sábado, 25 de abril de 2020

Moraes Moreira e os Filhos de João | Papo com Henrique Dantas


“Moraes Moreira é todo um país” 

Em 2009, Henrique Dantas e Moraes Moreira no Festival de Brasília. Foto: Aline Arruda

TRIBUTO No despertar doloroso da perda do cantor, compositor e amigo pessoal, cineasta Henrique Dantas, que levou a história dos Novos Baianos aos cinemas, relembra sua amizade com o poeta

Por João Paulo Barreto

“De alegria cantar, porque sei que a dor não tem lugar permanente no coração de ninguém. De ninguém.” Foi com a citação desse verso de Sempre Cantando, clássico de Moraes Moreira lançado em 1975, que comecei a conversar com o cineasta Henrique Dantas, diretor do filme Filhos de João – O Admirável Mundo Novo Baiano, documentário sobre a banda pilar da Música Popular Brasileira, lançado em 2009 e disponibilizado gratuitamente na plataforma Looke (www.looke.com.br). Com o consolo dessa esperança que a letra traz ao acordar pesaroso da perda de Moraes Moreira, revi o filme de Henrique e conversei com o realizador da obra. Na perda do amigo e nas lembranças da produção que levou onze anos para se completar, entre diversos depoimentos dos integrantes e de pessoas que cercaram aqueles filhos de João, Henrique Dantas tinha em sua voz o pesar recente. No entanto, a lembrança da energia positiva de Moraes levou à frente aquele nosso papo.

“Moraes falou tudo através das músicas dele. Eu estava lendo aqui as nossas mensagens, mas não tive coragem de ouvir os áudios que ele me mandou. Aí me deparei com algo que mostrava muito dessa humildade que ele tinha. Ele me perguntou o que eu achava de Ser Tão, o disco dele. Imagine! (risos) Quem sou eu pra achar alguma coisa sobre o que Moraes compôs. Isso é algo muito doido”, relembra Henrique. Muito dessa generosidade de Moraes fica perceptível no processo de criação de Filhos de João. Inicialmente sem vontade de participar, de falar sobre a sua antiga banda, Moraes acabou sendo convencido por Henrique através de uma identificação mútua entre os dois baianos. Dessa identificação, uma amizade surgiu e Moraes topou participar do documentário. “A utopia dos Novos Baianos é algo que sempre me cativou. Passei muito tempo querendo viver em uma comunidade, do mesmo modo que eles viveram. Quando conheci a sua história, a utopia deles passou a ser a minha utopia, também. É como aquilo que falava o Neruda: quando você escreve uma poesia, ela passa a ser de quem lê”, cita.

Ao lado de Baby Consuelo, ainda nos anos 1970

“SÃO TODOS FILHOS DE JOÃO”

Na criação do documentário, mais de uma década se passou. A cada depoimento captado, uma identidade de um artista que surgiu junto com duas das obras pilares do cinema baiano, Caveira My Friend e Meteorango Kid, que tinham músicas daqueles que viriam a se tornar o fenômeno Os Novos Baianos, foi sendo registrada por Henrique. Libertário e fiel a uma vontade deixar sua marca artística no mundo, Antonio Carlos Moraes Pires contou a Henrique que deixou o emprego que tinha, aos 20 anos de idade, no promissor Banco do Estado da Bahia, porque exigiram que ele deveria cortar o cabelo. “Moraes era corajoso. Pediu demissão do banco naquele momento. Vindo do interior, tendo que pagar pensão pra morar em Salvador, o cara larga uma dessa. Isso porque ele sabia que iria virar um país. Ele tinha certeza disso. Da força dele quanto artista. E eu acho que isso é algo indispensável. E não é a prepotência, não. Mas, sim, a crença calada em seu próprio talento”, define Dantas.

No filme, essa ideia utópica frisada por Henrique é trazida pela vida em conjunto da banda, que, primeiro, morou em um apartamento no Rio de Janeiro, local onde criaram um grande entrosamento. Lá, receberam a visita de João Gilberto que lhes trouxe uma relação mais próxima com o samba. Dessa influência, surgiu Acabou Chorare, álbum que imortalizou a banda. No apadrinhamento de João Gilberto, uma relação de paternidade citada por vários dos entrevistados para o filme, principalmente Tom Zé e o cineasta Orlando Senna. “Havia um problema em usar o nome Os Novos Baianos como título do filme, que iria se chamar Novos Baianos – Retrato de um Brasil Musical. Mas várias pessoas com quem eu conversava diziam deter os direitos do nome. Eu não ia usar, pois ia acabar sendo processado por cinco lados diferentes”, diz, entre sorrisos, Henrique Dantas. Nas falas de Tom Zé e de Orlando Senna, essa relação da banda com João Gilberto se evidencia. “Lembro de comentar na época com o (cineasta) Caio Vecchio ‘olha, rapaz, para mim, ali são todos filhos de João’. E foi quando esse conceito para o nome do filme surgiu”, relembra Dantas.

Poster do filme de Henrique Dantas

UTOPIA E ALEGRIA

No mais recente filme de Henrique Dantas, Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar, exibido ano passado no Festival de Brasília, Moraes Moreira aparece para um depoimento acerca da lenda de Caymmi. “Eu me lembro que falei com ele na ocasião sobre o filme que estou fazendo sobre o cinema udigrudi baiano e disse que ia entrevistá-lo. E a ideia de fazer um filme sobre ele, sobre Moraes, também surgia em nossas conversas. Eu achava que Moares ia ser tão eterno. Juro a você que eu não esperava que ele morresse tão cedo. Dia nenhum. Por nada. Se um dia eu fizer um filme sobre ele, vou transformar Moraes em um país. Porque eu acho que ele deveria ser chamado assim. Deveria haver um país chamado Moraes Moreira”, declara o cineasta.

No último encontro, entrevista para filme sobre Caymmi. Foto: Luciana Queiroz

Através de um artista que nos trouxe tanto, a perda dele em um momento tão triste e sombrio do Brasil não deixa de ser pontuada por Dantas. E seu legado, também. “Moraes é um cara que me deu de presente duas coisas: a utopia dos Novos Baianos e a Alegria como modo de viver. Ele me deu duas coisas fundamentais e que são minhas. E não tem período ruim, não tem período fascista nenhum que tome isso de mim”, finaliza Henrique.

O poeta cumpre sua trajetória com esmero.


* Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 26/04/2020


sábado, 18 de abril de 2020

Brincante - O Filme | Papo com Antonio Nóbrega

Lúdico Necessário 



CINEMA EM CASA Liberado gratuitamente no YouTube, Brincante, filme de 2014 dirigido por Walter Carvalho e com o multiartista Antonio Nóbrega, ganha ressiginificação e traz luz a tempos tão sombrios 

Por João Paulo Barreto

A necessidade do lúdico nunca foi tão essencial. Não como uma simples fuga de uma realidade que parece querer nos estilhaçar psicologicamente dentro dessa apreensão em torno do nosso futuro, afinal, nenhuma fuga é capaz de nos fazer esquecer o que atualmente nos assombra. Mas, sim, como uma espécie de paliativo. Algo que sirva como um breve momento de alivio diante de tantas más notícias e presságios sombrios a nos ameaçar. Foi com essa sensação de leveza momentânea que revisitei, após seis anos, Brincante – o Filme,obra de Walter Carvalho acerca do projeto cultural liderado pelo multiartista Antonio Nóbrega.

E a impressão de adentrar em uma realidade de leveza que nos tira dessa gravidade da atualidade se confirmou em cada um dos breves 90 minutos do filme, que foi disponibilizado gratuitamente no YouTube, no canal do Instituto Brincante, essa semana. Para acesso direto, basta buscar por Brincante – O Filme íntegra.

Antonio Nóbrega em cena de Brincante

OUTROS CONTORNOS

A ressignificação que a obra nos traz seis anos depois de seu lançamento comprova a importância da arte popular em tempos nos quais ela é abertamente negada por aqueles que detêm os mecanismos políticos de propagação cultural. O desânimo nesse sentido e a vontade de mergulhar nesse lúdico vêm forte quando lembramos disso. Quando lembramos que, há poucos anos, havia um Brasil que tinha uma valorização maior destinada ao cinema, à dança, às artes plásticas, ao circo, à música popular, à arte mambembe, ao cordel, à poesia, onde projetos de difusão de tais expressões possuíam um espaço em planejamentos, ao invés de serem esculachados por interesses mesquinhos de projetos pessoais de política. É quando, mesmo sem querer, voltamos ao real.

Tal real, repleto de tempos acelerados, regidos por uma necessidade estranha de constantes conexões virtuais, nos afasta da introspecção necessária à reflexão. “Escutai com silêncio e atenção o momento imortal da criação. É o mundo que recomeça agora”, afirma Tonheta, personagem de Antonio Nóbrega logo nos minutos iniciais de Brincante. É quando saímos da constante pressa desse mundo, no qual telas de celular e metas de “likes” se tornam obsessões. Em Brincante somos levados a um mundo de desaceleração e apreciação. A dança, a música e os sorrisos adentram a grande metrópole, que rima com a simplicidade das pequenas cidades. “As redes sociais tomam um tempo bastante grande nosso. Às vezes desmensurado. E nós ficamos até um pouco atônitos, sem saber como responder a elas. Há momentos em que pensamos em negá-las completamente. Isso ocorre muitas vezes quando estamos sendo excessivamente requisitados,” opina Antonio Nóbrega.

Tal busca por uma menor velocidade no absorver de informações precisa chegar a adultos e crianças. Estas, sim, ainda sem a consciência do que é um tempo menos frenético, capaz de ser encontrado em expressões artísticas, requerem um atenção maior. “A gente quer restituir à criança uma cultura que seja mais compatível com a sua idade física e com a sua idade mental. É provável que o uso do celular traga ganhos em algum sentido. Mas é também muito provável que ele traga perdas. E essa equalização é que consiste na luta que todos nós temos de tentar empreender para ver como colocamos tudo isso nas nossas vidas de uma forma menos agressiva e menos dominadora”, explica Antonio Nóbrega.

A arte como fuga lúdica dentro de uma realidade

PROJETOS BRINCANTES

Além do filme já disponibilizado no canal do Brincante no YouTube, a partir de amanhã, dia 20, e seguindo até o dia 29, sempre às 19h, um total de 40 aulas de música, dança e poesia serão disponibilizadas no mesmo canal. No site do instituto (institutobrincante.org.br), contribuições voluntárias podem ser feitas para ajudar na manutenção do local atualmente fechado por conta da pandemia.

“Nós nos dedicamos principalmente ao ensino da percussão, da música e da dança brasileira. Sobretudo aquelas ligadas ao universo chamado de cultura popular, que é muito rico em representações simbólicas. Matrizes culturais, sejam em relação à música, à dança e à poesia. Vamos aproveitar esse período para mostrar como é que a gente trabalha esse universo. Como é que a gente dinamiza, recria e potencializa. Temos um elenco bastante grande, heterogêneo de professores. E cada um deles vai mostrar um pouco do que faz em sala de aula, as suas atividades com os alunos dentro do Instituto Brincante. Essa é a filosofia desse evento”, pontua Antonio Nóbrega

Em uma atualidade na qual pretensamente poderosos e com exércitos de ignorantes ao seu redor se declaram abertamente contra a cultura e a arte, esse tipo de iniciativa representa um alento para a angústia que se faz presente em uma realidade de incertezas. Principalmente para a identidade cultural do Brasil. “Esses cantos, esses toques e essas danças são as pedras do meu céu e as estrelas do meu chão. Com eles, soletro, penso e esperanço meu sonho humano. Com eles aprendi a amar o meu país e o seu povo”, ouvimos Antonio Nóbrega dizer ao final de Brincante – O Filme. E a vontade de esquecer a realidade que nos cerca só cresce. Mas esquecer não significa abandoná-la. Sigamos resistindo.

*Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, dia 19/04/2020


terça-feira, 14 de abril de 2020

Mídia física vs. streaming

DVDs e blu-rays vivem!

Lançamentos do selo Obras Primas do Cinema


COLECIONISMO Com oficial queda na qualidade de sinal das plataformas de streaming, acesso a filmes através de mídia física, apesar do mercado combalido, ainda é um caminho para alimentar a cinefilia

Por João Paulo Barreto

Dentro das mudanças nos meios de acesso ao cinema em casa, definitivamente a mais impactante negativamente em termos de qualidade de imagem e som se deu com a ascensão do streaming a partir da segunda metade dos anos 2010. Enquanto que nos anos 1990, a migração do VHS para o DVD gerou um aumento impressionante nessa mesma qualidade no consumo de filmes, hoje, com as plataformas digitais, o que temos é uma disparidade. Há, sim, uma oferta imensa de entretenimento entre série e filmes. Mas é tão fácil assim ter acesso a exatamente o que a pessoa deseja assistir? Ou acabamos por nos tornar reféns de algoritmos que constroem um menu de opções ao “nosso gosto”? E na questão do aproveitamento em termos de imagem e som? Com conexões ruins de internet, lentidão no acesso e filmes que simplesmente desaparecem ao capricho das gigantes de streaming, o benefício é tão vantajoso assim em relação aos discos digitais de DVD e blu-ray?

Em tempos urgentes de quarentena por conta da pandemia do COVID-19, plataformas como a Netflix e a Globo Play anunciaram a necessidade de diminuir a sua taxa de bits devido a alta quantidade de pessoas conectadas.  Do mesmo modo, muitos provedores de internet têm sinalizado aos clientes intermitências no sinal. No acesso aos filmes, outro contra: o processo de escolha das obras segue uma demanda imposta pelos próprios canais, que mantêm em seus catálogos apenas filmes com muitos espectadores, podendo torná-los indisponíveis no momento em que decidirem que eles têm poucas visualizações ou apelo. Indo na contramão desse modo de alimentar a cinefilia, o mercado voltado para colecionadores de DVDs e blu-rays no Brasil ainda respira. Selos como Versátil Home Vídeo e Obras Primas do Cinema possuem lançamentos mensais em uma regularidade constante e, o mais importante, clientes fieis que têm na compra e no colecionismo de filmes seu modo de acesso à sétima arte em casa.

Lançamentos do selo Versátil Home Vídeo 

CURADORIA E CUIDADOS

Para Rodrigo Veninno, um dos curadores do selo Obras Primas do Cinema, empresa que mantém uma média de três a cinco lançamentos mensais em boxes de filmes, a escolha do catálogo de obras se baseia em ajudar o espectador a sanar a dificuldade de encontrá-las. Principalmente em tempos de downloads via torrents. “Geralmente, quando eu planejo um lançamento em qualquer linha, seja de um tema ou de um diretor, ator ou atriz, eu me baseio em duas dificuldades do espectador: a de encontrar aquele filme para assistir e a de encontrar uma legenda”, afirma Rodrigo. E complementa com o fato de que o idioma pode ir muito além do inglês. “Claro que não é todo mundo entende o idioma inglês. Mas, é preciso lembrar que há um público que gosta, também, de cinema tcheco, de cinema japonês, por exemplo. A dificuldade nesses casos é ainda pior”, explica.

Diretor da Versátil Home Vídeo, outro selo a se dedicar a lançamentos de filmes voltados para o colecionismo no Brasil, André Melo destaca que a relação do cliente com o produto é algo que traz uma afetividade que nenhum streaming pode suprir. “Quando adquire um box, esse cliente pega a capa, vê em verniz ali aquela imagem selecionada. Lá está escrito o nome do diretor, autor, atriz, ator que ele admira. Ele tem um relacionamento com aquele produto. É uma coisa muito mais afetiva, de se abrir o filme, ter um encarte, ter uma luva toda delicada em volta. E há os cards com imagens de quando aquelas obras foram lançadas no cinema. E isso é uma coisa que você não acha no Google. Você não acha isso facilmente no mercado”, explica.

Celso Menezes, do Blog do JC, e sua coleção

E ainda é importante pontuar que, para além dos longas em imagem e som ideais, na mídia física há um diferencial que nenhum streaming traz. André explica: “Nesse produto, o público encontra making of dos filmes, comentários do diretor, entrevistas do elenco. Isso é uma coisa que a Versátil coloca nos seus lançamentos e tenta cada vez mais manter. Buscamos sempre não fazer um lançamento cru, só com o filme” pontua o diretor da Versátil.

LOJAS VIRTUAIS

Com as até então gigantes do varejo como Livraria Cultura e Saraiva entrando em recuperação judicial, ou outra tradicional revendedora de mídia física como a Lojas Americanas queimando (sem renovar) seus estoques, as lojas on line dos próprios selos têm entrado no jogo da venda direta para o consumidor, sem a necessidade de passar pelos revendedores. “Até 2016, a gente trabalhava com 70% a 80% do foco de nossa receita voltado para as duas livrarias. Após essa crise que começou a afetar ambas, mudamos nosso foco. Fizemos uma aproximação com nosso cliente via redes sociais. E muitos começaram a nos procurar perguntando como adquirir nossos produtos. Hoje, posso dizer que 70% a 80% de nosso faturamento vem de nossa própria loja”, salienta André Melo.

Além de colecionador e dono de um acervo de quase cinco mil filmes, Celso Menezes, é roteirista e colaborador do Blog do JC, um dos maiores sites voltados para informações de blu-rays e DVDs lançados no Brasil e no exterior. Para ele, uma das muitas vantagens da mídia física é o acesso rápido às obras. “O acervo disponível no streaming é limitado. A busca pelos filmes não é tão fácil. Hoje, se você falar que vai assistir a, por exemplo, a filmografia do Hitchcock, vai ser como? Não tem locadoras, você não vai ver na TV aberta ou fechada. Na Netflix, se tiver, vai ser um ou outro. Existe uma demanda. Citei o Hitchcock por ser um grande cineasta, mas existem mais cineastas, existem outros movimentos cinematográficos, e tudo isso não está no streaming. E alguns títulos mais clássicos que havia lá, foram retirados pela Netflix”, ratifica Celso. 

Itamar Castelo e sua coleção
Outro cinéfilo inveterado, Itamar Castelo tem uma coleção com mais de 1500 unidades entre blu-rays e DVDs. Coleciona filmes desde os anos 1990. Hoje, adquire muitos de seus itens via internet. Para ele, “empresas como Versátil e Obra Primas do Cinema têm uma preocupação com a apresentação, a qualidade do produto. Tanto fisicamente como em suas embalagens e cards. Como filmes clássicos, catálogos inéditos, versões remasterizadas e restauradas. Além disso, blu-rays com maior capacidade e qualidade de imagem”, pontua em relação a importância dos selos nacionais para os cinéfilos.


Ainda sobre o streaming, André Melo, do selo Versátil, é enfático. “No Netflix e outras plataformas, é um algoritmo que identifica que você gosta de um tipo de tema e você vai parar com um robô que define o que pode ser que você goste, a questão do conteúdo e onde o mesmo é armazenado. E ali você não vai encontrar nem 1% do que foi feito de audiovisual na História. Acho que nenhuma plataforma tem essa capacidade. Com o DVD, blu-ray e os extras que vêm nas mídias, a experiência se torna muito mais do que apenas consumir um filme”, finaliza.



*Matéria publicada originalmente no Jornal A Tarde, dia 14/04/2020



sexta-feira, 3 de abril de 2020

Isolados, mas com Cultura


Quarentena
com Cinema Baiano

Astrogildo e a Astronave, de Edson Bastos,
é um dos destaques disponíveis 

Com as imprescindíveis medidas de confinamento para evitar uma ainda maior epidemia do COVID 19, uma opção de acesso à cultura vem da recente filmografia baiana disponível on line

Por João Paulo Barreto

Com o necessário fechamento de salas de cinema, teatros, suspensão de shows musicais e outros eventos de entretenimento, o confinamento em lares até que haja um controle mínimo da pandemia do COVID - 19 tem feito as pessoas se voltarem aos filmes disponibilizados em plataformas digitais, bem como, os que ainda mantêm o hábito de consumir filmes em mídia física (o caso deste que vos escreve), os bons e velhos disquinhos de DVD e blu-ray. E, em decorrência da imprescindível necessidade de se ficar em casa, cineastas da Bahia têm liberado seus conteúdos em plataformas digitais, como YouTube, Vimeo, além de canais de streaming, que já exibem as produções feitas aqui no estado.

CURTAS METRAGENS

A produtora Olho de Vidro, por exemplo, liberou on line no Vimeo curtas recentes, como Estela (vimeo.com/238511289), curta de 2017 estrelado por Paula Lice, que, no Panorama Internacional Coisa de Cinema, recebeu menção honrosa por sua atuação. O curta é dirigido por Hilda Lopes Pontes e também teve exibição no II Festival Poe de Cinema Fantástico. Ainda no âmbito do cinema de gênero, A Triste Figura (vimeo.com/255212158), filme de 2018, dirigido por Calebe Lopes, também teve seu link aberto para apreciação on line. Na obra, Carlos Betão vive um pastor evangélico de comportamento nefasto e abusivo. Confrontado por sua filha, vivida por Dora Goritzki, o homem tem um surpreendente encontro com um destino fatídico. Com uma ambientação precisa na criação de uma proposta sobrenatural, o curta é mais um exemplo da evolução do diretor como contador de histórias no cinema fantástico. Por último, O Sorriso de Felícia (vimeo.com/265312447), psicodélico curta dirigido por Klaus Hastenreiter, também teve seu link liberado no Vimeo. Para o cineasta e fundador da Olho de Vidro, “Esse é um momento muito delicado que estamos vivendo e esta é a nossa singela maneira de procurar contribuir com a rotina enclausurada de quem está neste isolamento”

Paula Lice em Estela, de Hilda Lopes Pontes

A Triste Figura, de Calebe Lopes, e O Sorriso de Felícia, de Klaus Hastenreiter

Outra produtora baiana a liberar alguns dos seus trabalhos on line é a Gran Maître Filmes. Os filmes Ele Foge, de Dino Galeazzi e O Vizinho de Frau Kutner, do diretor Marcos Alexandre, ficam disponíveis no canal YouTube da produtora a partir de 08 e 09 de abril, respectivamente. Na obra dirigida por Marcos Alexandre, uma representação da arte da atuação através das lembranças de um ator e seu último papel. Indiretamente, uma coincidente rima com a necessidade atual da clausura se faz valer. Já em Ele foge, Dino Galeazzi, outro representante do cinema de gênero na Bahia, traz um vislumbre de um apocalipse zumbi. Para o fundador da Gran Maître, Marcos Alexandre, a disponibilidade dos filmes possibilitará com que novos públicos possam conhecer mais sobre as nossas histórias e realizações. “É um momento em que grande parte das pessoas estão em sua casa, em quarentena, usufruindo e a procura de conteúdo audiovisual, seja pela internet e/ou streaming. Portanto, vejo que entraremos junto com outros coletivos, produtoras e realizadores para distribuição online de filmes independentes”, afirma. 

Ele Foge, de Dino Lucas Galleazzi

O Vizinho de Frau Kutner, de Marcos Alexandre

A Voo Audiovisual, dos cineastas Edson Bastos e Henrique Filho, também liberou diversas produções no canal YouTube da produtora. Dentre elas, O Filme de Carlinhos, lúdica homenagem ao cinema pelos olhos infantis, e Astrogildo e a Astronave, outro curta a abordar, através da beleza da fantasia, um notório personagem de Ipiaú, terra natal de Edson. Para o diretor e fundador da Voo Audiovisual, a situação, mesmo apresentando aparência de uma ficção científica, tem resultados brutais na realidade. “Nunca imaginamos que isso um dia aconteceria na vida real. Sets de filmagens adiados, telenovelas adiadas, cinemas fechados, projetos parados, eventos adiados, mas tudo isso porque confiamos nas orientações das organizações de saúde como a OMS, estamos vendo o que outros países estão passando e acreditamos que o isolamento é fundamental”, afirma Edson Bastos e salienta: “Já estamos vivendo desemprego no Audiovisual desde que Bolsonaro foi eleito. São muitos projetos parados, sem liberação de recursos, por questões ideológicas do presidente, que não entende nada sobre cultura e audiovisual, e emperra a nossa economia de gerar emprego e renda.”

O  Filme de Carlinhos, de Edson Bastos e Henrique Filho

LONGAS

No âmbito dos longas baianos, um dos destaques são os da produtora Hamaca Filmes, do cineasta Henrique Dantas, que também disponibilizou alguns dos seus trabalhos, como os documentários Sinais de Cinza – A Peleja de Olney Contra o Dragão da Maldade (vimeo.com/133508577) e A Noite Escura da Alma (vimeo.com/134948902). Dentre os curtas, o infantil A Bicicleta do Vovô (vimeo.com/298676827) e o documentário Ser Tão Cinzento (vimeo.com/401492387). 

“Estamos ouvindo nestes tempos recentes essa ladainha deque artistas não servem para nada, que artistas são um câncer para a sociedade. Agora, nesse momento de quarentena, se não existisse arte, estariam todos pirados. Então, a Hamaca Filmes, em tempos de pandemia, onde a Arte ganha novos significados numa sociedade que tentava desmerecê-la, vem a público disponibilizar parte dos seus filmes”, pontua Henrique Dantas e salienta que está fazendo os esforços necessários para disponibilizar o restante das obras. 
                     

Cartazes de dois dos filmes de Henrique Dantas disponibilizados on line na plataforma Vimeo




Outros dois longas baianos disponibilizados on line são Depois da Chuva (vimeo.com/112407880), filme de Cláudio Marques e Marília Hughes, bem como Trampolim do Forte, longa metragem de João Rodrigo Mattos, disponibilizado no YouTube, na página da produtora DocDorma. Em tempos de clausura para nossa própria segurança, esse mergulho na filmografia recente do cinema baiano traz um respiro necessário para a arte. 

Cena de Depois da Chuva, de Cláudio Marques e Marília Hughes 
Cena de Trampolim do Forte, de João Rodrigo Mattos 

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 04/04/2020






quinta-feira, 2 de abril de 2020

Pearl Jam - Gigaton


Pearl Jam e o rock como luto político



Com Gigaton, décimo primeiro álbum de estúdio, banda de Eddie Vedder leva aos fãs uma precisa reflexão da dor do luto e da necessidade de agir em tempos politicamente sombrios

Por João Paulo Barreto

Quando, há quase três anos, Chris Cornell cometeu suicídio, enforcando-se em um quarto de hotel após ceder sua mente torturada a essa maldita doença chamada depressão, não somente um pai, esposo, lenda do rock e dono de uma das vozes mais possantes do grunge nos deixou. Para Eddie Vedder, também um fiel amigo, irmão e companheiro se despedia desse mundo amargurado e sofrível. Tal perda afetou profundamente o vocalista do Pearl Jam. Juntos, no começo dos anos 1990, momento chave tanto para o Pearl Jam quanto para o Soundgarden, os dois criaram o breve, porém pulsante, projeto paralelo Temple of the Dog, algo que os uniria afetivamente para sempre.

Introspectivo, Vedder calou-se diante da tragédia da perda de Cornell e seguiu para sua turnê solo por países europeus. Stone Gossard, Mike McCready, Jeff Ament e Matt Cameron, seus companheiros de palco, de estúdio e de vida, entenderam e respeitaram seu silêncio. Mas, para os fãs, o medo de um fim da banda devido a esse golpe era palpável. O último disco datava de quatro anos antes, e levaria mais três para que um novo trabalho surgisse, cravando o maior hiato sem qualquer lançamento do Pearl Jam desde seu debut: o petardo Ten, há quase trinta anos, em 1991.    

Mike, Matt, Eddie, Jeff e Stone: quase 30 anos de banda

CONTRA TRUMP

Sempre ativistas politicamente, os integrantes da banda começaram a se concentrar no novo trabalho em tempos ainda mais tristes do que os do começo do século XXI, quando Riot Act, disco de 2002, fora lançado como um míssil direcionado à gestão de George W. Bush. Aqui, tal míssil é substituído pelo resultado de um Gigaton, explosivo nome que batiza o álbum recém lançado. E tal explosão, claro, é direcionada para a estupidez representada pelo atual presidente estadunidense. Em Quick Escape, por exemplo, a tal fuga repentina do título narra a busca por algum lugar que “Trump não tenha fodido ainda”. Em um crescente inicial que remete a Kashmir, clássico do Led Zeppelin, Vedder, em parceria com o baixista Jeff Ament, em uma linha exata do instrumento, canta sobre um mundo cujas fronteiras ficam além da prepotência e egoísmo do atual cheetos lua que ocupa a Casa Branca.

Antes disso, em sua evolutiva faixa de abertura na constante batida das baquetas de Matt Cameron, Vedder traz a denúncia de um ensurdecedor silêncio que a inércia dos que aceitaram o fúnebre futuro do mundo pontua de maneira torturante. “Enquanto o silêncio se torna mais e mais alto, meu coração passa a martelar/E os ventrículos bombeiam em horas extras/Nossas liberdades cheias com o risco de serem circunscritas/Uma vida interrompida e circuncidada ”. O homem por trás de clássicos como Do the Evolution e Given to Fly traz a necessidade de acordar para essa reflexão.

Mas este silêncio ensurdecedor que advém da inércia logo cai por terra quando, em Seven O’Clock, Vedder canta sobre a urgência que nos persegue. “Não há tempo para depressão ou auto-indulgente hesitação/Essa situação fodida requer todas as mãos à obra”. E nessa avalanche, logo a tal bomba é jogada novamente no salão oval, onde “a merda presidindo na figura de nosso presidente/falando com o próprio espelho, o que ele fala, o que ouve em retorno?” E como amordaçar esse cão sarnento e raivoso é mais do que necessário, Eddie Vedder sentencia e pergunta: “Em uma tragédia de erros, quem será o último a dar risada?” E tudo isso através de uma melodia que embala os ouvidos em uma balada a contar a pesarosa história de nossa tragédia contemporânea.

Chris Cornell e Eddie Vedder no começo dos anos 1990

CORNELL

Ainda sobre o amigo Chris Cornell, pode soar como uma livre interpretação de um ouvinte de longa data da banda, mas, pensar em Cornell e no luto de Vedder ao escutar uma balada bluesy como Comes Then Goes, é inevitável. Aqui, Eddie pergunta: “Onde você esteve? Posso encontrar um vislumbre do meu amigo? Não saberia dizer onde ou quando um de nós deixou o outro para trás”. E, nessa mesma leva reflexiva de perguntas e modos de encontrar um conforto mental para a dor do luto e da comichão advindo do “eu poderia ter feito mais”, ele volta a arguir aquele que parece não estar mais ali: “É você? Aqui eu estou. Intensa lembrança de dor, autonegligenciada de novo./Igual a você, eu a mantenho aqui dentro.” E parece encerrar a conversa com um lamento e uma constatação da dor física e aparentemente irremediável que advém da depressão: “Pensei que você havia encontrado um jogo no qual você pudesse vencer. Ao final, tudo é uma vivissecção”.

AINDA OTIMISTA

Mesmo com sombrias e densas reflexões, Gigaton, dentre as suas doze faixas, é capaz de trazer certo otimismo. E isso distante de qualquer falso discurso de coach. No seu quase fechamento, Retrograde, como uma mescla de desesperança e um aviso para que o futuro não seja perdido por conta da mediocridade, egoísmo e oportunismo dos que atualmente detêm o poder, quase encerra o disco de modo totalmente preciso, porém pessimista como penúltima faixa. “Sete mares se elevam/Futuros para sempre desvanecidos/Sinta o atraso em nosso entorno” canta Vedder em longos vocais que remetem ao seu disco solo, Into the Wild, trilha sonora para o filme homônimo dirigido por Sean Penn há 12 anos.

Tal sensação de que vamos terminar aquela viagem de maneira a perceber que tal atraso oriundo de forças retrogradas são inevitáveis, acaba por ficar para trás no momento em que a proposta de encarar nossos dias como uma fase ruim que superaremos nos atinge positivamente. Esse sentimento nos pega na última faixa, River Cross,mas não sem antes, em sua exata metáfora de passagem de tempo, nos alertar do quão urgente é a necessidade de mudança. “Através de nuvens de tempestades, eles tomaram o palco” lembra Vedder como tal situação tomou conta de nosso presente. E sobre essa desesperança, um otimismo disfarçado diante de tamanhas e densas sombras que se avizinham: “Deixe que seja uma mentira que todos os futuros morrem”.

Esperamos que sim.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 03/04/2020