sábado, 29 de fevereiro de 2020

Hunters


Caçadores Ingloriosos 


Com o lendário Al Pacino liderando caçadores de nazistas, Hunters, série da Amazon Prime Vídeo, expõe um mal da extrema-direita que, infelizmente, ainda tenta ressurgir

Por João Paulo Barreto

Logo no segundo episódio de Hunters (do inglês, Caçadores), nova série do canal streaming Amazon Prime Vídeo, há uma amistosa conversa entre Meyer Offerman (Al Pacino) e uma “promotora de encontros” (matchmaker, no original) que ajuda o milionário não somente a montar sua equipe de caçadores de nazistas, como, também, tem em suas atribuições unir casais judeus no intuito de diminuir o impacto causado pelo genocídio em massa que aquele povo sofreu na Segunda Guerra Mundial.

O ano em questão é 1977, apenas trinta e duas primaveras desde que as duas bombas atômicas lançadas pelos EUA no Japão encerraram de modo monstruoso o conflito bélico. Em tal conversa, a simpática senhora comemora as uniões que promoveu em seus anos de experiência e cita um número (pouco mais de seiscentos) de pessoas que nasceram desde que iniciou aquela sua missão. “Mas ainda faltam milhões”, ela lamenta para logo depois deixar o otimismo voltar ao dizer que “ainda há tempo”.

Al Pacino: retorno à TV após 17 anos desde 2003 com Angels in America

Para além do catártico modo de conceder à sua audiência o mesmo regozijo que Quentin Tarantino concedeu em sua obra prima de 2009, Bastardos Inglórios, a série em dez episódios  escrita pelo estreante David Weil e com produção executiva de Jordan Peele (Nós e Corra!), apesar de sua premissa de vingança contra os ratos nazistas em um destaque um tanto óbvio de se observar, vai além disso justamente por denotar em sua roupagem o alerta denunciatório de algo que nunca deve ser esquecido. Principalmente em um momento no qual forças da extrema-direita tentam levantar questionamentos tendenciosos quanto à veracidade do Holocausto e busquem rotular desonestamente como meio de ascensão política o nazismo como sendo um movimento de esquerda.

CULTURA POP VS BRUTAL REALIDADE

No formato citado inicialmente, dentro de uma roupagem pop que referencia seu período temporal da segunda metade dos anos 1970, Hunters vai mudando de tom gradativamente no decorrer de seus episódios. Quando conhecemos no seu segundo capítulo todos os integrantes do grupo de caçadores liderados por Pacino, cada um deles é apresentado dentro de vinhetas que remetem a, por exemplo, filmes da Blaxploitation, a seriados como Agente 86, a longas de guerra como Apocalypse Now, tudo em um conceito de resgate da época dentro do cinema e da cultura pop oriunda dos quadrinhos. Algo que contrasta claramente com o peso do tema central de sua premissa.

O grupo de Caçadores se alinha para definir estratégias

Tem-se a impressão de se buscar inserir uma leveza para um assunto denso e sério de se tratar, como campos de concentração e a ainda existência de membros do alto escalão terceiro reich em solo estadunidense trinta anos após a queda de Hitler. Mas tal impressão de frivolidade que se confunde com leveza, a qual se assiste com um riso de dentes trincados, felizmente, vai ficando para trás à medida que se mergulha naquela trama densa na qual Hunters apresenta para sua audiência o peso de sua narrativa.

RECRIAÇÃO FRÍVOLA?

Na recriação dos horrores acontecidos nos campos de concentração, a série parece se perder um pouco em uma tentativa fantasiosa de chocar, como ao inserir um jogo de xadrez humano, no qual prisioneiros eram obrigados a atuar como peças de um tabuleiro e a matar seus “oponentes” (algo de inserção justificada talvez pela rima em vinheta de abertura).

Porém, há uma responsabilidade em qualquer peça de ficção dentro de uma proposta de representação da monstruosidade dos campos de concentração de trazer uma fidelidade denunciatória do que houve. Ao se permitir uma liberdade dramática como essa, Hunters acaba por diminuir a seriedade do que aconteceu nos campos e, por consequência, torna frívolo seu apelo à reflexão em uma peça de entretenimento. Por isso, é com alívio que se percebe a citada mudança de tom que acontece nos episódios seguintes, nos quais a caça aos nazistas ganha maior destaque e os flashbacks dos campos, uma abordagem mais fidedigna e calcada no real.

A cena do xadrez humano: noção de brutalidade banalizada?

ECOS EM 2020

Na história do garoto nova-iorquino judeu que, após perder a avó (uma sobrevivente dos campos) em um assassinato com rastros antissemitas, é recrutado para o grupo de caçadores criado pelo personagem de Pacino, Hunters segue em uma estrutura que assusta por sua capacidade de se assemelhar com um possível real. Com a ideia proposta de um governo como o estadunidense a esconder em seu solo e recrutar as mentes pensantes do nazismo para seu próprio desenvolvimento científico e econômico, a série de Weil, mesmo se passando em 1977, consegue referenciar um século XXI sombrio.

O mesmo século que tem nas ruas pessoas a usar abertamente suásticas em posturas desafiadoras e governos supostamente democráticos que têm em seus discursos argumentos antissemitas, racistas, homofóbicos, misóginos e de intolerância religiosa. A máxima que afirma que quem não conhece o passado está fadado a repetir os mesmos erros no futuro se faz presente, infelizmente.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 01/03/2020




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