quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Você Não Estava Aqui


Por esse pão pra comer


Você Não Estava Aqui, de Ken Loach, traz o registro de uma realidade social que nos espelha como reféns do capitalismo e do trabalho como opressor de vidas e mentes

Por João Paulo Barreto

Na carreira do cineasta britânico Ken Loach, a reflexão voltada para o esmagamento do capitalismo perante a vida das pessoas é algo notório. Em seus filmes, uma imersão da audiência dentro do contexto realista social da Inglaterra, e, por identificação, de boa parte do mundo, é inevitável. Desde o começo de sua longa trajetória como diretor de ficções e de documentários para TV e cinema, Loach, hoje com 83 anos, buscou trazer para seu espectador um pensar cinematográfico para além do puro entretenimento, usando suas narrativas como uma oportunidade do público adentrar em textos reflexivos e calcados em situações reais.

Em um ano como o de 2019, onde o Oscar e Hollywood se renderam a Parasita, uma instigante análise da natureza de classes, uma obra como Você Não Estava Aqui delineia a noção de que essa estrada que hoje o brilhante cineasta sul-coreano Bong Joo Ho percorre foi pavimentada pelo veterano Ken Loach, um diretor que nunca foi hipnotizado pelo chamado hollywoodiano. Seus filmes acerca de uma realidade especificamente britânica, mas com aplicações mundiais de certa forma não traduzíveis para plateias estadunidenses, há tempos se apresentam como esse estudo de classe proposto por Bong  em sua obra prima.

Um exemplo, inclusive, de tal impacto da filmografia do cineasta nascido no Reino Unido é a notória mudança da legislação britânica no que tange às obrigações do país perante sua população de rua após a comoção causada por Cathy Come Home, episódio televisivo da BBC que foi ao ar em 1966, escrito e dirigido por Loach. E isso em seu início na profissão de diretor.

Ken Loach no set de Você Não Estava Aqui

POR ESSE CHÃO PRA DORMIR

No decorrer desses mais de cinquenta anos de cinema e TV, ele continuou a oferecer à sua audiência maneiras de percebermos para além dos próprios umbigos. Seja em temas como o preconceito em relacionamentos entre pessoas de etnias diferentes (Apenas um Beijo), relacionamentos em uma superação da vida sob o julgo do trabalho e sua ausência (Meu Nome é Joe) e, mais recentemente, com uma de suas mais impactantes obras a abordar a crueldade do estado e sua burocracia que, junto com o capitalismo brutal, esmaga cidadãos: Eu, Daniel Blake, filme de 2016 que ganhou a Palma de Ouro em Cannes. Na obra, uma visita ao inferno da “vida” após décadas de labor, quando o personagem título, um idoso que tem sua pensão da aposentadoria colocada em risco pela burocracia britânica, tenta não sucumbir àquele purgatório social.

Mantendo o mesmo registro quase documental e de proximidade realista na rotina e interações de seus personagens, em Você Não Estava Aqui, o que temos, dentro de uma imaginação do espectador familiarizado com a filmografia de Loach, é um registro da juventude de alguém como Daniel Blake, quando as forças dos trinta e poucos anos ainda possui vigor e os sonhos ainda existem no seu horizonte. Força esta que, aos poucos, se esvai.

Ricky (Kris Hitchen) em momento de decisão quanto a gastar dinheiro que não tem

Esforçando-se para manter sua família alimentada e abrigada, Ricky Turner consegue um trabalho como entregador em uma transportadora. Em sua jornada de 14 horas diárias, mantém um apertado cronograma no qual qualquer atraso ou necessidade de se ausentar significam multas que ele tem que pagar do próprio bolso. Em um inútil orgulho, afirma na entrevista que nunca deu entrada em seguro desemprego. “Prefiro morrer antes”, uma frase que delineia a mentalidade posta numa coleira social estupidamente orgulhosa e submissa. Lembra muito o personagem do cavalo, no clássico A Revolução dos Bichos, de George Orwell, outro britânico a perceber já há muito tempo como essa coleira funciona.

POR ME DEIXAR RESPIRAR

Sua esposa, Abbie, que trabalha como cuidadora de idosos, tem, também, uma extenuante rotina em visitas a casas de pessoas solitárias que, literalmente, precisam de sua presença para sobreviver. Mantendo um equilíbrio emocional constante (algo imprescindível para seu emprego), Abbie ainda lida com o filho adolescente rebelde e com a filha precocemente abalada pela maturidade que chega. E o faz sem a armadilha fácil da hostilidade autoritária e buscando sempre um diálogo com ambos. Nesse quadro, há a já clichê e injusta imagem da mulher colocada como o bastião do equilíbrio emocional em um relacionamento. Porém, tal impressão fica para trás quando, no ápice de sua frustração e pressão psicológica sofrida diante das diversas situações que os problemas familiares lhe trazem, Abbie, como qualquer ser humano, alcança seu limite.

Abbie Turner (Debbie Honeywood) em sua rotina de cuidadora de idosos

Analisando o contexto de um ambiente familiar em dificuldades financeiras, Você Não Estava Aqui (em versão portuguesa, o Sorry, we missed you dos cartões referenciando uma entrega não realizada), com seu título a criar uma eficiente metáfora entre a necessidade do trabalho na vida de Ricky e uma relação da ausência justificada do pai nos problemas de sua família, o filme de Ken Loach, com seu poderoso e impressionante desfecho, nos dá muito a refletir sobre a opressão que abraça a quase todos no mundo.

O termo “quase”, aqui, refere-se àqueles a quem tal opressão serve justamente como ferramenta de sobrevivência no topo dessa pirâmide social. E de um Estado conivente com tal opressão que, de modo direto, o permite surfar e se perpetuar nesse status que alimenta poucos, mas que usa a força de muitos para se manter como está. E muitos aqui embaixo são obrigados a dizer “por me deixar existir, Deus lhe pague”.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 27/02/2020


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