que o "falso documentário" (ou mockumentary) chegasse a uma fluidez cômica admirável dentro do uso daqueles mesas, cubículos, corredores e estacionamento.

"Ah, ha, ha, ha, stayin' alive, stayin' alive": cena mais engraçada

Até alcançar, dentro do citado desenvolvimento afetivo de seus personagens junto ao público que se tornaria cativo, o nível de comédia que a consagraria, The Office passou por alguns testes. Um deles é o notório "efeito Seinfeld", no qual a audiência inicialmente declina em encarar o programa como um eventual sucesso, mas, depois de alguns episódios (no caso, toda a primeira temporada), percebe o tesouro que tem em mãos. O mesmo aconteceu com a série criada por Jerry Seinfeld e Larry David no final do anos 1980 e que, também, teve nove temporadas, se tornando um fenômeno em um período no qual a TV convencional ditava o humor que era feito. Hoje, em uma época fugaz e pouco fluída, quando o streaming e suas maratonas ditam as regras, pepitas como essas duas não teriam muitas chances de seguir com temporadas para além da primeira. O sucesso precisa ser imediato. A audiência, muitas vezes preguiçosa, requer uma recompensa instantânea para seu tempo investido.


Dwight e sua ambição insana por poder

ELENCO DE APOIO

Junto a Steve Carell, que começava a despontar tanto em papéis de comédia mais escrachada, como Todo Poderoso O Virgem de 40 Anos, quanto em personagens mais sutis como o do acadêmico suicida de Pequena Miss Sunshine, estava  um elenco de apoio formado basicamente por desconhecidos. Alguns deles, inclusive, usando os próprios nomes e trabalhando, também, como membros da equipe técnica, ajudavam a moldar uma série de situações absurdas que aquela rotina de labor trazia. Dentre estes, Rainn Wilson, na pele do (quase psicopata) Dwight Schrute, e John Krasinski vivendo o pregador peças, Jim Halpert, se destacavam. Dwight, em sua obsessão megalomaníaca por poder e na bajulação constante para com Michael. Jim, em sua noção exata de como poderia usar sua jornada enfadonha para provocar o colega de vendas e, assim, fazer sorrir a garota dos seus sonhos, a recepcionista Pam (Jenna Fisher). Tais figuras se tornam de cara as outras duas pernas daquele equilíbrio exato de comédia, drama e romance, que tinha em Carell a outra parte no mesmo equilíbrio. Mas não somente eles, claro. No decorrer de suas nove temporadas, principalmente nas duas já sem a presença de Michael, é perceptível a força de todo o elenco como um conjunto para tornar The Office o sucesso que foi. No pós série, seus protagonistas seguiram por caminhos bem distintos em suas carreiras, com Carell focando em papéis dramáticos que lhe renderam indicação ao Oscar e Globo de Ouro, e Krasinski se tornando um proeminente ator de ação e um diretor/roteirista surpreendente com a excelente franquia Um Lugar Silencioso.

Série equilibra-se entre a comédia e a emoção


FINAL EMOTIVO

Diferente de Seinfeld em seu final tão nonsense quanto várias de suas situações abordadas durante toda trajetória do programa, The Office, em seu fechamento e despedida, preferiu seguir por um apelo mais emocional daquele "dizer adeus" a tão carismáticos e queridos personagens. Desde a saída de Steve Carell do show (desculpe pelo spoiler), seu perfil de tendência ao afeto dentro daquela rotina acabou por prevalecer em diversos momentos. Mas não como um erro, friso. A maneira tenra como nos despedimos daquelas pessoas soa como um modo mais do que adequado para deixar aqueles que parecem se tornar companheiros em nossa própria, e muitas vezes estúpida, rotina em escritórios (e eu digo isso por experiência própria) quanto na necessidade de confinamento nesse 2020 terrível.

The Office serviu como muitas curas de ansiedades e busca por algum conforto diante de tanta angústia e incertezas. Na última fala de toda a série, a personagem de Pam diz que "há muita beleza nas coisas comuns." Após meses olhando paredes e tentando encontrar paciência e foco na esperança de dias melhores, o final de The Office ajudou bastante a encontrar a motivação para encarar o dia após dia desse ano que se encerra.  

*Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, dia 27/12/2020




terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O Ano da Mídia Física


Estreitando diálogo com colecionadores e focando em lançamentos  de filmes com extras, embalagens especiais e memorabilia, distribuidoras e lojas de DVDs e blu-rays reinventam o mercado

Por João Paulo Barreto

Em abril, quando A TARDE abordou em uma reportagem o consumode filmes em  mídia física (DVDs eblu-rays), o termo "combalido" para referenciar esse mercado foi utilizado não de maneira errônea, mas, ainda assim, precipitada. Claro, naquele momento,  vínhamos de um período difícil. Tais lançamentos, principalmente em blu-rays, estavam se tornando escassos no Brasil. Com poucas distribuidoras a investir capital em tiragens de filmes a partir de um tipo de mídia ameaçada pelo streaming (com seus algoritmos a definir preferências, escolhas e tempo limitado para acesso a obras), via-se um futuro com os dias contados para essa maneira de se consumir cinema, conhecer escolas e obras completas de cineastas de todo o mundo. Com a pandemia deflagrada, fechamento de salas, suspensão de estreias e o (ainda necessário) confinamento tendo seu início por aqui, a percepção era de um mercado com os dias contados. Essa previsão, porém, vista hoje em retrospecto, não poderia estar mais distante da realidade.

Além das já conhecidas distribuidoras, como Obras-Primas do Cinema, Versátil e CPC Umes Filmes, que já tinham em seus catálogos lançamentos em blu-ray oriundos de períodos anteriores, o ano de 2020 trouxe para o conhecimento amplo do público neste mercado atualmente de nicho e (quase) restrito a colecionadores, lojas virtuais que também passaram a investir em lançamentos exclusivos. É o caso da FAMDvD e The Originals, cujos proprietários, Fabio Martins e Fernando Alves, respectivamente, mantêm em suas áreas de trabalho um foco centrado a um tipo de clientela ciente do esforço em se manter viva essa maneira de se consumir cinema em um tipo de entretenimento para além do streaming e suas limitações de qualidade.  


Fabio Martins, proprietário da FAMDvD

"Eu pensava muito sobre essa possibilidade de trazer um lançamento em blu-ray de um filme que estava esgotado. Sobre ser ou não viável. A pergunta era: 'por que não pode ser feito? Alguém já tentou?'  Nas conversas que eu  tinha com distribuidoras e outros lojistas, eles falavam: 'olha, blu-ray acabou. Isso não dá dinheiro. Aqui no Brasil, não vingou.'  E isso me incomodava muito porque eu olhava para o (site) Mercado Livre, e pediam altos valores por filmes esgotados. A conta não fechava. Como pode um produto ser tão valorizado por alguns, e quem está vendendo diz que não vingou, que blu-ray não vende?", relembra Fabio Martins, cuja loja, FAMDvD, no ramo há 12 anos, bancou no primeiro semestre, através da Universal Pictures, uma nova tiragem do filme A Bruxa. Sucesso de crítica lançado em mídia física em 2016, o longa teve todo seu estoque vendido na ocasião e, consequentemente, unidades passaram a ser especuladas no Mercado Livre. Fabio ainda trouxe de volta, através da Sony Pictures, outro fenômeno de vendas em uma nova tiragem: O Barco, clássico filme de Wolfgang Petersen, cujas poucas unidades em blu-ray à venda no mesmo Mercado Livre chegavam a valores que ultrapassavam R$500,00. Atualmente, já está esgotado.

Fernando Alves, proprietário da The Originals

No mesmo ramo, Fernando Alves, da The Originals, loja virtual que desde os anos 2000 atua nesse mercado, também foi responsável por trazer para o Brasil filmes de apelo ao público colecionador no formato do blu-ray, cujo som e imagem digitais deixam para trás qualquer opção em streaming ou DVD. O critério de escolha do que será lançado passa por um crivo analítico de quem atua já há quase vinte anos no ramo de filmes em mídia física. "É um risco muito grande os lançamentos exclusivos que fazemos hoje. Para fazer chegar esses títulos aos colecionadores. E não podemos errar muito, porque somos empresas pequenas. Não temos essa margem para erro", comenta Fernando em relação a escolha de quais filmes traz para o acervo de lançamentos exclusivos de sua loja, lembrando que as tiragens são de mil unidades. Dentre esses acertos, Nós, filme do Jordan Peele, até então inédito em mídia física no Brasil, bem como Ex Machina, surpreendente ficção científica de 2014, compõem parte do seu variado catálogo, cujos lançamentos exclusivos acompanham de perto as demandas dos colecionadores brasileiros.

Igor Oliveira, coordenador do selo CPC Umes Filmes

NICHO DO NICHO

Mas para além do apelo da cultura pop em filmes cujo chamado "hype" já colabora bastante em estratégias de vendas e interesse do público que ainda consome DVDs e blu-rays, o CPC Umes Filmes trabalha exclusivamente com obras do cinema soviético e russo, cuja audiência focada em um filmografia fora do apelo hollywoodiano denota uma característica ainda mais marcante para esse mercado. " O CPC UMES Filmes é o nicho dentro do nicho. Mas esse mercado de nicho do colecionismo tem essas duas características. Ele é muito restrito, e quem está dentro dele, tem uma qualidade de interesse de informação muito alta", explica Igor Oliveira, coordenador da distribuidora, cujas obras em blu-ray como Stalker, Andrei Rublev Solaris (pilares de Andrei Tarkovsky), bem como Vá e Veja, obra prima de Elem Kilmov, e o principal lançamento do ano em mídia física, o box do filme Guerra e Paz, adaptação de Tolstoi dirigida por Serguei Bondarchuk, dão ao público cinéfilo um acesso de qualidade única para tão rico cinema. 

Produtos lançados pelo selo Obras Primas do Cinema

SAÍDA DAS LIVRARIAS

Com o fechamento da Livraria Saraiva, além da recuperação judicial da Cultura, distribuidoras como Obras-Primas do Cinema e Versátil passaram a investir em seus próprios sites de vendas e em uma maior proximidade com o consumidor final através de redes sociais. Valmir Fernandes, diretor do selo OP, destaca como essas mudanças nortearam o modo de vendas em 2020. "A FAMDVD começou o ano com lançamentos exclusivos em blu-ray. A Versátil anunciou vários, também. Então, resolvemos experimentar e colocamos o blu-ray  de Um Lobisomem Americano em Londres exclusivo no nosso site. Só no primeiro mês, foram 700 clientes novos cadastrados. Após alguns meses, a tiragem de 2500 unidades esgotou", comemora Valmir.

Produtos lançados pela Versátil Home Vídeo


Como novo panorama do mercado, a importância do foco na própria loja, criando uma ponte direta com o público colecionador, também é pontuada por André Melo, diretor do selo Versátil.  "Eu lembro que, em dezembro de 2019, reuni toda a equipe e apresentei os dados daquele ano. Iniciei falando: 'precisamos avaliar o que faremos para sobreviver nesse mercado.'  E os principais pontos levantados foram: 'Vamos voltar para o blu-ray. Vamos desenvolver a nossa loja,  melhorar o nosso SAC e a nossa forma de envio.' ", relembra André. Com 2020 iniciando e o anúncio de uma coleção em blu-ray dos filmes de John Carpenter, dentre diversos outros títulos que se seguiram, o período acabou, também, se demonstrando surpreendente para a Versátil.  

Observar esse ano atípico se encerrar como um símbolo da (ainda) força da mídia física, tem como principal lição a percepção de um mercado como algo feito por (e voltado para) seu público colecionador. Que se torne um aprendizado e foco constante para a perenidade.  


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 16/12/2020





 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Livro Jimmy Page no Brasil

Zeppelin Baiano

LIVRO Jimmy Page no Brasil, de Leandro Souto Maior, desmistifica, através de entrevistas com famosos e anônimos, a passagem do guitarrista do Led Zeppelin por Lençóis, Salvador e pelo sudeste

Por João Paulo Barreto

A fama é sedutora e hipnótica. Muitas vezes, nociva. Requer equilíbrio administrá-la. Há quem consegue lidar com ela por décadas. Há quem ceda aos seus encantos e riscos de sufocamento. E há aquelas pessoas que, após anos dentro daquela espiral, apenas almejam por um respiro. Em um exercício de imaginação, é curioso pensar em Jimmy Page passando por essa sensação de busca por esse respiro quando alcançou a marca dos 50 anos de idade. Crise de meia idade? Existencial? A comichão de um grande amor que lhe encantava? As possibilidade são muitas. As décadas de 1960 e 1970, quando fez parte de bandas pilares do Rock como Yardbirds e Led Zeppelin, foram intensas para Page. Junto a Eric Clapton e Jeff Beck na primeira; e a Robert Plant, John Paul Jones e John Bonham na segunda, o guitarrista ajudou a construir fundações de um estilo que moldaria a Cultura no século XX. Imaginá-lo, então, após recém completados 50 anos de idade a buscar, em 1995, por esse respiro em um local remoto como a cidade baiana de Lençóis, na Chapada de Diamantina, é algo muito compreensível.

O guitarrista inglês e a musa baiana, a cantora Margareth Menezes

Os dias de Jimmy Page no Brasil, há 25 anos, são o tema da pesquisa do jornalista e músico, Leandro Souto Maior, que lança, pela editora Garota FM Books, o livro Jimmy Page no Brasil, extensa pesquisa que refaz os passos do guitarrista britânico não somente em Lençóis, mas em Salvador, Rio e São Paulo durante aqueles dias da pré-internet e sem a fugacidade e imediatismos baratos das redes sociais. "Há mais de vinte livros escritos por jornalistas e pesquisadores gringos sobre Led Zeppelin e sobre Jimmy Page. Em nenhum deles há nada sobre essa fase. Chega nessa época, tem um pulo. Um hiato que parece que não aconteceu", explica Leandro acerca da motivação em registrar essa história em um livro bilíngue. "Eu quero que os fãs do mundo inteiro saibam o que aconteceu. Foi um período longo que ele passou aqui e que viveu coisas que não viveu, por exemplo, nos Estados Unidos ou em algum outro país", pontua o autor.

Jimmy Page e Paulo Ricardo em 1996

FONTES FAMOSAS E ANÔNIMAS

O autor em foto de Maira Coelho
Dentre os diversos entrevistados, nomes como os de Margareth Menezes, Charles Gavin, Roberto Frejat, Paulo Ricardo, Daniela Mercury, Pepeu Gomes, e diversas outras pessoas que, famosas ou não, estiveram com o mestre da guitarra naquele seu período nessa terra brasilis. "Em Lençóis, tinha muita gente que sequer sabia quem era Jimmy Page. Só veio a saber depois, quando a história começou a circular. Souberam que ele era alguém muito famoso. Mas, em um primeiro momento, quem o encontrou por lá, era o cara do açougue ou o padeiro, sabe? ", conta Leandro. "Jimmy Lama", apelido irônico como ficou conhecido no circulo de músicos e admiradores que frequentavam a cidade à época, aproveitou seu anonimato até quando pôde. " Quando o Jimmy foi parar em Lençóis, tem histórias curiosas. Uma delas diz que ele adorava acordar cedinho, nas primeiras horas do dia, e ir para a padaria. Lá, ele comprava o pão da primeira fornada que saia, passava manteiga, e sentava ali mesmo, na calçada em frente à padaria, para comer. E isso era todo dia! Foram vários relatos sobre isso que eu tive. Várias pessoas testemunharam isso", relata Leandro. "A galera o chamava de 'Jimmy Lama' porque ele andava todo largado, de chinelo, de bermuda rasgada, totalmente oposto da visão de um rock star que a gente costuma ver. E até das próprias fotos famosas que a gente vê do Jimmy. Ele sempre muito bem vestido, um verdadeiro lorde inglês", explica.


HUMILDADE

Em Lençóis, Jimmy Page financiou instituições de amparo a jovens em situação de risco, bem como, no Rio de Janeiro, ajudou a fundar a Casa Jimmy, local voltado para abrigar jovens sem lar. Na capital fluminense, inclusive, Page recebeu o título de Cidadão Honorário. Sua passagem pelo Brasil destoa da imagem do astro do rock, do glamour, da soberba tão característica em diversas histórias envolvendo as bandas setentistas em suas lendárias "bad trips".

"
Em todos os relatos, não teve um que não atestasse essa impressão dele como um cara aberto, acessível. Que gostava de conversar, especialmente se o assunto era música. Um cara que se deslumbrava com coisas novas. Por exemplo, há relatos de quando ele viu um berimbau pela primeira vez. Dá pra imaginar um cara que tirou cada efeito mais louco que o outro da guitarra, chegar e dar de cara com um instrumento não eletrificado, de uma corda só, e que faz aquele som hipnótico?", exemplifica Leandro ao citar o interesse de Page sobre o berimbau. "Há entrevistas do Jimmy sobre a época dele na Bahia em que ele fala do seu fascínio pela capoeira. E não só com a dança ou com o visual, mas também com a história. Às vezes eu acho que ele sabe mais sobre a capoeira do que muito brasileiro. Então, acho que ele é um cara muito interessado e humilde, também. Todos os relatos de todo mundo que esteve com o Jimmy usam essa palavra: humilde. Ele não tinha soberba. Ele não se colocava acima, apesar de toda a história, toda influência, todo legado para  a cultura mundial que ele já tinha deixado ali naquela altura da vida", finaliza Leandro.

Oooh, it makes me wonder... 

Jimmy Page no Brasil
280 páginas
                Financiamento Coletivo:
catarse.me/jimmypagenobrasil

*Matéria originalmente publicada no Jornal A Tarde, dia 24/11/2020




sábado, 21 de novembro de 2020

Marighella

Marighella Vive!



Em estreia especial pelo Dia Consciência Negra, Marighella, filme de Wagner Moura, revive a brutalidade de um país tirano no contar dos últimos anos de vida do deputado e revolucionário herói

Por João Paulo Barreto

A importância e impacto existentes no lançamento  de Marighella, longa metragem dirigido por Wagner Moura, justamente na semana do Dia da Consciência Negra traz um peso e ainda maior relevância histórica para o trabalho. E o lançamento acontece em Salvador, a cidade mais negra da América Latina, terra natal do próprio deputado e escritor Carlos Marighella. Salvador recebeu a primeira sessão em circuito comercial de um filme cuja urgência se faz necessária pelo tenebroso momento de negacionismo proposital e manipulador da ditadura e do golpe militar de 1964, bem como diante de uma tentativa oportunista e canalha de se reescrever os fatos históricos, banalizando todos os crimes e monstruosidades cometidas pelos militares no período.

Moura, em sua estreia como diretor de longas metragens, adapta a densa biografia escrita por Mário Magalhães em uma obra que coloca sua audiência quase que fisicamente dentro do mesmo turbilhão que os últimos anos de vida de Marighella representaram.  Junto ao seu diretor de Fotografia, Adrian Teijido, no processo de dramatização fílmica da história do autor de Minimanual do Guerrilheiro Urbano, de Chamamento ao Povo Brasileiro (organizado após seu assassinato) e fundador da Ação Libertadora Nacional, grupo revolucionário que lutou contra a homicida ditadura no Brasil, Moura equilibra cenas frenéticas em planos sequência que nos colocam dentro da ação com momentos tenros, em uma simbólica ideia de calmaria que precede a tempestade na vida de seu protagonista.  Na calmaria, vemos Marighella (Seu Jorge, em um peso expressivo para o papel) brincar com seu filho no mar do Rio de Janeiro, e equilibrá-lo na suavidade da superfície da água. Lá fora, tanques de guerra esmagam tanto asfalto quanto a liberdade. Moura tem plena consciência do que monta naqueles paralelos e o que pretende nos fazer refletir com eles.

    Marighella (Seu Jorge) e seu filho: a tempestade se aproxima

2020 NEGACIONISTA

"Hoje há gente discutindo se a ditadura foi mesmo ruim, se a tortura é aceitável e se a terra é mesmo redonda. Isso era impensável há cinco ou seis anos. Aprendi que não se pode menosprezar a capacidade de piadas e absurdos se alastrarem até ganharem status de verdades. Mentira e desinformação precisam ser levadas a sério e combatidas pedagogicamente, não se pode mais rir de sandices como a mamadeira de piroca", alerta Wagner em relação ao estado de mentiras, negacionismo e manipulação midiática que vivemos em 2020, algo que tem ecos desde o golpe parlamentar de 2016 e a eleição de 2018. "É preciso levar a sério e reagir imediatamente. O manejo escroto das redes sociais polarizou o mundo e relativizou a verdade. E, claro, a aversão de tipos como Trump e Bolsonaro à cultura, à ciência, ao pensamento crítico, à regulação das redes e à liberdade de imprensa favorecem um projeto de dominação que se beneficia da ignorância", complementa.

Sobre a dificuldade de se adaptar uma obra tão densa quanto o livro de Mário Magalhães, Moura explica que, para ele, o roteiro é a parte mais difícil do cinema. "Nós estávamos lidando com a história de vida de muitas pessoas e com um período conturbado do país. Eu e Felipe (Braga, co-roteirista) trabalhamos juntos em Marighella desde 2013. Para nós, desde o começo era claro que tínhamos que ter um recorte muito específico", salienta o cineasta. Inserindo elipses exatas no avançar da luta e do tempo restante que resta a Marighella, tempo este conscientemente contado pelo revolucionário naquele recorte dos anos de chumbo e sangue,  o roteiro de Moura e Braga, juntamente com a montagem  de Lucas Gonzaga, demonstra seu foco como o de um filme que, apesar dos seus intensos 155 minutos, tem uma urgência explosiva no transmitir daquela trajetória para o público. "Não gosto de ver filmes biográficos que em apenas duas horas tentam dar conta da vida inteira de alguém. Melhor ler um livro ou ver um documentário. Nós optamos pelos cinco últimos anos da vida de Marighella. E muitas vezes pensei se não deveria ter feito um filme só sobre o último dia de sua vida", relembra Wagner.  

O diretor e seu protagonista: sintonia exata em filme essencial

CINEMA CONTRA REPRESSÃO

De um assalto a um trem para o roubo de armamento militar que abre seus minutos iniciais, com o plano sequência citado a nos pegar e colocar dentro daquela mesma tensão encontrada pelo protagonista e seus camaradas, ao momento de anos antes, quando o corte para o mar da baía de Guanabara denota exatamente a fugaz calmaria antes do caos e da perda, a estrutura proposta por Wagner Moura em sua câmera na mão, muitas vezes trêmula, transmite de maneira precisa esse esgotamento físico e temporal. A queda pode até ser inevitável diante do poder do inimigo, mas também será sentida pelo carrasco. "Não. VOCÊS perderam", replica Branco, personagem de Luiz Carlos Vasconcelos, pendurado em um pau-de -arara, enquanto um assassino militar o tortura. A simbologia desse momento é exata.

Na truculência esbanjada e regada a mortes e sangue, a representação governamental militar encontra em Lúcio (delegado vivido por Bruno Gagliasso em uma atuação corajosa e sem vaidades) suas mais profundas camadas de desonestidade e virulência. Desde a deturpação de fatos, passando pela manipulação de cenas de crime, até a aspereza e fel engolidos a seco quando tem que se curvar diante de agentes estadunidenses que vêm ao Brasil no rastro do seu suporte ao golpe militar, Lúcio é a representação do quão vil é o estado brasileiro dentro daquela política de violência, censura e terror. O mesmo terror que utiliza como pretexto para acusar de "terroristas" aqueles que se opõem à sua corrupção, algo que vemos se repetir em tentativas de um ministro da Justiça corrupto de um governo alçado em uma plataforma de mentiras.  

Gagliasso se despe de vaidade para compor o monstro Lúcio: papel corajoso

Sendo sua primeira experiência na direção de um longa metragem, Wagner Moura explica que o seu processo por trás da câmera tem similaridades com sua experiência na atuação. "Eu acho que dirijo como atuo. Tento estar muito presente e contagiar o ambiente com energia criativa. Mas dirigir é muito mais fácil que atuar. Quando eu dirijo, sinto muita empatia pelos atores, porque eu sei o quanto aquilo pode ser doloroso", evidencia o ator e diretor. Ainda sobre esse processo, Marighella referencia um tipo de direção bastante próxima aos seus atores, com uma câmera a captar seus movimentos constantes, algo que remete ao cinema feito pelos irmãos Dardenne, diretores preferidos de Wagner.  "Os Dardenne são meus cineastas favoritos. Seus filmes são muito políticos, mas extremamente humanos, geralmente sobre jovens de classe social baixa. Eu acho que a crueza com que eles filmam encontra eco na nossa tradição de cinema político, do Cinema Novo até Tropa de Elite. E todos bebem no neo-realismo italiano, que é meu cinema favorito", declara o diretor.

Da influência de um cinema que historicamente surgiu como uma luta contra o fascismo, Marighella e seu diretor se estabelecem como símbolos dessa mesma luta.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 22/11/2020


 

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Sem Descanso

 Força Assassina


ESTREIA
Sem Descanso, documentário de Bernard Attal que aborda a violência do Estado no notório Caso Geovane, chega aos cinemas em um 2020 marcado pela truculência da polícia

Por João Paulo Barreto

Em 02 de agosto de 2014, Geovane Mascarenhas de Santana, de 22 anos, foi abordado por uma viatura policial enquanto pilotava sua moto no bairro da Calçada. Rendido, mão na cabeça, de costas para um deles, já foi covardemente agredido fisicamente pelo primeiro policial que se aproximou. Colocado em seguida de joelhos, foi revistado e teve seus documentos verificados. Após longos minutos, foi colocado na viatura, enquanto um dos oficiais pilotava sua moto. Toda a ação à luz do dia, em um dos locais de maior movimento de Salvador, passou como rotineira pelos transeuntes e motoristas. A certeza da impunidade diante de mais um ato de truculência e abuso de poder era certa para aqueles homens fardados diante de mais um jovem negro. Porém, uma câmera estava lá para registrar a última vez que Geovane foi visto com vida. 

Vinte e dois dias depois, o corpo do jovem seria sepultado na cidade de Serra Preta, interior do estado. O intervalo de tempo entre a gravação daquele vídeo no qual Geovane encontrara seus juízes e carrascos, junto a uma reflexão urgente e um anseio de mudança quanto a barbárie da violência policial, é o que propõe apresentar Sem Descanso, documentário do cineasta Bernard Attal, que narra a busca angustiante de Jurandy, pai de Geovane, pelo seu filho durante as duas semanas que se seguiram à abordagem no bairro da Calçada. Jurandy passou por delegacias, batalhões, hospitais, instituto médico legal, e, como o próprio nome do filme diz, não descansou até ter notícias de seu filho. A confirmação do assassinato surgiu após partes do corpo decapitado de Geovane terem sido encontradas em dois pontos distintos do subúrbio de Salvador, em uma tentativa covarde e monstruosa de acobertar as atrocidades cometidas dentro do batalhão da polícia, um órgão do Estado que deveria proteger sua população, mas a assassina abusando do poder que esse mesmo omisso Estado lhe concede.

Geovane é abordado, agredido e levado pela polícia

SEM DIÁLOGO

"Várias vezes tentamos conversar com o governo, com os órgãos públicos e com a corregedoria da polícia. Chegamos até a marcar encontros,mas eles desistiam de última hora ou negavam esse encontro. Realmente, é uma pena porque eu não queria fazer um filme contra a polícia", explica Bernard Attal acerca das motivações de investigar para o documentário o caso Geovane. Porém, o cineasta deixa claro que a busca pelo diálogo foi primordial na construção de seu filme. É o diálogo que impede a barbárie. É o diálogo que fortalece democracias e impede a ascensão de uma violência fascista oriunda daqueles que deveriam proteger, mas ameaçam a sociedade. "A violência policial é uma tragédia da sociedade toda. A sociedade toda é responsável. Tanto a Polícia, quanto o Estado, quanto a Justiça, quanto nós, como cidadãos, somos responsáveis. Eu não queria apontar especialmente a polícia nesse caso. Eu queria conversar com as autoridades públicas para entender se eles iam tomar providências para reduzir esses casos. E eles se negaram completamente ao diálogo. Isso foi realmente uma pena porque eu achei que seria uma dimensão do filme que eu teria gostado de ter, mas, no final, não temos. A postura desse governo é de simplesmente não tratar o problema da violência policial", afirma Bernard.

Jurandy no local onde seu filho foi levado: mergulho na dor 

DIREITO DE ENTERRAR OS SEUS

Com seu assassinato, Geovane deixou para trás mulher e filha, pessoas que foram privadas do convívio com ele. Deixou para trás avós e amigos. Deixou para trás seu pai, Jurandy, que não  descansou até o momento em que pôde perceber, vendo o caixão do seu filho, a dimensão da tragédia que sua vida teve. Esse descanso, aliás, nunca virá. Como Antígona, da obra de Sófocles, Jurandy exigiu o direito de enterrar seus mortos.  "É um tema muito grave quando se trata da violência policial. A polícia faz de tudo para que  não sejam descobertos os corpos. Porque, se o corpo não for descoberto, não tem caso na justiça. E isso vem já da ditadura militar e de antes. E por isso que se pode negar crimes políticos e crimes não políticos. Sem corpo, não há caso", pontua Bernard, e salienta a referência que seu filme faz a Antígona e ao risco sofrido por Jurandy.  "Esse é o nível de barbaridade. Não se sabe em que circunstâncias essas pessoas foram levadas. Isso é totalmente coerente com a história de Antígona. Mas Antígona tem uma outra dimensão, também, pois ela desafia as autoridades. Ela aceita o risco pelo direito de enterrar seu irmão. No caso de Jurandy, foi exatamente isso. Ele sabia que estava correndo um risco grande na busca do corpo do filho", compara Bernard.

Iniciada a produção em 2015 e lançado em festivais em 2018, o filme estreia comercialmente em um 2020 marcado por mais exemplos de violência policial. E a indignação só aumenta. "A dimensão de indignação não foi diminuindo ao longo do tempo. Eu não costumo assistir aos meus filmes depois. Eu tento me distanciar do filme, mas, cada vez que eu escuto mais uma história de uma pessoa agredida pela polícia, minha indignação só faz aumentar. Realmente, esse filme nasceu dessa indignação", finaliza o cineasta.

*Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, dia 06/11/2020


quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Livro - Novas Fronteiras do Documentário

Decifrar o
 Real

LIVRO Em Novas Fronteiras do Documentário - Entre a Factualidade e a Ficção, autor Piero Sbragia traça perspectivas de análise do cinema documental e entrevista diretores baianos

Por João Paulo Barreto

A foto que ilustra essa capa do Caderno 2 de A Tarde, na qual o escritor Piero Sbragia conversa com o documentarista Eduardo Coutinho, foi tirada em outubro de 2013 durante uma tarde de autógrafos de um livro que trazia uma coletânea de textos do cineasta. A foto, clicada pelo amigo de Piero, Pedro Moreira, traz um Eduardo Coutinho um tanto desfocado. No prefácio do livro Novas Fronteiras do Documentário - Entre a Factualidade e a Ficcionalidade, que Piero Sbragia lança em 2020, o autor observa que a falta de foco daquele registro é "conotativa e denotativa", pois revela "o nervosismo dos jovens diante do mestre". Na conversa com Piero  para essa matéria, relembrei uma comparação semelhante com a capa do Blonde on Blone, na qual o escritor (cujo nome não me recordo) fala que a imagem um tanto borrada de Bob Dylan refletia a velocidade na qual ele estava naquele distante 1966. Digo a Piero que enxerguei na imagem borrada de Eduardo Coutinho a mesma velocidade e visão à frente do seu próprio tempo, que o colocava em um patamar diferenciado de entendimento da nossa realidade.

Coutinho e Piero Sbragia em momento definidor para o autor

No seu livro, Piero Sbragia analisa diversos aspectos da construção do documentário, focando não somente em alguns desses aspectos atrelados a Coutinho e sua atenção a um cinema documental visando a audição de suas personagens, mas, também, a Cao Guimarães, diretor cujos filmes seguem por um norte de introspecção e observação.  Piero observa que "é interessante essa conexão do Cao com o Coutinho porque, efetivamente, eles fazem filmes muito diferentes. O Coutinho, para mim, sempre foi um cara à frente do seu tempo. Ele antecipava tendências. Era um cara da vanguarda, no sentido da origem da palavra, do francês avant-garde. A pessoa que ia na frente para levar bala. Levava o tiro primeiro, mas conseguia chegar primeiro aos lugares. Eu acho que o Coutinho é esse cara. O Cao eu vejo mais como alguém atento ao zeitgeist, ao tempo. O Cao é, para mim, o reflexo do momento, da nossa contemporaneidade. E eu coloco os dois no mesmo patamar", pontua o escritor ao comparar Coutinho a Cao e salientar a ideia de observar a velocidade do primeiro, cuja inesperada metáfora que encontramos na foto do seu encontro com o documentarista reverbera nesse texto e em quase sete anos após sua morte brutal.

VOZES BAIANAS

Em Novas Fronteiras do Documentário - Entre a Factualidade e a Ficcionalidade, Sbragia, além de aprofundar o estudo do cinema de documentário, algo que surgiu a partir da construção de sua dissertação de mestrado, traz na visão de dez documentaristas de diferentes gerações e abordagens de cinema, um maneira de traduzir para a pessoa de posse do seu livro uma análise da realidade por olhares atentos. Assim, através de nomes como os de Amanda Kamanchek, Cristiano Burlan, Eduardo Escorel, Eliza Capai, Geraldo Sarno, Juca Badaró, Maria Augusta Ramos, Orlando Senna, Paula Trabulsi e Susanna Lira, o autor cria um panorama amplo desse cinema que registra para sua audiência nuances profundas do real.

O veterano Geraldo Sarno é um dos entrevistados no livro

Dentre os dez nomes de cineastas entrevistados por Piero para seu livro, veteranos da Bahia como Geraldo Sarno e Orlando Senna, bem como Juca Badaró, diretor do premiado As Cores da Serpente, e que representa o estado em uma nova geração de documentaristas, uma abordagem de diferentes olhares dentro da experiência de criação do cinema documental é feita. "Eu queria ter pessoas como o Geraldo Sarno, como o Orlando Senna, e como o Eduardo Escorel que, juntos, têm 150 anos de cinema. Eu queria ter pessoas como o Juca Badaró. como a Amanda Kamanchek , que só têm um longa metragem no currículo, mas que conseguiram realizar nesses longas obras que, de certa maneira, foram revolucionárias para mim", explica Piero e salienta a presença de Sarno, Senna e Badaró de forma a trazer o foco de sua abordagem do cinema de documentário brasileiro para fora do eixo Rio-SP. "Eu tentei fugir um pouco dessa análise limitada de que o Cinema no Brasil parece que só foi feito no Rio ou em São Paulo. Eu acho muito importante e saudável em qualquer discussão de cinema que a gente tenha, seja em um livro, um debate ou em uma live, pensarmos o cinema como algo produzido no Brasil inteiro. Temos muitos jovens talentos indígenas de Manaus, de Roraima, do Acre, que estão produzindo filmes, curtas, longas", exemplifica o escritor. 


Um dos entrevistados, Orlando Senna em foto clássica de sua labuta


"CUIDADO COM OS MITOS"

Retornando ao encontro do autor com Eduardo Coutinho, em 2013, Piero salienta o fato de que a assinatura do cineasta no livro lançado à época continha um pseudônimo (Stephen Rose). "O maior documentarista brasileiro, em um autografo num livro, adota um pseudônimo ficcional. O que isso significa? O que isso representa? A leitura que eu faço disso é como se ele estivesse falando para mim: 'Olha, não me mitifique. Não crie um mito sobre a minha pessoa'", observa. No ato de se mitificar pessoas, o risco dessa importância ser dada a oportunistas mal intencionados reverbera para o presente caótico. "Quando o Coutinho assina como Stephen Rose, em outras palavras, ele está falando assim: 'cuidado com os mitos'. E quando eu falo "cuidado com os mitos", fazendo essa ponte de 2013 para 2020, é claro que eu também estou falando de Jair Bolsonaro. É claro que eu também estou falando de várias pessoas e de vários políticos que se elegem na sombra de um mito que é construído sobre eles", sinaliza.

No estudo do cinema de documentário apresentado por Piero Sbragia em seu livro, a análise da obra de Cao Guimarães, além da visita a alguns filmes de Eduardo Coutinho, juntamente aos aspectos teorizados por Bill Nichols em relação aos modos construção dentro do documentário, se destaca a necessidade da compreensão atenta do diálogo, da escuta, e do olhar urgente à nossa realidade. "Vivemos hoje em uma sociedade que berra. As pessoas berram nas redes, gritam nas janelas, batem panelas, fazem buzinaço. Todo mundo grita e o que de fato está acontecendo? Nada! Que tipo de mudança essa gritaria toda traz para o Brasil? Nenhuma. Eu acho que gritar não é o caminho. Talvez o caminho seja ouvir. Que é o que o Coutinho fez nos filmes dele. O Coutinho sempre foi um bom ouvinte. Eu sinto essa necessidade da gente ouvir mais nesse Brasil em que as pessoas gritam muito", finaliza.

Preciso!

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 04/11/2020




quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Tenet

Tenet (EUA,UK, 2020) Direção: Christopher Nolan. Com John David Washington, Robert Pattinson, Kenneth Branagh.


Por João Paulo Barreto

Notório por desafiar sua audiência no desvendar da construção fílmica, o cineasta Christopher Nolan se propõe a transformar seus filmes em uma experiência de decodificação. Se desde sua estreia, com Following (1999), a premissa de buscar por inspiração através do contato com estranhos já apresentava nuances que reverberariam nos ainda mais instigantes Memento (2000), com sua montagem reversa injustamente chamada de "perfume visual", e com o diretor alcançando seu ápice nesse desafiar mental com Inception (2010) e Interstellar (2014), Tenet (2020) apresenta ao espectador um nível maior de comprometimento.

Na história de um agente especial vivido por John David Washington,  chamado apenas de "protagonista" (em mais uma prova da artimanha cinematográfica proposta pelo cineasta britânico), a premissa não é a clichê ideia de se abordar viagens no tempo, mas, sim, inversões deste mesmo tempo e de seus objetos em cena, sejam eles pessoas ou simplesmente materiais. Com isso, Nolan se vê em uma condição de apresentar não somente uma história de espionagem, mas, sim, de quebrar barreiras narrativas para além do que foi colocado em seu roteiro. Logo, a premissa do salvamento de uma mãe e seu filho da violência de um marido bilionário, psicopata e abusivo (vivido com gosto por Kenneth Branagh), permite a camadas bem mais densas dentro de uma proposta que vai além de um simples roteiro de ação e perseguições.

John David Washington e Robert Pattinson

Tais camadas têm, claro, a recompensa visual espetacular já esperada de uma produção desse porte, principalmente com a assinatura do homem que revolucionou a franquia do Batman. Porém a ideia de se criar dentro de um filme linear aspectos de não linearidade (ou uma linearidade inversa) acompanhando  uma mesma construção de montagem é algo que vai além do que foi proposto em 2010, com suas realidades embutidas dentro de uma das outras em A Origem, ou na apenas quebra de cronologia de Memento. Na obra estrelada por Leonardo DiCaprio, suas várias narrativas separadas de algum modo por ambientações distintas e por "tempos" variados, ainda dava a sua audiência um maneira de mergulhar na sua proposta de forma gradativa. Aqui, bom, aqui Nolan vai além.

Sem a intenção de revelar muito da história ao leitor, me proponho nesse texto  a trazer uma análise não de sua trama em si, o que envolveria a necessidade de descrever cenas ou argumentos de Tenet. Porém, sugiro a quem estiver lendo antes de ver o filme que se permita observar a ideia de construção (olha a palavra aqui de novo) de Cinema na obra. Nolan inverte (sim, da sua premissa vem o uso desse verbo aqui) imagens, sons, trajetórias de elementos físicos, de pessoas, tudo dentro de um mesmo enquadramento ou movimento de câmera. Ao se propor em colocar diversas estruturas do fazer cinema dentro de uma mesma suposta linearidade, invertê-las e "brincar" com essas possibilidades, o diretor e roteirista alcança seu intento de desafio sem se perder dentro daquele labirinto. Labirinto, aliás, que se aplica de maneira ainda mais adequada do que em sua obra de 2010.

Washington e Nolan

Tenet, para algo a mais do que sua espetacular sequência envolvendo barras de ouro e um avião gigantesco (algo que, em suas diversas perspectivas, a torna ainda mais precisa) traz em sua essência a ideia do espectador se propor a aceitar um desafio de sair da caixinha da linearidade do cinema com começo, meio e fim sem necessariamente se ater apenas a uma "montagem perfume", como, friso novamente, injustamente são chamados Memento e Inception. Ao levar diversos de seus elementos (pessoas e objetos) a se reencontrarem dentro de um mesmo tempo que, visualmente, parece linear ("o que aconteceu, aconteceu", repete um de seus personagens), percebemos seus diferentes níveis, Nolan propõe, de fato, um desafio ao espectador dentro de sua história. Mas é o que está para além dela que se destaca.

É a ideia de ousar dentro das ferramentas que o cinema pode oferecer.

Ainda mais curioso para saber qual outra barreira essa cara poderá ultrapassar nessa labuta.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A Verdade da Mentira

Política Suja



STREAMING A Verdade da Mentira, documentário que analisa o modo como as notícias falsas (fake news) são propagadas nas redes sociais, chega ao público em oportuno momento eleitoral de 2020

Por João Paulo Barreto

Amanhã completam-se dois anos do segundo turno da eleição presidencial de 2018. Pleito que, hoje comprovadamente, foi marcado por manipulações ilegais da mídia no intuito de alçar ao palácio do Planalto a presente gestão executiva do país. Para citar algumas, o (no momento suspenso ) julgamento da cassação da chapa do atual presidente da República pelo TSE por conta da acusação da invasão e hackeamento, por seus simpatizantes, da página do Facebook "Mulheres Unidas Contra Bolsonaro", que teve seu nome e postagens modificados para parecerem apoiar o truculento candidato de extrema-direita. Logo em seguida, convenientemente, o próprio candidato compartilhou em suas redes sociais um agradecimento ao tal "apoio". A página continha mais de dois milhões de seguidores e sua alteração manipulada foi decisiva na votação. Além disso, nas semanas que antecederam a votação, informações privilegiadas oriundas de um delegado da PF, simpatizante à eleição do atual divulgador de cloroquina, informou à família Bolsonaro acerca da sigilosa investigação que ligava-os ao esquema das rachadinhas, e que a mesma estava para ser deflagrada. Propositalmente, porém, isso só veio a ocorrer após o segundo turno acontecer e o candidato ser eleito com 55,13% dos votos válidos.

Os dois exemplos citados no começo deste texto crítico do documentário A Verdade da Mentira, dirigido por Maria Carolina Telles, foram trazidos aqui com o intuito de gerar uma reflexão acerca do quão impactante e importante é para o espectador/leitor/eleitor ter ciência do como sua presença em mídias sociais é algo a ser visto com sagacidade. Além disso, ter a noção exata de como seus meios pessoais de busca por informações e critérios para analisar notícias vão influenciá-lo(a) nas suas escolhas políticas e, por consequência, no como tais escolhas influenciarão toda uma sociedade por quatro anos. O modo de manipulação desonesta de uma página com milhões de seguidores, bem como o vazamento de uma investigação sigilosa por alguém cuja imprescindível obrigação com a Justiça ficou abaixo dos seus conchavos com uma família sob diversas investigações criminais, conseguiram delinear os nortes de um país. Exatos dois anos depois, nos afogamos em um período no qual a desinformação é regra para o chefe do executivo e as guerras ideológicas sobrepõem prioridades de salvar as vidas de 155 mil vítimas de um vírus cujo impedimento de propagação fica em segundo plano perante os interesses de poucos.

Para a primeira pergunta, temos a resposta exata

ROBÔS DE PROPAGAÇÃO

O documentário A Verdade da Mentira volta ao período de dois anos atrás para falar sobre como tudo se prenunciava e em como parecia, ainda, não ser possível evitar o modo como as eleições poderiam ser manipuladas através das fake news. O filme inicia, a partir da pesquisa da jornalista Petria Chaves, com uma entrevista de fonte sigilosa falando sobre como os robôs virtuais (perfis gerados por ele para desencadear mensagens em massa) passaram a funcionar como meio de propagação de informações nas redes. Corta para o jornalista Pedro Doria, editor do Canal Meio,  salientando o fato de que a mentira sempre existiu no jogo eleitoral, mas que "quando você joga meios digitais, a velocidade e alcance da mentira é muito maior. (...) Da maneira como existe hoje, (essa propagação) jamais existiu. Isso é novo", explana.  Corta novamente para a fala da ministra do TSE, Rosa Weber, que, em uma afirmação perigosa e preguiçosa, afirma que a descoberta de um modo para impedir as fake news seria "um milagre". Uma frase que, captada em um aparentemente longínquo 2018, soa como um alerta para a conivência de altos escalões governamentais diante do que lhes parece conveniente no atual estado das coisas.

Voltamos ao caótico 2020, e vemos redes sociais como Twitter, Facebook e Instagram criando filtros de checagem de fatos e marcando as publicações como notícias falsas quando as mesmas trazem informações não confirmadas. Em resumo, tal "milagre" requeria "apenas" fiscalização da sociedade e do estado, bem como investimento e responsabilidade das empresas por trás das redes sociais. Os dois momentos citados tornam-se simbólicos do documentário. O primeiro em sua abertura, e o segundo em seus momentos finais. No ínterim entre os dois pontos, A Verdade da Mentira vai construindo para sua audiência uma análise de como as redes sociais se tornaram o "quinto elemento na estrutura política do Brasil e do mundo", trazendo, através de depoimentos de especialistas, comprovações da forma como a desinformação direcionada ganhou espaço dentro das mesmas redes.

Pedro Doria (Canal Meio): alerta sobre a perda da democracia

DIDATISMO BENÉFICO

O modo didático como o documentário traz seus fatos contribui de maneira positiva para que a reflexão acerca de um tema tão urgente chegue de forma mais orgânica ao seu público. Por exemplo,  ao visitar uma agência de monitoramento do alcance de postagens falsas, a Sala de Democracia Digital, parte do departamento de pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, a jornalista Petria Chaves ouve o coordenador Amaro Grassi explicar que a agência não investiga a notícia falsa em si, mas, sim, o seu alcance feitos por robôs dentro das redes sociais. Provando o necessário didatismo do doc, um gráfico ilustrativo que pode soar redundante ao entendimento, mas que é importante para tornar claro ao público como funciona o processo, é exibido. Em seguida,  Chaves visita a agência de checagem de fatos Lupa, na qual conversa com a jornalista Cristina Tardáguila, sua fundadora. Na entrevista, Tardáguila apresenta uma análise de fotografias falsas compartilhadas por sites tanto de tendência de esquerda quanto de direita, nas quais os fatos são distorcidos. As duas fotos, até o momento em que a agência de checagem as comprovou publicamente como falsas, haviam sido compartilhadas milhares de vezes (e permaneceram no ar mesmo após a checagem) contribuindo para acirrar teorias conspiratórias inúteis e oportunistas, bem como a violência dos diálogos nas redes. 

Petria Chaves entrevista Cristina Tardáguila

"Uma das premissas da democracia é a população estar bem informada. (...) Se a sua única fonte de informação é o próprio governo, você perdeu a democracia.", alerta Pedro Doria, do Canal Meio. A frase é dita em um contexto atrelado ao mesmo cuidado frisado aqui anteriormente: o de buscar fontes concretas do Jornalismo honesto em suas maneiras de se informar. Em um governo atual "capitaneado" por um projeto de ditador genocida que aposta suas fichas na desinformação das redes sociais, na busca pela difamação dos meios de imprensa que não lhe agradem, e que atiça seguidores contra tais meios, bem como sentencia-os a "calar a boca" e ameaça-lhes "encher a boca de porrada" quando uma pergunta lhe é feita, bom, temos o resultado claro de como a manipulação midiática consegue eleger canalhas.

A Verdade da Mentira
Assista no Net Now, Looke e Vivo Play


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 27/10/2020





sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Glen Keane

Ao Mestre 

com Carinho


NETFLIX Glen Keane, mestre lendário do cinema de animação, fala sobre A Caminho da Lua, filme realizado durante a quarentena, bem como sua trajetória nos desafios enfrentados ao deixar a Disney para trás

Por João Paulo Barreto

Glen Keane é dono de uma estrada impressionante dentro do cinema de animação. Presente como animador em obras marcantes dos estúdios Disney como Bernardo e Bianca, A Pequena Sereia, A Bela e a Fera, Aladdin, Pocahontas, Tarzan, entre outros, Keane construiu uma reputação de respeito dentro do gigantesco (e, agora, nocivo e monopolizador) castelo do Mickey. Porém, após décadas dentro desse mesmo castelo, a criatividade do ganhador do Oscar pelo curta Dear Basketball,  estava sendo aprisionada.  "Eu não pensava que a vida aconteceria assim. Mas houve um momento  na Disney em que eu percebi que precisava estar fora daquela zona de conforto. E lá havia se tornado muito confortável para mim. Como artista, eu adorava estar lá. Mas, eu sentia que havia algo a mais que eu não saberia como fazer se estivesse na Disney", explica o cineasta em entrevista coletiva através do Zoom.

Assim, Glen, há oito anos, após uma sólida carreira de décadas construída na Disney, resolveu se aventurar fora dessa zona de conforto. O resultado não poderia ter sido melhor.  "Lembro da minha esposa perguntando: 'Se você sair da Disney, para onde você vai? O que você vai fazer?' Eu disse: 'Eu não sei. Google?' Ela disse: 'Google? Eles não produzem animação.'  Ao que eu repliquei: 'Eu sei, mas não seria maravilhoso levar o que eu sei, o que eu aprendi, e aplicar a lugares que são inteiramente novos na animação?' E essa acabou sendo a primeira coisa que aconteceu quando recebi uma ligação do Google depois que sai da Disney", contextualiza o cineasta. Assim, Glen dirigiu o curta Duet, uma bela experiência técnica realizada em 360º de realidade virtual acerca do crescer em sonhos e alcances pessoais. Em seguida, uma parceria com o Ballet de Paris, através do Garnier Opera House, trouxe à vida Nephtali, curta que mistura live action com animação ao abordar com singeleza a criação da arte da dança através de uma bailarina. No ano seguinte, um telefonema do saudoso Kobe Bryant deu um novo norte à carreira de Mr. Keane.

Kobe e Glen durante a cerimônia do Oscar 2017

OSCAR  E SUPERAÇÃO

"'Kobe, você sabe que tens o pior jogador de basquete na Terra fazendo essa animação para você?' E ele disse que estava tudo bem, porque eu iria aprender tudo através dele", relembra Glen ao pensar no começo da relação frutífera que teria com a lenda do basquete, Kobe Bryant. A amizade gerou o belo relato Dear Basketball, uma carta de despedida do jogador ao esporte que lhe dera uma carreira. Desenhado a mão, o curta metragem de 2017 acabou, infelizmente, ganhando uma face de epitáfio para o atleta, que faleceu, junto a sua filha, em janeiro desse ano em um desastre de helicóptero. "Ele era meu amigo. Aquela foi uma perda imensurável", lamenta Glen Keane. A parceria e amizade gerou o primeiro Oscar ao cineasta e ao próprio jogador, que assinou o roteiro do curta.

O passo seguinte seria, claro, a direção de um longa metragem.  Com a Netflix começando a desenvolver um braço na produção de animações, o projeto A Caminho da Lua, uma aventura musical infantil que aborda a perda e a superação de uma garotinha chinesa cuja mãe morre de câncer, se apresentou como o maior desafio para a profícua carreira de Keane. O roteiro foi escrito por Audrey Wells (de O Sol sob Toscana e Duas Vidas, com Bruce Willis) que, infelizmente, não pôde ver o projeto pronto, pois veio a falecer em decorrência, também, de um câncer. Com um foco na história de Fei Fei, a jovem que, buscando superar a orfandade, constrói um foguete para a lua onde vive Chang-o, lendária personagem do folclore chinês, cujas histórias ouvia a mãe contar, A Caminho da Lua se tornou um legado de Audrey Wells em relação à sua própria filha. Glen explica: "Essa história é algo muito pessoal para Audrey Wells, que escreveu o filme, mas não pôde estar aqui para vê-lo pronto. Para nós, dar algo à sua filha não era uma meta teórica, mas, sim, real. Nós colocamos essa meta como algo vindo do coração. Nós priorizamos isso", pontua.

Glen Keane e a arte de A Caminho da Lua

O filme teve sua produção interrompida em março, quando, subitamente, a sede da Netflix foi fechada e todos tiveram que deixar o local por conta da pandemia. "Tínhamos importantes deadlines todas as sextas. Em uma quinta-feira, às 11h da manhã, minha produtora chegou e disse que a Netflix estava fechando o prédio e que nós tínhamos que ir embora naquele momento. Às 11h30min, todos tínhamos ido embora. E não voltamos àquele prédio desde então. Os copos de café devem ainda estar lá nas mesas. Os casacos ainda estão pendurados nas cadeiras", pontua Glen. A produção de A Caminho da Lua precisou se adaptar a um formato, até então, inédito, com os profissionais atuando de suas casas. " A única maneira pela qual nós fomos capazes de realizar esse filme dessa forma é pelo fato de acreditarmos que estávamos trabalhando em algo que era maior do que todos nós. Ninguém queria ser o elo fraco que poderia causar um fracasso na produção. Cada um foi para sua casa e, de alguma modo, nos próprios computadores, continuamos a trabalhar. Continuamos a construir o design de figurino; a criar a animação de cabelo, criar a gravação das músicas", relembra o cineasta.

RESPEITO ÀS CULTURAS

No foco de uma animação como A Caminho da Lua, cujo tema central é o folclore de um lugar tão rico culturalmente quanto a China, Glen Keane explica que sua aproximação com o país o ajudou a lidar da maneira ainda mais respeitosa em sua abordagem. "Eu fui para a China no ano passado com uma expectativa grande de encontrar pessoas que eram tão autênticas e reais quanto eu mesmo. Eu só queria conhecê-las. Quando cheguei lá, fui a uma escola onde havia crianças que me lembraram meus próprios netos. Eles correram em minha direção. Uma centena em minha volta. Eles pensaram que eu era Walt Disney (risos). Eles eram tão maravilhosos. Havia uma aula de animação para crianças da terceira série. Pequenas crianças de dez anos de idade aprendendo a fazer animação! Eu sentei na sala de aula deles e os assisti fingindo serem Kobe Bryant e fazendo cestas no basquete", sorri Glen durante a conversa.

As tradições familiares chinesas são focos da animação 

Em um período de tensões políticas envolvendo a China, Glen salienta seu foco no aspecto intelectual e cultural chinês. "Em certo momento, o governo chinês estava bem entusiasmado com nosso filme. Eles perguntaram se nós poderíamos encontrar um espaço na animação para citar o veículo espacial criado por eles. Pareceu, para nós, natural abraçar não somente a lenda, como também a cultura atual, como o trem de levitação magnética e o veículo lunar.E eu me recusei a escutar outra coisa a não ser as melhores intenções de uma nação que quer crescer, enriquecer suas tecnologias, suas histórias, o amor por suas famílias, por sua culinária, por sua arte e por sua música. Tudo isso foram as coisas que me inspiraram. Então, eu escolhi ignorar quaisquer fossem as situações políticas que estávamos atravessando, e focar nas coisas que eu sabia que realmente significavam muito para mim". 

Sabedoria real de um mestre.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 24/10/2020