sábado, 1 de fevereiro de 2020

Mostra Tiradentes 2020 - Entrevista Glenda Nicácio


“Existir é o que impulsiona tudo para essas mulheres negras”

A diretora Glenda Nicácio durante debate na Mostra Tiradentes 2020. Foto: Netun Lima

Por João Paulo Barreto

Na 23ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, que termina hoje, um dos momentos de maior impacto emocional foi a exibição de Até o Fim, novo filme dirigido pela dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa. Após já terem passado pela Mostra mineira com seus dois longas metragens anteriores, Café com Canela em 2018, e, no ano passado, com Ilha,este terceiro trabalho da dupla trouxe momentos de muita emoção na sessão que aconteceu nesta edição de Tiradentes.

Aplaudido de pé e ovacionado durante todos os seus créditos finais, e com a presença da cineasta Glenda Nicácio e das atrizes Arlete Dias e Maíra Azevedo na primeira fileira do Cine Tenda, na Cidade Histórica mineira, a sessão de Até o Fim representou um dos pontos altos da Mostra. Em um filme cujas dores de quatro irmãs, quatro mulheres negras, são levadas à tona em um crescente gradativo e catártico de emoção e entrega, a reflexão que a obra deixa para o público em pouco mais de 90 minutos de projeção é a dessa sensação de, apesar de um passado doloroso, a compreensão e respeito por essa dor alheia é o único caminho para um equilíbrio tenro.

Em sua cena inicial, quando Geralda, personagem de Wall Diaz, vasculha o depósito de seu restaurante e encontra uma desagradável surpresa entre os objetos, uma eficiente metáfora para o vasculhar de suas próprias memórias é feita. Assim, percebemos que as (re)descobertas daquelas lembranças e o encarar desse doloroso presente que carece de uma redenção é o que a move e às suas irmãs. No sucesso profissional de Bel (Maíra Azevedo), alcançado a duras penas e salientado em uma pungente fala; nas dores das mágoas familiares de Rose (Arlete Dias) e na afirmação humana e, sobretudo, feminina de Vilmar (Jenny Muller), uma eficiente reflexão sobre a realidade daquelas quatro mulheres. Algo que reflete a situação de muitas outras e a necessidade de fazer a audiência pensar e agir acerca disso.

Sobre Até o Fim, o Jornal A Tarde conversou com Glenda Nicácio durante a cobertura da Mostra Tiradentes.

A diretora ao lado das atrizes Arlete Dias e Maíra Azevedo. Foto: Netun Lima
Há uma construção gradativa, como em ondas, dos dramas de cada uma das mulheres presentes em cena. A gente vai conhecendo cada dor, cada mágoa, cada ponto do passado que as incomodam e precisa ser posto para fora. Como foi construir esse crescente?
O roteiro de Até O Fim, escrito pelo Ary Rosa, propunha já uma forma bem destemida de trabalhar com os diálogos, tendo a oralidade como o elemento mobilizador da história. Todas as revelações se desenrolam pela palavra, exercitando não só o poder de criação de cada leitor/espectador, mas, também, a capacidade de ouvir, uma vez que para imaginar é preciso estar com olhos e ouvidos abertos. As falas foram tecidas e entrosadas numa espiral que amarra a ação do tempo agora com a evocação da memória narrada, apostando nos tons, cores e sons da palavra contada - o roteiro só se completa quando é dito. Por isso foi tão importante encontrar com as atrizes para leituras e discussão do texto, já que, para nós, as falas vão se encaixando e se moldando dependendo sempre de quem as fala. Cada atriz trouxe a sua tonalidade para as personagens e a sua dramaturgia, propondo alterações no texto, ampliado as possibilidades da encenação.

Como diretora, as nuances das personalidades e detalhes na atuação de cada atriz foram trazidas em algum processo especial de direção? Como foi chegar a esse equilíbrio entre quatro protagonistas?
Até o Fim é um filme que vem muito de encontro com o agora. Ele busca isso enquanto estética, enquanto composição. Este que é um agora fragmentado. Um agora em que todas as coisas acontecem, ao que parece, juntas, diante de tantos pontos de vistas. Há os pontos de uma, duas, três, quatro mulheres. Quatro pontos de vistas diferentes quando a mesa está completa na presença das protagonistas. E nesse sentido tem essa porção do imprevisível. A gente tinha isso bem definido enquanto conceito. De buscar uma imagem e, ao mesmo tempo, tentar não aprisionar. Não aprisionar a encenação. E por isso era tão importante para a gente ser guiado pelo corpo das atrizes, pela fala delas, pela forma com que elas se moviam no espaço. Espaço do som, espaço da câmera. Estão todos atravessados pela escolha das atrizes em performar.


Jenny Muller em cena de Até o Fim
A sinergia entre elas é realmente palpável.
Acredito que muito da sinergia das atrizes vem por conta de três delas, que são a Arlete Dias, a Maíra Azevedo e a Wall Diaz, serem da mesma família. Elas têm esse laço familiar as unindo de fato. A Arlete é uma atriz que trabalhou com a gente desde o Café com Canela, trabalhou, também, em Ilha. Aí a gente foi se aproximando, se tornando amigo. Ela abriu a porta da casa dela para a gente, conhecemos a sua família, que tem a oralidade, que conjuga a oralidade de uma forma muito criativa, engraçada e inventiva. Quando surgiu essa coisa do filme, a gente achou que o fato delas já terem uma experiência familiar fosse algo favorável para o filme, para a encenação. Porque esse é um lugar da intimidade, em que você meio que já sabe como a outra pessoa vai reagir. Mais ou menos como a outra pessoa pensa. E, ao mesmo tempo, possibilita mais a invenção. A Jenny Muller, que interpreta a Vilmar, é a única que não fazia parte da família Dias, que não tinha esse laço. Acho que isso foi muito produtivo para a narrativa. Porque, de certa forma, isso está incorporado na encenação de Vilmar. Porque ela é essa mulher que passa por uma transformação e que, de todas as irmãs, é a mais distante. E eu acredito que isso se impregna de alguma forma durante o set, durante a gravação.

Ainda acerca desse processo de direção dividido entre você e Ary, este é o terceiro longa metragem com as suas assinaturas. Após Café com Canela e Ilha, encontrar em Até o Fim uma direção mais intimista de cinema, com basicamente um único cenário e um longo diálogo imersivo das personagens foi uma escolha que surgiu em que ponto?
Surgiu sobretudo pela necessidade de produzir um longa metragem de baixíssimo orçamento, que pudesse ser realizado com um valor mínimo e a partir da verba da própria produtora, ou seja: orçamento mínimo, hiper reduzido. Nos nossos filmes, o processo de criação está trançado ao desenho de produção, pois entendemos que cada filme exige uma estratégia específica, e ela molda diretamente a forma do filme. Narrativa e estética estão diretamente relacionadas com as escolhas de produção.


Arlete Dias e Wall Diaz em cena de Até o Fim
Há nos diálogos algo impactante no que tange à questão da mulher no cinema, na sociedade, no Brasil. Principalmente a questão da presença mulher negra, que é a principal questão abordada em Até o Fim. Quais os principais focos que o filme tinha como meta para trazer à audiência essas imprescindíveis discussões?
Eu tenho uma dificuldade em elencar quais são os principais focos. Porque eu acho que o roteiro do Ary, em Até o Fim, vai na contramão de apontar. Porque, às vezes, apontar tem um pouco essa imagem de encontrar a definição, definir uma coisa, uma assunto, um tema. E eu acho que, nesse sentido, o roteiro, pela própria existência, quando ele elenca quatro mulheres, a vida de quatro mulheres muito diferentes que convivem em uma mesma família, com laços familiares, com uma história familiar, ele propõe um movimento de expansão: não focar para uma só direção, mas possibilitar um panorama dentro de uma paisagem. Por isso que eu acho que tem uma riqueza em cada personagem. Por isso que é tão importante, é tão gostoso, quando as quatro personagens chegam. E tenho a impressão que nós temos ali uma coisa que a gente sempre conversa: o filme parece que só se realiza quando chegam as quatro. Parece que enquanto Vilmar não chega e começa a falar sobre as questões dela, não se tem esse todo da família, essa compreensão do todo que é a família. Eu gosto de pensar assim, quando eu olho para essas personagens, que a existência delas é o que impulsiona a trama e a grandiosidade de toda delas para acontecer. Toda a sensibilidade delas de aflorar, de vir à tona. A existência já é muito... existir já é muito... (pausa reflexiva). Existir é o que impulsiona tudo para essas mulheres negras.

O jornalista viajou a Tiradentes a convite da Universo Produção.

*Entrevista originalmente publicada no Jornal A Tarde de 01/02/2020









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