domingo, 25 de julho de 2021

Um Lugar Silencioso: Parte II


 Silêncio Mortal

ESTREIA Um Lugar Silencioso: Parte 2 expande seu universo pós apocalíptico, acrescentando novas possibilidades narrativas, mas ainda mantendo-se fiel à proposta original de horror sem (muitas) manipulações baratas

Por João Paulo Barreto

No texto publicado no Jornal A TARDE, em abril de 2018, sobre o surpreendente Um Lugar Silencioso, o que mais foi pontuado dentro das qualidades na direção e nos aspectos técnicos do filme de estreia do ator/cineasta John Krasinski, foi sua capacidade de construir uma ambientação de suspense e tensão através de uma história simples que se constrói pela base narrativa entregue já em seu título. Sem a necessidade de manipular sua audiência através dos sustos fáceis oriundos de jump scare (inserção fugaz de sons altos em paralelo a alguma ação inesperada), era exatamente através do silêncio que a tensão era criada, sendo que a audiência percebia através de poucos diálogos (nenhum deles expositivo, diga-se de passagem), os laços de cumplicidade que aquela família construiu lidando com o risco iminente de morte em um futuro pós apocalíptico.

Com final em aberto e um sucesso estrondoso de bilheteria, era inevitável que uma continuação surgisse para a produção lançada há três anos. Parte 2 chega aos cinema brasileiros com um ano de atraso, após ter tido sua estreia adiada em decorrência do fechamento das salas em 2020. E é com surpresa que se percebe um explorar dos mesmos eficientes artifícios narrativos citados acima, mas com uma sutil expansão para um tom mais focado nos tais sustos. Porém, não se trata de uma perda do foco em sua ideia original ou um afrouxamento das rédeas que mantinham seu conceito de filme tão bem amarrado à ideia enxuta de uma obra focada na tensão oriunda do silêncio proposto em seu nome.

Os acontecimentos do longa original têm continuidade imediata

Sim, aqui, surgem momentos nos quais cadáveres putrefatos entram em quadro acompanhados por um rompante sonoro que nos fazem pular da cadeira, mas o que mais chama atenção na expansão proposta pelo roteirista e diretor Krasinski é o modo como aqueles elementos são inseridos gradativamente em seu filme, sem deixá-lo perder os simples em agilidade artifícios narrativos que tanto se sobressaem de forma positiva na primeira parte.

SURDEZ GRITANTE

Iniciando com um flashback que nos mostra o dia 1 da chegada das criaturas assassinas de aguçada audição à Terra (em uma sequência extenuante que já nos coloca dentro do ritmo do filme), mas cortando para os acontecimentos imediatos ao tenso final do longa de 2018, Um Lugar Silencioso: Parte 2 equilibra de modo perceptível os pontos que se destacaram em sua premissa original. Dentre estes, a ideia de usar o som diegético das cenas (aqueles internos da obra e oriundos, mesmo que artificialmente, das sequências de ação) em paralelo à sensação trazida pela surdez de uma das personagens principais.

Os momentos que precedem o inferno: prólogo tenso e violento

Nesse equilíbrio, a montagem de Michael Shawver, montador de filmes como Creed e Pantera Negra (que substituiu, aqui, Christopher Tellefsen justamente pela necessidade de sequências de ação mais ágeis que as do primeiro - vide a do prólogo, por exemplo), junto ao desenho de som da produção, dá ao espectador exatamente essa sensação de mergulho dentro daquele universo através de dois primas distintos: aquele advindo da destruição assustadora pelo seu som ensurdecedor, bem como pelo prisma exclusivamente visual que o mundo de silêncio da adolescente Regan Abbott (Millicent Simmonds, também deficiente auditiva, friso) lhe traz. E ambos, para nós, têm impactos de tensão que se equiparam entre si. Ou seja, trata-se de uma obra que consegue explorar suas possibilidades técnicas e narrativas em uníssono (sem trocadilhos), dando à audiência dois pontos de tensão naquela fascinante ambientação.  E em certo momento, um simples toque entre dois personagens serve como a passagem sonora de um prisma para o outro. Perceber isso, de fato, empolga.

ESTRUTURAS SEMELHANTES

Falando da história propriamente dita, Um Lugar Silencioso: Parte 2 tem sua linha narrativa semelhante à do longa original, colocando seus personagens em uma necessidade constante de movimento, seja em busca de medicamentos ou de segurança para aquele ambiente no qual vivem. Tais andanças e fugas frenéticas, inclusive, geram rimas entre os dois filmes que o espectador atento regozija-se em ver, como as de gritos de dor por razões semelhantes entre mãe (Emily Blunt) e filho (o jovem Noah Jupe, entregando uma atuação excelente para alguém tão jovem, mas bastante experiente), assim como na cumplicidade daquela família que aprendeu a se comunicar com olhares e sinais. Porém, ambos trabalhos, ao final, deixam para seu público uma sensação de perceber como aquelas andanças das pessoas que habitam tal futuro é o que vai gerar os encontros com as criaturas sensíveis à microfonia advinda do aparelho auditivo da jovem Regan (e como esse artifício vai ser explorado novamente).

Família na segurança silenciosa de um cofre

Assim, apesar de ainda servir de modo exato como meio de resolução diante do conflito humanos vs. monstros mortais, percebe-se um certo desgaste do artifício narrativo. Mas não me entenda mal: ainda funciona de modo extasiante ver aqueles seres digitais se contorcendo de dor e exibindo suas entranhas faciais naquele design que remete a flores mortais abrindo suas pétalas repletas de presas afiadas. Porém, ver que o filme se encerra com um gancho preciso para uma terceira parte, e sabendo como trilogias parecem não ser mais suficientes para sanar o aspecto "criativo" (leia-se financeiro) de sagas cinematográficas, fica a dúvida se um novo longa será definitivo para tornar Um Lugar Silencioso uma tríade perfeita em sua proposta de explorar aquele universo ou se será estendido por tediosas e desnecessárias continuações.

Torcemos em silêncio para que não.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 25/07/2021



sábado, 10 de julho de 2021

Cartografia do Cinema no Recôncavo

Filmes do Recôncavo no Mapa

Como precioso registro da história da região através de filmes gravados lá,
site Cartografia do Cinema no Recôncavo, projeto dos cineastas Iago Ribeiro e Camila Gregório,
disponibiliza trabalhos feitos entre 1923 e 1989

Por João Paulo Barreto

Na pintura que ilustra essa página de jornal, obra da artista plástica soteropolitana Isabela Seifarth, as cidades, as pessoas, as fachadas de casas, os prédios históricos, os trilhos, os barcos, o mar, os rios, os caminhões, as labutas, as estradas, as frutas, o samba de roda e todas as outras camadas de uma identidade regional do recôncavo baiano aparecem dentro dessa imensidão de cores que a tela nos apresenta. Adentramos na imagem, e mesmo aquelas pessoas que não possuem lembranças afetivas com a região, ou com seus hábitos e rotinas, sentem a força das histórias que permeiam tais locais e suas memórias. Tal qual como acontece com o Cinema, que também funciona como esse registro de épocas e de costumes.

Não por acaso, a tela também ilustra o site Cartografia do Cinema no Recôncavoplataforma lançada com o suporte da Lei Aldir Blanc e idealizada pelos cineastas Iago Ribeiro e Camila Gregório. O espaço virtual mapeia e registra essa identidade da região através de trabalhos de cinema e TV rodados nas cidades entre os anos de 1923 e 1989, em mais de 130 produções catalogadas até o momento. Como dito, o cinema, desde sua criação no final do século XIX, e passando pelo seu rápido multiplicar de produções nas primeiras décadas do século XX, possui essa mesma capacidade de gerar em sua audiência laços, sejam afetivos ou históricos, diante da visitação a períodos específicos da expansão de cidades, povos e costumes. E é justamente esse o enfoque do site em seu resultado. Mas o alcance da proposta é bem mais abrangente.  


Cornélio Pires no Rio Paraguaçú.
Filme - Brasil Pitoresco: Viagens de Cornélio Pires (1925)


Iago Ribeiro explica que, inicialmente, a criação do projeto veio de um interesse pessoal seu em pesquisar sobre os filmes produzidos no recôncavo durante o século XX e que não são tão conhecidos pelo público. "Seguindo uma curiosidade, fui pesquisando e encontrando essa lista inicial de alguns filmes. Alguns mais canônicos, como podemos chamar aqueles que vêm sempre em primeiro lugar quando pensamos um pouco sobre os filmes mais antigos que retratam o recôncavo da Bahia. Mas após uma primeira pesquisa, fui sendo levado a outros que não eram tão lembrados em mostras, exibições de cineclubes ou em comentários das pessoas. Foi quando fui me interessando e vendo que tinha uma série de histórias que poderiam ser contadas através desses filmes. Até ver que tinham vários da década de 1930, cuja maioria foi perdida. São complementos, documentários com temas de cidades que revelam aspectos econômicos dos lugares, como A Fábrica de Charutos Daneman de São Felix, de 1923, e que não foi localizado", explica Iago. Tal filme é o primeiro registro de imagens em movimento feitas no recôncavo há quase 100 anos.

O diretor e idealizador do projeto, Iago Ribeiro

PESQUISA E PRESERVAÇÃO

No aspecto relacionado a importância da catalogação cronológica e disponibilização das obras, juntamente com o vasto material informativo que acompanha toda a lista de filmes que o site traz, o leque de possibilidades de pesquisas é bem vasto. A produtora geral do projeto, Camila Gregório, explica que as imagens que o público encontrará nessa seleção de filmes possuem valores para além do apenas cinéfilo, mas como, justamente, o de um mergulho na evolução dos tempos em diversos campos. "A gente defende muito o valor da imagem desses filmes e desses registros. E  não só o valor cinematográfico que é atribuído a eles. Mas, também, o valor histórico que pode ser usado por pesquisadores de arquitetura, museólogos, por exemplo. Ali está o registro de uma época, de uma rua, de um jeito de andar, de uma vestimenta. É um documento histórico. Nós defendemos, também, essa importância", esclarece Camila.

Como patrimônio do recôncavo baiano, as obras reunidas no site nos alertam quanto a importância de preservar tais imagens. Principalmente em uma época cujo descaso, ruína e abandono de Cinematecas Brasileiras, como os já notórios casos do que acontece na Nacional, em São Paulo, são a meta de um desgoverno genocida a "presidir" o Brasil. Iago Ribeiro faz esse alerta em relação à necessidade da sensação de pertencimento que o recôncavo e sua gente deve sentir em relação aos filmes produzidos lá. "É uma característica bem forte do recôncavo essa coisa da memória e do descaso com essa mesma memória. Patrimônio e preservação, e, ao mesmo tempo, a ruína e a ausência. E esses filmes, quando eu comecei a me deparar com eles, veio muito essa ideia de que são o patrimônio do recôncavo. Mesmo eles, em sua maior parte, não tendo sido feitos por pessoas daqui, não são produções locais, tem até filme da Alemanha, mas que vemos e concluímos que isso pertence ao recôncavo de alguma forma. E isso tem que retornar, também, para cá. Retornar de uma forma que as pessoas se apropriem dessas histórias e dessas imagens", pontua o cineasta.

A diretora e produtora geral do projeto,
Camila Gregório

LUGAR DE AFETO

Ligados profissional e afetivamente ao recôncavo baiano, Iago e Camila têm em Cachoeira e na UFRB uma relação de pertencimento que ambos salientam bem em suas palavras acerca deste e de vários outros projetos aos quais estiveram envolvidos. E esse afetivo ajuda a tocar para frente as várias empreitadas que os dois jovens cineastas buscam construir dentro do campo   do audiovisual. "Eu defendo muito o afetivo", afirma Camila, complementando: "É uma das formas de lidarmos com esse material (do site). Inclusive, estrategicamente. Para fazer com que aquelas as pessoas reconheçam um valor existente, também, muitas vezes vem por essa afetividade. E o recôncavo baiano é um lugar onde há muito olhar afetivo para esse local. Seja de quem vem aqui uma vez por ano, seja de quem mora aqui, seja de quem ouve aqui através de música, da literatura, da poesia. E vai além do romântico. Acho que é um lugar que pode, até de uma forma meio pedagógica, nos atrair, e atrair a defesa da importância dessa memória, através dessa afetividade. E fora, também, o que eu defendo muito é a paixão que temos por esse lugar, de trabalhar com esse material, com essas imagens. É o que nos trouxe aqui. E. entre todas as  coisas que poderíamos estar fazendo na nossa vida, decidimos fazer isso, assim. E olhar com mais carinho, também, para isso", finaliza Camila.  


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 11/07/2021