sábado, 29 de fevereiro de 2020

Hunters


Caçadores Ingloriosos 


Com o lendário Al Pacino liderando caçadores de nazistas, Hunters, série da Amazon Prime Vídeo, expõe um mal da extrema-direita que, infelizmente, ainda tenta ressurgir

Por João Paulo Barreto

Logo no segundo episódio de Hunters (do inglês, Caçadores), nova série do canal streaming Amazon Prime Vídeo, há uma amistosa conversa entre Meyer Offerman (Al Pacino) e uma “promotora de encontros” (matchmaker, no original) que ajuda o milionário não somente a montar sua equipe de caçadores de nazistas, como, também, tem em suas atribuições unir casais judeus no intuito de diminuir o impacto causado pelo genocídio em massa que aquele povo sofreu na Segunda Guerra Mundial.

O ano em questão é 1977, apenas trinta e duas primaveras desde que as duas bombas atômicas lançadas pelos EUA no Japão encerraram de modo monstruoso o conflito bélico. Em tal conversa, a simpática senhora comemora as uniões que promoveu em seus anos de experiência e cita um número (pouco mais de seiscentos) de pessoas que nasceram desde que iniciou aquela sua missão. “Mas ainda faltam milhões”, ela lamenta para logo depois deixar o otimismo voltar ao dizer que “ainda há tempo”.

Al Pacino: retorno à TV após 17 anos desde 2003 com Angels in America

Para além do catártico modo de conceder à sua audiência o mesmo regozijo que Quentin Tarantino concedeu em sua obra prima de 2009, Bastardos Inglórios, a série em dez episódios  escrita pelo estreante David Weil e com produção executiva de Jordan Peele (Nós e Corra!), apesar de sua premissa de vingança contra os ratos nazistas em um destaque um tanto óbvio de se observar, vai além disso justamente por denotar em sua roupagem o alerta denunciatório de algo que nunca deve ser esquecido. Principalmente em um momento no qual forças da extrema-direita tentam levantar questionamentos tendenciosos quanto à veracidade do Holocausto e busquem rotular desonestamente como meio de ascensão política o nazismo como sendo um movimento de esquerda.

CULTURA POP VS BRUTAL REALIDADE

No formato citado inicialmente, dentro de uma roupagem pop que referencia seu período temporal da segunda metade dos anos 1970, Hunters vai mudando de tom gradativamente no decorrer de seus episódios. Quando conhecemos no seu segundo capítulo todos os integrantes do grupo de caçadores liderados por Pacino, cada um deles é apresentado dentro de vinhetas que remetem a, por exemplo, filmes da Blaxploitation, a seriados como Agente 86, a longas de guerra como Apocalypse Now, tudo em um conceito de resgate da época dentro do cinema e da cultura pop oriunda dos quadrinhos. Algo que contrasta claramente com o peso do tema central de sua premissa.

O grupo de Caçadores se alinha para definir estratégias

Tem-se a impressão de se buscar inserir uma leveza para um assunto denso e sério de se tratar, como campos de concentração e a ainda existência de membros do alto escalão terceiro reich em solo estadunidense trinta anos após a queda de Hitler. Mas tal impressão de frivolidade que se confunde com leveza, a qual se assiste com um riso de dentes trincados, felizmente, vai ficando para trás à medida que se mergulha naquela trama densa na qual Hunters apresenta para sua audiência o peso de sua narrativa.

RECRIAÇÃO FRÍVOLA?

Na recriação dos horrores acontecidos nos campos de concentração, a série parece se perder um pouco em uma tentativa fantasiosa de chocar, como ao inserir um jogo de xadrez humano, no qual prisioneiros eram obrigados a atuar como peças de um tabuleiro e a matar seus “oponentes” (algo de inserção justificada talvez pela rima em vinheta de abertura).

Porém, há uma responsabilidade em qualquer peça de ficção dentro de uma proposta de representação da monstruosidade dos campos de concentração de trazer uma fidelidade denunciatória do que houve. Ao se permitir uma liberdade dramática como essa, Hunters acaba por diminuir a seriedade do que aconteceu nos campos e, por consequência, torna frívolo seu apelo à reflexão em uma peça de entretenimento. Por isso, é com alívio que se percebe a citada mudança de tom que acontece nos episódios seguintes, nos quais a caça aos nazistas ganha maior destaque e os flashbacks dos campos, uma abordagem mais fidedigna e calcada no real.

A cena do xadrez humano: noção de brutalidade banalizada?

ECOS EM 2020

Na história do garoto nova-iorquino judeu que, após perder a avó (uma sobrevivente dos campos) em um assassinato com rastros antissemitas, é recrutado para o grupo de caçadores criado pelo personagem de Pacino, Hunters segue em uma estrutura que assusta por sua capacidade de se assemelhar com um possível real. Com a ideia proposta de um governo como o estadunidense a esconder em seu solo e recrutar as mentes pensantes do nazismo para seu próprio desenvolvimento científico e econômico, a série de Weil, mesmo se passando em 1977, consegue referenciar um século XXI sombrio.

O mesmo século que tem nas ruas pessoas a usar abertamente suásticas em posturas desafiadoras e governos supostamente democráticos que têm em seus discursos argumentos antissemitas, racistas, homofóbicos, misóginos e de intolerância religiosa. A máxima que afirma que quem não conhece o passado está fadado a repetir os mesmos erros no futuro se faz presente, infelizmente.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 01/03/2020




quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

O Homem Invisível


O Mal Bem Visível


Mais um esmero da Blumhouse Produções, O Homem Invisível traz releitura de clássico de 1933 unindo cinema de gênero com uma urgente denúncia ao abuso contra a mulher

Por João Paulo Barreto

Na atualização para os tempos atuais, clássicos cinematográficos de ficção científica, quando recriados, correm grandes riscos de parecerem datados em suas propostas ou ineficientes em uma comparação ao contexto de suas épocas originais. Vide, por exemplo, filmes como O Dia em Que a Terra Parou, marco dirigido por Robert Wise em 1951, e sua versão de 2008, estrelada por Keanu Reeves. Enquanto o primeiro trazia um claro tom denunciatório contra a postura belicista das potências mundiais naqueles anos iniciais da Guerra Fria, quando o fantasma das duas bombas atômicas lançadas apenas seis anos antes ainda assombrava pessoas de todo o planeta, seu remake da década retrasada se rendia a uma simplória proposta de filme de ação. Havia, claro, até um esforço se manter fiel a uma mensagem antibélica, mas todo tom se perdia diante da necessidade do espetáculo visual.  

Adentrando no âmbito dos monstros clássicos da Universal Studios, cujas adaptações da primeira metade do século XX ajudaram a moldar o imaginário dos filmes de terror e ficção científica que viriam a surgir, o cenário não é tão diferente em termos de perda de um frescor (não confundir tal sensação de perda com preciosismo) que as obras originais possuíam. Um exemplo dessa perda são as versões do clássico O Lobisomem, sendo a primeira de 1941 ainda conseguindo construir uma melhor atmosfera de terror que a sua insossa e homônima de 2010.

Cecilia (Elizabeth Moss) em momento chave no sotão

A surpresa, porém, é gigante quando entramos no cinema para encarar uma adaptação de O Homem Invisível, cujo apreço pelo clássico de 1933 dirigido por James Whale é tão grande quanto pelo original literário de H.G. Wells, e percebemos estar diante de uma pérola do horror tanto físico quanto psicológico, bem como uma peça pungente de alerta contra abusos em relacionamentos e contra a violência misógina. Claro que boa parte dessa percepção de sucesso se deve à logomarca da Blumhouse Productions a abrir o longa. Responsável por filmes como Atividade Paranormal, Corra!, A Visita, Fragmentado e Vidro, a empresa de Jason Blum tem dado um revigorante frescor às produções do gênero de horror. Aqui, mais uma vez, não decepcionou.

DENÚNCIA CONTRA MISOGINIA 

Utilizando um roteiro que insere a característica vilanesca de seu personagem título de uma maneira mais orgânica, sem caricaturas, e calcada em uma brutal realidade (no original de 1933, o personagem enlouquece gradativamente por conta da invisibilidade irreversível), o filme de 2020, dirigido por Leigh Whannell, desenvolve tal figura através da perspectiva de sua namorada, Cecilia Kass (Elizabeth Moss).  Vitima de abusos físicos e mentais, a jovem decide fugir do cárcere privado onde era mantida por seu namorado, o milionário empresário e pesquisador do campo da óptica, Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen). E é neste ponto violento e pesado de sua abordagem que O Homem Invisível se diferencia, deixando de ser apenas um filme de ficção científica para se tornar um essencial exemplar de uma união entre o horror e uma temática séria de sua imersão no terror psicológico.

With a Little Help From My Friends: Cecilia busca ajuda

Ao construir sua trama nos tempos atuais, Whannell trouxe para o século XXI não somente o contexto tecnológico de seu personagem título, mas toda uma proposta de alerta dentro de uma questão grave que é a misoginia. E, ainda, além de inserir essa discussão no filme, o roteiro de Whannell desmistifica a postura clichê da presença feminina em filmes de horror. Normalmente vistas como figuras frágeis, manipuláveis e vitimas de dores infringidas por presenças masculinas, a Cecilia de Elizabeth Moss se diferencia por seu pulso firme que, mesmo abalada inicialmente, consegue se sobressair e defender-se diante de tamanha brutalidade contra si.

TÉCNICA E AMBIENTAÇÃO

Na mescla de uma presença física e psicológica, mas com a necessária ausência visual de seu vilão invisível, o diretor Leigh Whannell concede ao espectador uma série de artifícios para desenhar a tensão de sua obra. Sem necessariamente apelar para os sustos fáceis oriundos dos já ultrapassados jump scares (inserções de tons repentinos e altos de trilha sonora ou imagens bruscas para causar impacto na audiência), Whannell prefere trazer seu foco para a sugestão oriunda dessa ausência visual. Assim, contorna a ideia do medo pela “simples” proposta (eficiente aqui, friso) slasher e gore na sanguinolência de seu filme, preferindo causar mais impacto pela sugestão de tais sustos.

E neste trilhar do horror através da sugestão, a presença física de seu vilão vai se desenhando aos poucos em cena. E é bastante recompensador perceber, neste desenhar, as pistas que o cineasta insere de maneira tão orgânica em elementos que se tornarão recompensas centrais para a audiência no desenvolvimento do longa. Dois exemplos são a (apesar de não tão natural) escada com a qual Cecilia presenteia James (Aldis Hodge), o amigo policial que a acolhe; e a cena de maior impacto, quando um extintor de incêndio apresentado em um tenso momento anterior ilustra precisamente este modelo orgânico de pista e recompensa (termo que define artifício do roteiro em plantar elementos em cena) citado anteriormente.
A melhor recompensa, no entanto, é perceber que ainda há vida inteligente no atualmente combalido (e quase rendido a clichês) cinema de gênero.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 28/02/2020




Você Não Estava Aqui


Por esse pão pra comer


Você Não Estava Aqui, de Ken Loach, traz o registro de uma realidade social que nos espelha como reféns do capitalismo e do trabalho como opressor de vidas e mentes

Por João Paulo Barreto

Na carreira do cineasta britânico Ken Loach, a reflexão voltada para o esmagamento do capitalismo perante a vida das pessoas é algo notório. Em seus filmes, uma imersão da audiência dentro do contexto realista social da Inglaterra, e, por identificação, de boa parte do mundo, é inevitável. Desde o começo de sua longa trajetória como diretor de ficções e de documentários para TV e cinema, Loach, hoje com 83 anos, buscou trazer para seu espectador um pensar cinematográfico para além do puro entretenimento, usando suas narrativas como uma oportunidade do público adentrar em textos reflexivos e calcados em situações reais.

Em um ano como o de 2019, onde o Oscar e Hollywood se renderam a Parasita, uma instigante análise da natureza de classes, uma obra como Você Não Estava Aqui delineia a noção de que essa estrada que hoje o brilhante cineasta sul-coreano Bong Joo Ho percorre foi pavimentada pelo veterano Ken Loach, um diretor que nunca foi hipnotizado pelo chamado hollywoodiano. Seus filmes acerca de uma realidade especificamente britânica, mas com aplicações mundiais de certa forma não traduzíveis para plateias estadunidenses, há tempos se apresentam como esse estudo de classe proposto por Bong  em sua obra prima.

Um exemplo, inclusive, de tal impacto da filmografia do cineasta nascido no Reino Unido é a notória mudança da legislação britânica no que tange às obrigações do país perante sua população de rua após a comoção causada por Cathy Come Home, episódio televisivo da BBC que foi ao ar em 1966, escrito e dirigido por Loach. E isso em seu início na profissão de diretor.

Ken Loach no set de Você Não Estava Aqui

POR ESSE CHÃO PRA DORMIR

No decorrer desses mais de cinquenta anos de cinema e TV, ele continuou a oferecer à sua audiência maneiras de percebermos para além dos próprios umbigos. Seja em temas como o preconceito em relacionamentos entre pessoas de etnias diferentes (Apenas um Beijo), relacionamentos em uma superação da vida sob o julgo do trabalho e sua ausência (Meu Nome é Joe) e, mais recentemente, com uma de suas mais impactantes obras a abordar a crueldade do estado e sua burocracia que, junto com o capitalismo brutal, esmaga cidadãos: Eu, Daniel Blake, filme de 2016 que ganhou a Palma de Ouro em Cannes. Na obra, uma visita ao inferno da “vida” após décadas de labor, quando o personagem título, um idoso que tem sua pensão da aposentadoria colocada em risco pela burocracia britânica, tenta não sucumbir àquele purgatório social.

Mantendo o mesmo registro quase documental e de proximidade realista na rotina e interações de seus personagens, em Você Não Estava Aqui, o que temos, dentro de uma imaginação do espectador familiarizado com a filmografia de Loach, é um registro da juventude de alguém como Daniel Blake, quando as forças dos trinta e poucos anos ainda possui vigor e os sonhos ainda existem no seu horizonte. Força esta que, aos poucos, se esvai.

Ricky (Kris Hitchen) em momento de decisão quanto a gastar dinheiro que não tem

Esforçando-se para manter sua família alimentada e abrigada, Ricky Turner consegue um trabalho como entregador em uma transportadora. Em sua jornada de 14 horas diárias, mantém um apertado cronograma no qual qualquer atraso ou necessidade de se ausentar significam multas que ele tem que pagar do próprio bolso. Em um inútil orgulho, afirma na entrevista que nunca deu entrada em seguro desemprego. “Prefiro morrer antes”, uma frase que delineia a mentalidade posta numa coleira social estupidamente orgulhosa e submissa. Lembra muito o personagem do cavalo, no clássico A Revolução dos Bichos, de George Orwell, outro britânico a perceber já há muito tempo como essa coleira funciona.

POR ME DEIXAR RESPIRAR

Sua esposa, Abbie, que trabalha como cuidadora de idosos, tem, também, uma extenuante rotina em visitas a casas de pessoas solitárias que, literalmente, precisam de sua presença para sobreviver. Mantendo um equilíbrio emocional constante (algo imprescindível para seu emprego), Abbie ainda lida com o filho adolescente rebelde e com a filha precocemente abalada pela maturidade que chega. E o faz sem a armadilha fácil da hostilidade autoritária e buscando sempre um diálogo com ambos. Nesse quadro, há a já clichê e injusta imagem da mulher colocada como o bastião do equilíbrio emocional em um relacionamento. Porém, tal impressão fica para trás quando, no ápice de sua frustração e pressão psicológica sofrida diante das diversas situações que os problemas familiares lhe trazem, Abbie, como qualquer ser humano, alcança seu limite.

Abbie Turner (Debbie Honeywood) em sua rotina de cuidadora de idosos

Analisando o contexto de um ambiente familiar em dificuldades financeiras, Você Não Estava Aqui (em versão portuguesa, o Sorry, we missed you dos cartões referenciando uma entrega não realizada), com seu título a criar uma eficiente metáfora entre a necessidade do trabalho na vida de Ricky e uma relação da ausência justificada do pai nos problemas de sua família, o filme de Ken Loach, com seu poderoso e impressionante desfecho, nos dá muito a refletir sobre a opressão que abraça a quase todos no mundo.

O termo “quase”, aqui, refere-se àqueles a quem tal opressão serve justamente como ferramenta de sobrevivência no topo dessa pirâmide social. E de um Estado conivente com tal opressão que, de modo direto, o permite surfar e se perpetuar nesse status que alimenta poucos, mas que usa a força de muitos para se manter como está. E muitos aqui embaixo são obrigados a dizer “por me deixar existir, Deus lhe pague”.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 27/02/2020


sábado, 22 de fevereiro de 2020

Luta por Justiça


Olhos que Condenam


Baseado em uma história real, Luta por Justiça traz o empenho de jovem advogado na batalha contra o racismo assassino que construiu os Estados Unidos

Por João Paulo Barreto

“Soube que ele era culpado no momento em que olhei para ele”. Essa foi a frase proferida por policiais nos depoimentos referentes à prisão de Walter McMillian, errônea e desonestamente acusado do assassinato de Ronda Morrison, uma jovem de 18 anos, branca, residente do Alabama, no sul estadunidense. Em uma investigação tendenciosa e repleta de furos, na qual não se conseguia achar um suspeito, McMillian, um homem negro, sem antecedentes criminais, pai de dois filhos, foi falsamente relacionado como cúmplice de Ralph Meyers em outro assassinato cometido por este. Assim, após criar a armadilha legal, a polícia corrupta e racista da cidade de Monroeville não tardou a acusar Walter, também, pelo assassinato da jovem Ronda. A frase entre aspas acima define bem a ação que urge da reflexão contida em Luta por Justiça.

Just Mercy (em seu título original) traz a perseverança do advogado Bryan Stevenson (Michael B. Jordan, também produtor do filme), quando, recém formado em Harvard, decide, ao invés de seguir uma carreira lucrativa em escritórios de advocacia, abraçar a análise minuciosa dos casos de condenados à cadeira elétrica no estado do Alabama. Ao abrir um centro de representação jurídica para pessoas sem condições financeiras para arcar honorários advocatícios, Stevenson passa a se dedicar, ao lado da colega Kris Ansley (Brie Larson), a verificações mais detalhadas de casos no intuito de evitar que penas de morte sejam executadas.

Jamie Foxx vive Walter McMillian

CULPA PRÉ-DEFINIDA

Ao ilustrar seu filme com a brutal história de McMillian (vivido por um intenso Jamie Foxx), baseada no livro do próprio Bryan Stevenson, o diretor e co-roteirista Destin Daniel Cretton trouxe não somente uma análise profunda do racismo nas terras ianques, bem como uma reflexão acerca da pena de morte como um método falho, desumano e injusto de se fazer justiça. “O olho por olho deixará todo o mundo cego”, frase atribuída a Mahatma Gandhi, constrói de forma pertinente essa reflexão. Acabar com a vida de um criminoso é a resolução para o problema? Ou este problema social deve ser lidado de maneira pragmática, porém com uma diferenciação daquilo que nos coloca como pessoas, não como animais vis? Minha consciência e humanidade seguem para a segunda opção.

No longa, neste aspecto da discussão sobre a pena de morte ainda ser legalizada em alguns estados da 
trumplândia (mesmo que a cadeira elétrica, desde 2008, não seja mais adotada), há o fato de que a maior parte dos presos que terminam no corredor da morte possuem falhas em seus processos judiciais e, ainda por cima, serem em sua grande maioria afrodescendentes. “Aqui, se você é negro, você já nasce culpado”, afirma, dolorosamente, na pele de Jamie Foxx, Walter McMillian.

Deste modo, ao se aprofundar nesta imprescindível questão, o roteiro de Cretton e Andrew Lanham (que, curiosamente, havia escrito o constrangedor A Cabana, de 2017) Luta por Justiça coloca seus personagens habitantes do corredor da morte não de forma caricata, a querer forçar uma empatia do espectador. Os traumas daqueles homens, alguns deles culpados dos seus crimes, não são jogados na tela de maneira a redimi-los por suas lágrimas ou atual estado desespero diante da iminente partida. Não. O filme oferece contundentes argumentos para que tal máxima contestada sabiamente por Gandhi não seja colocada em prática.

Stevenson e McMillian (Jordan e Foxx): momento decisivo

“JUSTIÇA” SENDO FEITA?

Um deles reside na trágica vida de Herbert Richardson, uma das 66 pessoas executadas no Alabama depois que a pena capital foi recolocada em prática. No filme, interpretado por Rob Morgan, Richardson ilustra precisamente o fato da sentença de morte sendo algo definitivo, mas que não cumpre efetivamente a ideia de justiça. Assumidamente culpado pelo crime que cometeu, Richardson sofria de PTSD (Post-traumatic stress disorder, na sigla em inglês), o tipo de estresse pós-traumático que aflige diversos soldados quando estes retornam para casa após cumprir com deveres militares em guerras.

Com tal condição a atormentá-lo, o crime cometido por Richardson deveria ser julgado a partir de uma perspectiva, também, médica, tornando possível que sua pena fosse paga através de um internamento em um hospital psiquiátrico. Mas nada disso aconteceu. A cena de sua execução remete ao À Espera de um Milagre, filme baseado na obra de Stephen King. Aqui, porém, a lembrança de ser baseada em algo real nos choca com maior impacto.

Mesmo com alguns personagens tendo uma participação mal desenvolvida na trama, com uma aproximação fantasiosa de bom caráter dentro do violento ambiente policial, como aquela que traz um dos policiais no corredor da morte desenvolvendo certa simpatia pela causa de Stevenson, mesmo já tendo sido apresentado ao público como um escroque, Luta por Justiça tem na função de denúncia de algo tão incrustado quanto o racismo e o prejulgamento dentro do sistema social e legal estadunidense algo urgente.

O embate emocional das imagens reais dos presos que cumpriram pena no corredor na morte, sempre na iminência de sua própria execução, mas que conseguem deixar o local ainda preservando seu maior bem, e, se tiverem sorte, suas sanidades, concede ainda mais força à reflexão trazida pela obra.


*Crítica originalmente publicada no Jornal A Tarde, dia 22/02/2020

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Modo de Produção


O Peso do Labor


Modo de Produção, filme de Dea Ferraz, traz a desilusão de um Brasil 
fadado ao seu próprio passado no ascender de um desumano neoliberalismo

Por João Paulo Barreto

As imagens das carteiras de trabalho surradas pelo tempo, com páginas rasgadas e repletas de assinaturas, simbolizam bem a reflexão trazida por Modo de Produção. A cor de suas capas, desbotadas pelo constante manuseio, com os carimbos a manchar páginas e a contar trajetórias, se confunde com a necessidade do labor. Torna-se algo como a definição para a questão do “apenas” ser alguém. Ser uma pessoa que possa se dizer digna dessa definição. O trabalho se confunde com a definição do ser alguém cujo respeito por si mesmo e aquele oriundo da sociedade vira um peso esmagador em suas consciências.

Em seu documentário, a cineasta Dea Ferraz, do ótimo Câmara de Espelhos, traz a rotina no Sindicato de Trabalhadores Rurais de Ipojuca, Canela e Nossa Senhora do Ó, municípios do interior de Pernambuco. Nos dois textos a abrir o filme, as definições de cana-de-açúcar e do Porto de Suape mesclam-se quase como uma receita para o progresso na utópica “promessa de desenvolvimento econômico e social do Nordeste Brasileiro”. Claro que tal progresso, com a produção de cana sendo a força motriz movida por milhões de trabalhadores desde o Brasil Colônia, beneficiava realmente outros, não aqueles que, no suor e mãos calejadas, lhe forneciam suporte e estrutura.

O próprio Porto de Suape, cuja ilusória condição de salvador de uma economia, surge como uma miragem no início do filme. A diretora Dea Ferraz comenta essa condição do porto. “Suape era vendido como o oásis da nova economia. Quase a salvação do estado e do país. Era uma coisa meio louca na mídia hegemônica e a gente sabia que na região, aqui em Pernambuco, isso não acontecia. Trabalhadores chegavam e a maioria era de fora. Os que eram da região eram os da agricultura, da cana-de-açúcar, que acabavam ficando indo e voltando de Suape para a cana”, explica Dea Ferraz.

Dona Doralice: cortadora de cana desde os 13 anos de idade

BRASIL DE 2013 A 2020 

O filme teve suas imagens captadas em 2013. Inicialmente, a proposta era de um curta metragem integrante de uma série chamada Vulneráveis. Acabou virando um longa. “O primeiro lugar que visitamos foi o sindicato, para buscar indicações de pessoas que trabalhavam no Porto. Quando entramos, passamos um dia inteiro lá. Voltamos outras vezes e ficou muito forte para mim a sensação de que aquele espaço era realmente o filme”, salienta a diretora. Na citada rotina do sindicato, diversas queixas de trabalhadores oriundos do plantio, corte e processamento de cana são ouvidas. São pessoas que labutaram suas vidas inteiras nesse tipo de serviço. Muitas delas sem o cumprimento de diversas diretrizes de segurança ou garantias previstas em lei dos seus direitos trabalhistas.

Tais direitos, o filme traz em uma série de pontuações feitas pelos funcionários do sindicato nas suas orientações. Nestes encontros, onde cordialmente aqueles trabalhadores são ouvidos, vemos os diálogos acontecerem e a câmera de Pedro Sotero (mesmo fotografo de Bacurau) a registrar as expressões daquelas pessoas. Pessoas que vão de encontro àquela instituição trabalhista como uma síntese do lavoro. “O lugar parecia sintetizar toda uma condição de trabalho, uma condição de modo de produção do capitalismo que, no fundo, tem a ver com um modo de existência, um modo de vida de várias pessoas que ficam à mercê desses empregadores, do capital, da Justiça e do Estado”, pontua Dea Ferraz.

Sr. Amaro e o funcionário do sindicato a ouvir sua situação

Duas destas pessoas ganham destaque pela lente da cineasta: sr. Amaro e sra. Doralice. O primeiro trabalhou por décadas no cultivo da cana. Em sua necessidade, almeja trabalhar com herbicida por conta do adicional de periculosidade. Tal pedido representa a relação absurda da necessidade que o trabalho e o capitalismo causam a alguns. Dona Doralice está ali a ouvir todas as instruções do funcionário do sindicato. Trabalha desde os 13 anos no plantio de cana-de-açúcar. Não sabe ler ou escrever, precisando registrar com as digitais o documento de queixa preenchido pelo sindicato. Seu rendimento varia de 280 a 320 reais por quinzena, não chegando a 800 reais por mês.  Em um Brasil pós reforma trabalhista e com um governo que, assumidamente, governa para ricos e tem na ideia de seu “chefe executivo” que “ser patrão é uma desgraça no país, com tantos direitos trabalhistas” ou que “minorias têm que se adaptar às maiorias ou desaparecer”, pensar no peso que o registro que Dea Ferraz fez ainda em 2013 ganha contornos ainda mais brutais no Brasil de 2020.

Dentro daquela rotina de várias visitas ao sindicato, a percepção de que o local, em suas repetições de histórias semelhantes e acontecendo a pessoas distintas, mudou o filme. Uma percepção de que o doc, desde sua gênese com a proposta de abordar aquela promessa otimista de futuro advinda de Suape, foi caminhando até seu lançamento em festivais em 2017 e para sua estreia comercial em 2020, em um paralelo inverso ao Brasil. “O filme vai caminhando junto com a história do Brasil recente. E é muito triste perceber que ele nasce de um desejo que vira uma miragem porque caminhamos para trás. Estamos voltando para os séculos de escravidão. É isso que está acontecendo no país hoje. Além da massa de trabalhadores que está sendo demitida, de desempregados, estamos vendo a precarização do trabalho, vendo a vulnerabilidade ainda maior da figura do trabalhador”, lamenta a cineasta.

A presença da massa de trabalhadores na rotina do sindicato

HÁ RESISTÊNCIA

Na percepção de que aquela rotina no órgão se tornou a vida daquelas pessoas, é difícil para o espectador (aconteceu comigo) não ser impregnado por certo pessimismo em relação ao Brasil. Ao final, um letreiro explica todo o processo temporal do filme e aborda o atual momento. Dea Ferraz cita o filosofo camaronês Achille Mbembe e tal referência rima de maneira precisa com Modo de Produção. “Eu penso muito em Mbembe quando ele fala da necropolítica. É como se tivesse um excedente de massa trabalhadora e quando há excedente de qualquer coisa na economia, ele tem que ser eliminado. O que fazer com esse excedente? O excedente de trabalhador. Acaba sendo aquele que é possível morrer, que é possível matar. Essa é a política neoliberal que está sendo implantada hoje no país. Uma política extremamente violenta, que desconsidera qualquer nível de humanidade. Eu não consigo nem dizer o que é. A gente não consegue ainda nem dizer o que é isso tudo que a gente está vivendo”, finaliza.  Na frase a encerrar seu filme, uma sensação de punhos cerrados surge quando lemos a frase Há Resistência. 

Sim, há. Sempre haverá

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 18/02/2020



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

O Preço da Verdade


Vidas descartáveis 


Em filme-denúncia, Mark Ruffalo e Todd Haynes entregam a negligência monstruosa da gigante Dupont no condenar de vidas humanas visando lucro

Por João Paulo Barreto

Notório em uma louvável e constante postura ativista no uso de sua voz enquanto privilegiado pela consagrada carreira de ator, Mark Ruffalo tem na sua biografia diversas ações em causas humanitárias, ambientalistas e voltadas para minorias. Como produtor e protagonista de O Preço da Verdade, título genérico e pobre para o impactante Dark Waters (Águas Sombrias, em tradução literal), o Hulk dos filmes da Marvel assume mais um respeitado papel no disseminar de fatos a beneficiar o conhecimento público e provar o cinema como meio de informação além do entretenimento. Sim, por mais que a “namoradinha do Brasil” e lambe botas, Regina Duarte, não ache, o cinema deve, sim, possuir um viés ideológico.

Dito isso, o foco aqui vai para o caso real do envenenamento pela Dupont , a gigante da indústria química, das águas fluviais da cidade de Parkersburg e região, na estadunidense Virginia Ocidental (a West Virginia imortalizada na letra de John Denver). Ruffalo vive o advogado Rob Bilott que, em meados dos anos 1990, quando se tornara sócio do escritório de advocacia onde atuava, recebe a denúncia de Wilbur Tennant, fazendeiro local que perdeu 190 cabeças de gado em circunstâncias estranhas e que o levaram a desconfiar do envenenamento das águas em sua propriedade.
Billot chega à fazenda de gado onde 190 vacas morreram envenenadas

Com uma promissora carreira em defesa justamente de empresas químicas em processos legais, Bilott teve uma reviravolta profissional ao abraçar a investigação contra a Dupont, mesmo que isso viesse a significar lutar contra burocratas que enterram segredos corporativos em anos de processos jurídicos. Como um peso ainda maior em sua consciência, o escritório onde trabalhava tinha na indústria química um parceiro financeiro significativo. Assim, Billot, ao assumir a investigação e processos legais contra a Dupont, foi de encontro a uma palpável fonte de renda em seu próprio ganha pão. Porém, o rastro putrefato de negligências e irresponsabilidades que a empresa trazia em sua trajetória na cidade de Parkersburg e arredores, bem como as ocorrências de tragédias pessoais que tais negligências causaram a seus habitantes, era algo que não se podia ignorar diante do “jogar para debaixo do tapete” que se tornaram as atitudes da Dupont.

DESPREZÍVEL CORPORAÇÃO

O diretor Todd Haynes assume a batuta na criação da atmosfera que, gradativamente, se torna sufocante na vida de Rob Billot diante dos quase vinte anos que O Preço da Verdade traz em seu recorte. Neste período, vemos o homem bater de frente a magnatas da indústria que levaram à frente o uso, por exemplo, do teflon, marca conhecida por tornar impermeável tecidos e facilitar a limpeza de utensílios domésticos.  Tal uso revelou a liberação de produtos tóxicos que, na corrente sanguínea, causaria, dentre outros males, câncer em diversos órgãos. Do mesmo modo, o impacto em gestantes foi percebido pela desprezível corporação, mas ignorado, mesmo que o nascimento de bebês com deformações tenha chegado ao conhecimento dos executivos.

Anne Hathaway vive Sarah, a esposa de Billot: testemunha de um colapso

Mark Ruffalo constrói seu personagem justamente nesse patamar de gradativa perda de um equilíbrio físico e psicológico. Inserindo elipses de tempo eficientes tanto no contar da história pregressa em paralelo à evolução da atuação do advogado no caso, bem como no mostrar do nascer e crescer dos três filhos do defensor, o diretor Todd Haynes dá ao espectador não somente uma noção do peso do tempo que as lutas em tribunais e no contato com as vítimas têm na vida de Billot. Aqui,  ter acesso aos resultados de tais negligências nas vidas de pais de crianças que nasceram com suas saúdes comprometidas afeta, inclusive, a vida do advogado que se coloca no lugar daquelas pessoas.

Assim, não apenas a queda das vitimas diretas da monstruosidade causada pela Dupont, mas o colapso nervoso e físico de um homem que vai entregando todo seu potencial contra uma corporação é exibido nas pouco mais de duas horas de projeção. Quando uma das vitimas reais da empresa química surge em tela, representando a si mesma e tentando viver uma vida normal diante de sua deformação física e sofrimento que lhe perseguiu em sua existência, a pergunta que ele faz a Billot acerca de um jogo esportivo concede um lapso de esperança ao espectador. As manchas daquelas águas sombrias que soam como uma metáfora exata para o que o filme de Todd Haynes nos traz como reflexão para o mundo capitalista e desumano permanecem, porém.

Em tempo: há um documentário intitulado The Devil We Know que aborda com profundidade toda a denúncia feita contra a Dupont. Imprescindível assistir.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 14/02/2020



domingo, 9 de fevereiro de 2020

Oscar 2020


A Vertigem Cinéfila do Oscar



Com Brasil no páreo de Melhor Documentário, festa do cinema acontece hoje, a partir das 20h, com transmissão ao vivo pela TNT, TV Globo, Globoplay e pelo portal G1

Por João Paulo Barreto

“Previsão para a noite do Oscar?”, replicou-me João Carlos Sampaio, com aquele notório riso de canto de boca. “Chuva fina, temperatura amena e cama atrativa para deixar bem longe de mim as três horas de duração dessa cerimônia chata”. Foi assim que, em 2012, o irônico e saudoso crítico de cinema deste impresso me respondeu quanto lhe perguntei sobre suas predileções na festa do cinema mundial (mundial? será?) que, naquele ano, premiou O Artista.

De certa maneira, Janjão de Aratuípe, em sua sabedoria, tinha razão. O Oscar sempre foi essa coisa espalhafatosa, cafona, longa e, alcançando em 2020 sua 92ª edição, a impressão ainda é a mesma, acredite. Quando não há algo que chame a atenção como a troca dos nomes dos premiados em 2017 ou o preciso monólogo de abertura de Chris Rock em 2016, para muitas pessoas, cinéfilas ou não, passar as três horas contínuas vendo a cerimônia não é um programa muito atrativo.

Porém, eu confesso: ao menos para esse escriba cinéfilo, há algo de magnético nessa festa que o faz ficar acordado (mas se rendendo a Morpheus logo após a primeira hora), mesmo que o batente cedo na segunda feira de manhã seja obrigatório. Assim, o apanhado de apostas, predileções, estatísticas baseadas em outras premiações do mesmo período não deixam de ser uma boa muleta para aqueles que, assim como eu, tentam acertar os ganhadores nos dias que precedem a cerimônia que acontece hoje, com transmissão ao vivo direto do Teatro Dolby, em Los Angeles.

Joaquin Phoenix e sua já lendária atuação como Coringa

APOSTAS NO PALHAÇO

Levando isso em consideração, após observar premiações como o Screen Actors Guild Awards, Critics’s Choice Awards, BAFTA e Globo de Ouro, é muito improvável que Joaquin Phoenix  deixe de ser premiado com um Oscar por sua brilhante caracterização como o atormentado Arthur Fleck, o coringa do filme homônimo dirigido por um surpreendente (e de currículo não muito cativante)Todd Phillips. Em uma construção impressionante, na qual não somente a transformação física é observada, mas todas as nuances e choques entre dor e riso involuntário, violência e carência afetiva, insanidade e niilismo são trazidas à tona por um personagem que representa muito de uma sensação comum ao cidadão que, atualmente, é  esmagadas por um sistema político e social pernicioso. Premiar Joaquin Phoenix por esse papel possui muito significado como mensagem da função do cinema como agente modificador, ou ao menos, de uma reflexão mais profunda acerca da sociedade.

Neste quesito de premiar filmes cuja mensagem política e social se fazem presentes para confirmar uma obrigação do cinema como algo além do entretenimento, Parasita, indicado aos prêmios de Direção e Roteiro Original (o talentoso coreano Bong Joon Ho), além dos dois prêmios de Melhor Filme (falado ou não em inglês), é um dos grandes favoritos (e meu preferido) em todos estes quesitos. No entanto, pelo menos nas indicações de Fotografia (o brilhante Roger Deakins),Direção e Melhor Filme, o vencedor deve ser o épico de guerra 1917, do britânico Sam Mendes, uma imersão técnica e emocional na missão de dois soldados durante a Primeira Guerra.

A obra prima Parasita

BRASIL PRESENTE

Na categoria de Melhor Documentário, a cineasta Petra Costa tem, contraditória e ironicamente ajudando a divulgar a importante denúncia contida em seu trabalho, uma campanha governamental de ataques contra o seu filme, Democracia em Vertigem. Sim, apesar de todas as tentativas do atual (des)governo em tentar manchar a reputação do doc e (creia) da própria diretora de Elena e O Olmo e a Gaivota, tal destaque concedido pela vias oficiais do Planalto tem servido como uma maneira de demonstrar a importância da obra em seu registro histórico do golpe parlamentar de 2016.

Independente de qualquer posicionamento político, o longa tem em seu resultado final uma prova contundente de todo movimento de sabotagem do processo democrático. Movimento este que utilizou todo o aparato da mídia televisiva e impressa representada pelas famílias que detêm tais concessões para ajudar a demonizar a esquerda, levar à derrubada da presidente da República, Dilma Rousseff, e condenar “sem provas, mas com convicções” o pré-candidato líder nas pesquisas para a eleição do ano passado.

Em um país cuja cultura é tão esculachada pelos ignorantes que atualmente detêm o poder, onde projetos que teriam financiamentos da Agência Nacional do Cinema (ANCINE) devem “passar por um filtro” (leia-se: censura) e onde cartazes de obras nacionais são retirados do prédio onde se localiza a agência, difamar o representante nacional no Oscar, a maior vitrine que o cinema, essa gigante indústria, meio tão palpável de geração de renda e emprego no Brasil, confirma muito bem a incompetência e mediocridade do atual presidente do país.

Mas o mundo está de olho. E nada como uma vitrine de audiência tão impressionante quanto o Oscar para provar isso.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 09/02/2020



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Jojo Rabbit


Amargo Amadurecer


Com tocante abordagem, diretor de Thor: Ragnarok constrói em Jojo Rabbit um brilhante estudo da perversa influência nazista em mentes facilmente manipuláveis

Por João Paulo Barreto

Em um equilíbrio preciso entre comédia satírica, drama e reflexão social, o roteirista (indicado ao Oscar por esse trabalho) e diretor Taika Waititi coloca sua adaptação do livro de Christine Leunens, Caging Skies (ainda sem tradução no Brasil), como um pontual alerta para a (des)construção manipuladora de caráter e a alienação de mentes em formação através da propaganda ideológica fascista visando a construção de um pretenso herói.

Tal “herói” é o ídolo do pequeno Johannes Betzler, o Jojo Rabbit do título. Na imaginação fértil do pequeno Jojo (o estreante Roman Griffin Davis), o dito herói se torna seu melhor amigo, alguém que reflete seus medos e conforta suas inseguranças. Na imagem do garoto que levanta todos os dias diante de um pôster de Adolf Hitler na parede, quem surge como esse amigo imaginário é o próprio tirano nazista, a quem Jojo chama pelo primeiro nome, Adolf. Nesse olhar infantil perante o chefe do terceiro reich, um reflexo exato da maneira como muitos supostos ídolos são enxergados por aqueles que lhes seguem cegamente. E o que o filme de Waititi faz de maneira notável com esse uso do olhar infantil em tal construção da figura de um pretenso ídolo é refletir neste mesmo olhar toda a manipulação ideológica de um povo.

Sam Rockwell, Scarlett Johansson e Roman Griffin Davis: perdidos na Alemanha nazista

DILEMA

Jojo Rabbit inicia com imagens da euforia do povo alemão nos anos 1930 diante da figura de Hitler. Ao irônico som de Komm Gib Mir Deine Hand, versão alemã que os Beatles gravaram para seu hit I Wanna Hold Your Hand, uma amostra de como tal propaganda política criava essa tal euforia diante um patriotismo nocivo e um ufanismo manipulador. A mídia constrói ídolos para o bem e para o mal, é o que se conclui ao escutar a canção da banda inglesa enquanto o pequeno Jojo, na corrida pelas ruas da pequena cidade alemã, se convence de seu potencial a caminho do acampamento para jovens nazistas.

Aqui,há um claro dilema que o filme oferece à sua audiência. Tal dilema, inicialmente contraditório, logo se esvai diante da compreensão que temos da mensagem que o cineasta e ator Taika Waititi almeja trazer. É possível, uma obra de cinema, cujo alcance é tão massivo e popular, suavizar a imagem de um genocida como Adolf Hitler? (E observar o próprio diretor assumir o personagem denota bem sua coragem de encarar a discussão plantada).  

O diretor Taika Waititi encarna o amigo imaginário de Jojo na figura de Hitler

Convém analisar, nesse processo, que aquela figura é fruto da imaginação de uma criança dentro da sua já manipulada mente. Alguém cujos ídolos lhe foram plantados por uma maquina ideológica e midiática. E isso em um período no qual o alcance de tal máquina se restringia a poucas vias de divulgação, mas cuja força era tão impressionantemente massiva quanto a das fake news digitais dos anos 2010, capazes de vencer eleições e arrasar vidas. Assim, tal “suavização” restringe-se à mente de uma criança que, aos poucos, começa a perceber que as ideias oriundas de tal influência não condizem com a sua real natureza humana.

Tal reflexão acerca do modo como um garoto imagina Hitler, inclusive, nos permite um vislumbre de como adultos, em suas mentes não tão ingênuas, mas, ainda assim, tão ignorantes quanto, enxergam aquele e, atualmente, outros ditadores.

RIMAS DOLOROSAS

Na figura da mãe de Jojo, Scarlett Johansson (indicada ao Oscar pelo papel) interpreta Rosie, uma rebelde contra a guerra que se disfarça de simples dona de casa cujo marido luta no front italiano. Os conflitos entre ela e seu filho, cuja doutrinação nazista escapou de seu controle (“Ele demorou três semanas para superar o fato do avô não ser loiro”, afirma ela em ótimo timing cômico) demonstram o poder de uma propaganda que supera até mesmo a influência familiar. No entanto, em um regime assassino, que elimina qualquer voz dissonante, resta a ela, em um ato de proteção, apenas aceitar o comportamento do filho e torcer para que a maturidade o encontre.

A dolorosa pista dos sapatos de Rosie a surgir como uma dilacerante recompensa

A relação entre ambos, entretanto, é um dos pontos altos da obra, como o diretor Waititi desenhando belas rimas visuais, como, por exemplo, os pijamas idênticos, algo que reflete, ainda, um pouco da ligação tenra entre os dois, sentimento que resiste ao ódio plantado pela influência nazista. Ainda nesse aspecto das rimas, há, claro, os sapatos de Rosie. Constantemente destacados em alguns momentos do filme, tais enquadramentos servem como uma pista cuja recompensa ao final servirá para um doloroso ponto de fissura na tal maturidade amarga e forçada para a vida do pequeno Jojo.

“Não é um bom momento para ser um nazista”, afirma o carente melhor amigo de Jojo, o fofucho Yorki. Essa frase, mesmo que proferida por um personagem tão adorável, é um pontuar do roteiro de Waititi para uma, infelizmente, ainda necessária afirmação. É preciso não esquecer jamais o que foi o movimento nazista alemão durante a Segunda Guerra, pois, só assim, ele não poderá se repetir. Mesmo que nazistas e pretensos “secretários da Cultura” utilizem discursos parafraseados da propaganda fascista alemã como meio de divulgação de sua deturpada ideologia.

Citando o cineasta mineiro Affonso Uchoa no caso acima: “Quem nasceu para camundongo, nunca chega a ratazana”. A ratazana manipuladora e de ideais fascistas ainda governará por mais três anos, infelizmente.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 06/02/2020

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Mostra Tiradentes 2020 - Entrevista Glenda Nicácio


“Existir é o que impulsiona tudo para essas mulheres negras”

A diretora Glenda Nicácio durante debate na Mostra Tiradentes 2020. Foto: Netun Lima

Por João Paulo Barreto

Na 23ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, que termina hoje, um dos momentos de maior impacto emocional foi a exibição de Até o Fim, novo filme dirigido pela dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa. Após já terem passado pela Mostra mineira com seus dois longas metragens anteriores, Café com Canela em 2018, e, no ano passado, com Ilha,este terceiro trabalho da dupla trouxe momentos de muita emoção na sessão que aconteceu nesta edição de Tiradentes.

Aplaudido de pé e ovacionado durante todos os seus créditos finais, e com a presença da cineasta Glenda Nicácio e das atrizes Arlete Dias e Maíra Azevedo na primeira fileira do Cine Tenda, na Cidade Histórica mineira, a sessão de Até o Fim representou um dos pontos altos da Mostra. Em um filme cujas dores de quatro irmãs, quatro mulheres negras, são levadas à tona em um crescente gradativo e catártico de emoção e entrega, a reflexão que a obra deixa para o público em pouco mais de 90 minutos de projeção é a dessa sensação de, apesar de um passado doloroso, a compreensão e respeito por essa dor alheia é o único caminho para um equilíbrio tenro.

Em sua cena inicial, quando Geralda, personagem de Wall Diaz, vasculha o depósito de seu restaurante e encontra uma desagradável surpresa entre os objetos, uma eficiente metáfora para o vasculhar de suas próprias memórias é feita. Assim, percebemos que as (re)descobertas daquelas lembranças e o encarar desse doloroso presente que carece de uma redenção é o que a move e às suas irmãs. No sucesso profissional de Bel (Maíra Azevedo), alcançado a duras penas e salientado em uma pungente fala; nas dores das mágoas familiares de Rose (Arlete Dias) e na afirmação humana e, sobretudo, feminina de Vilmar (Jenny Muller), uma eficiente reflexão sobre a realidade daquelas quatro mulheres. Algo que reflete a situação de muitas outras e a necessidade de fazer a audiência pensar e agir acerca disso.

Sobre Até o Fim, o Jornal A Tarde conversou com Glenda Nicácio durante a cobertura da Mostra Tiradentes.

A diretora ao lado das atrizes Arlete Dias e Maíra Azevedo. Foto: Netun Lima
Há uma construção gradativa, como em ondas, dos dramas de cada uma das mulheres presentes em cena. A gente vai conhecendo cada dor, cada mágoa, cada ponto do passado que as incomodam e precisa ser posto para fora. Como foi construir esse crescente?
O roteiro de Até O Fim, escrito pelo Ary Rosa, propunha já uma forma bem destemida de trabalhar com os diálogos, tendo a oralidade como o elemento mobilizador da história. Todas as revelações se desenrolam pela palavra, exercitando não só o poder de criação de cada leitor/espectador, mas, também, a capacidade de ouvir, uma vez que para imaginar é preciso estar com olhos e ouvidos abertos. As falas foram tecidas e entrosadas numa espiral que amarra a ação do tempo agora com a evocação da memória narrada, apostando nos tons, cores e sons da palavra contada - o roteiro só se completa quando é dito. Por isso foi tão importante encontrar com as atrizes para leituras e discussão do texto, já que, para nós, as falas vão se encaixando e se moldando dependendo sempre de quem as fala. Cada atriz trouxe a sua tonalidade para as personagens e a sua dramaturgia, propondo alterações no texto, ampliado as possibilidades da encenação.

Como diretora, as nuances das personalidades e detalhes na atuação de cada atriz foram trazidas em algum processo especial de direção? Como foi chegar a esse equilíbrio entre quatro protagonistas?
Até o Fim é um filme que vem muito de encontro com o agora. Ele busca isso enquanto estética, enquanto composição. Este que é um agora fragmentado. Um agora em que todas as coisas acontecem, ao que parece, juntas, diante de tantos pontos de vistas. Há os pontos de uma, duas, três, quatro mulheres. Quatro pontos de vistas diferentes quando a mesa está completa na presença das protagonistas. E nesse sentido tem essa porção do imprevisível. A gente tinha isso bem definido enquanto conceito. De buscar uma imagem e, ao mesmo tempo, tentar não aprisionar. Não aprisionar a encenação. E por isso era tão importante para a gente ser guiado pelo corpo das atrizes, pela fala delas, pela forma com que elas se moviam no espaço. Espaço do som, espaço da câmera. Estão todos atravessados pela escolha das atrizes em performar.


Jenny Muller em cena de Até o Fim
A sinergia entre elas é realmente palpável.
Acredito que muito da sinergia das atrizes vem por conta de três delas, que são a Arlete Dias, a Maíra Azevedo e a Wall Diaz, serem da mesma família. Elas têm esse laço familiar as unindo de fato. A Arlete é uma atriz que trabalhou com a gente desde o Café com Canela, trabalhou, também, em Ilha. Aí a gente foi se aproximando, se tornando amigo. Ela abriu a porta da casa dela para a gente, conhecemos a sua família, que tem a oralidade, que conjuga a oralidade de uma forma muito criativa, engraçada e inventiva. Quando surgiu essa coisa do filme, a gente achou que o fato delas já terem uma experiência familiar fosse algo favorável para o filme, para a encenação. Porque esse é um lugar da intimidade, em que você meio que já sabe como a outra pessoa vai reagir. Mais ou menos como a outra pessoa pensa. E, ao mesmo tempo, possibilita mais a invenção. A Jenny Muller, que interpreta a Vilmar, é a única que não fazia parte da família Dias, que não tinha esse laço. Acho que isso foi muito produtivo para a narrativa. Porque, de certa forma, isso está incorporado na encenação de Vilmar. Porque ela é essa mulher que passa por uma transformação e que, de todas as irmãs, é a mais distante. E eu acredito que isso se impregna de alguma forma durante o set, durante a gravação.

Ainda acerca desse processo de direção dividido entre você e Ary, este é o terceiro longa metragem com as suas assinaturas. Após Café com Canela e Ilha, encontrar em Até o Fim uma direção mais intimista de cinema, com basicamente um único cenário e um longo diálogo imersivo das personagens foi uma escolha que surgiu em que ponto?
Surgiu sobretudo pela necessidade de produzir um longa metragem de baixíssimo orçamento, que pudesse ser realizado com um valor mínimo e a partir da verba da própria produtora, ou seja: orçamento mínimo, hiper reduzido. Nos nossos filmes, o processo de criação está trançado ao desenho de produção, pois entendemos que cada filme exige uma estratégia específica, e ela molda diretamente a forma do filme. Narrativa e estética estão diretamente relacionadas com as escolhas de produção.


Arlete Dias e Wall Diaz em cena de Até o Fim
Há nos diálogos algo impactante no que tange à questão da mulher no cinema, na sociedade, no Brasil. Principalmente a questão da presença mulher negra, que é a principal questão abordada em Até o Fim. Quais os principais focos que o filme tinha como meta para trazer à audiência essas imprescindíveis discussões?
Eu tenho uma dificuldade em elencar quais são os principais focos. Porque eu acho que o roteiro do Ary, em Até o Fim, vai na contramão de apontar. Porque, às vezes, apontar tem um pouco essa imagem de encontrar a definição, definir uma coisa, uma assunto, um tema. E eu acho que, nesse sentido, o roteiro, pela própria existência, quando ele elenca quatro mulheres, a vida de quatro mulheres muito diferentes que convivem em uma mesma família, com laços familiares, com uma história familiar, ele propõe um movimento de expansão: não focar para uma só direção, mas possibilitar um panorama dentro de uma paisagem. Por isso que eu acho que tem uma riqueza em cada personagem. Por isso que é tão importante, é tão gostoso, quando as quatro personagens chegam. E tenho a impressão que nós temos ali uma coisa que a gente sempre conversa: o filme parece que só se realiza quando chegam as quatro. Parece que enquanto Vilmar não chega e começa a falar sobre as questões dela, não se tem esse todo da família, essa compreensão do todo que é a família. Eu gosto de pensar assim, quando eu olho para essas personagens, que a existência delas é o que impulsiona a trama e a grandiosidade de toda delas para acontecer. Toda a sensibilidade delas de aflorar, de vir à tona. A existência já é muito... existir já é muito... (pausa reflexiva). Existir é o que impulsiona tudo para essas mulheres negras.

O jornalista viajou a Tiradentes a convite da Universo Produção.

*Entrevista originalmente publicada no Jornal A Tarde de 01/02/2020