sexta-feira, 26 de junho de 2020

Selo ELAS | Papo com Helena Ignez, Sofia Federico e Barbara Sturm

Gerações 
Femininas 

Helena Ignez (Foto: Acervo Pessoal) e Sofia Federico (Foto: Marcos Povoas)

Atuando desde 2018 no aumento do potencial artístico e comercial de longas metragens, e oferecendo mentorias profissionais a diretoras de cinema, Selo ELAS seleciona novos filmes baianos de Sofia Federico e Helena Ignez 

Por João Paulo Barreto

Com roteiros finalizados e em fase de captação de recursos, dois filmes baianos de ficção dirigidos por duas representantes de gerações distintas da cinematografia do estado, Sofia Federico e Helena Ignez, estão entre os 14 longas metragens (sendo três deles documentários) selecionados pelo Selo ELAS, iniciativa da ELO Company que traz às cineastas mentorias personalizadas em um programa de incentivo a produção feita por mulheres.

Helena Ignez, veterana atriz e diretora, comemora a marca dos seus 80 anos de idade e 60 de carreira com o projeto Dona Tonha, seu sétimo longa metragem por trás das câmeras. Após o surpreendente documentário Fakir, uma abordagem fascinante de personagens femininas que marcaram o país no século passado pela resiliência e questionar dos preceitos de uma sociedade machista e misógina, seu novo filme, Dona Tonha, uma produção da Layepas Produções Artísticas,  tem roteiro assinado por Ceicça Boaventura e, segundo Helena, se aproxima do documentário anterior na saga da protagonista por conta dos “extremos que se tocam nas duas obras”. Helena Ignez explica: “Em Fakir, o meu maior interesse estava em trabalhar e conhecer esses personagens femininos e masculinos que marcaram a cultura popular do século XX. Em Dona Tonha, pretendo dar voz a mais uma personagem feminina, mas em outro contexto, com outro tipo de resistência, solitária, no sertão, com uma cultura religiosa forte em torno dela e, ao mesmo tempo, uma necessidade profunda de ser feliz. O machismo é presente na vida dessas mulheres, tanto as faquiresas como o entorno da Dona Tonha”, explica Helena Ignez. O filme contará no elenco com nomes como Rita Assemany, Chico Diaz, Othon Bastos e Harildo Déda. 



SOFIA FEDERICO

Com seu primeiro longa metragem, após uma estrada na qual traz na bagagem premiados curtas, Sofia Federico escreve e dirige Tempo Meio Azul Piscina, filme que conta a história de Zaila, profissional que trabalha como restauradora de imagens, fotografias e postais da velha Salvador. Zaila, de 35 anos, passa pelo trauma de perder uma filha durante o parto. No trabalho de restauração, uma nova realidade é criada por ela, que encontra nessa rotina uma maneira de lidar com o luto e com sua dor. Na cumplicidade de Zaila com uma vizinha, Hebe, que acaba de se tornar mãe, a realidade da restauradora se transforma através daquele afeto com a amiga que carece da sua ajuda para cuidar do próprio filho.

Foram duas as ocasiões em que conversei com Sofia acerca do projeto. A primeira foi em setembro de 2018, momento da seleção para o CineMundi, programa que promoveu encontros entre diversos profissionais do audiovisual mundial na edição do CineBH, na capital mineira. Agora, após a participação no Selo ELAS, Sofia explica que “o projeto ganhou mais tônus, sobretudo quanto ao desenho da produção, estratégia de financiamento e percepção do potencial que o filme tem de ocupar um espaço interessante nos mercados nacional e internacional”, atualiza a cineasta e complementa: “Percebo que as pessoas que estão tendo acesso ao roteiro gostam da história e da forma que escolhi de contá-la. O roteiro foi contemplado no ano passado com o Prêmio Cabíria 2019 e, neste ano, está como finalista do FRAPA 2020 - Festival de Roteiro Audiovisual de Porto Alegre, um dos principais eventos voltados ao roteiro de cinema e TV na América Latina”, pontua a diretora, que tem Tempo Azul Meio Piscina produzido pela Benditas - Projetos Criativos.

SELO ELAS

Bárbara Sturm, diretora de Conteúdo da ELO Company, e criadora do Selo ELAS, explica como funciona o processo de seleção e mentorias. “O Selo ELAS foi criado com objetivo de aumentar o número de filmes brasileiros dirigidos por mulheres, em um mercado onde existem muitas realizadoras em atividade, de todos os lugares do país, e com histórias originais e interessantes. Analisamos todos os projetos que recebemos com interesse na distribuição da ELO Company com o mesmo critério artístico e executivo, independente de quem exerça a direção”, garante Bárbara, que, também, coloca como foco do selo uma cinematografia mais ampla, a abranger diversos locais do Brasil, e não só o sudeste. “Todo final de ano, eu seleciono, como curadora da empresa e do ELAS, os projetos que temos contratados e com direção feminina que vemos potencial no Brasil e no mercado internacional, sempre buscando ter, pelo menos, a metade deles como primeiros filmes e projetos fora do eixo Rio/SP - fomentando o cinema brasileiro como um todo”, finaliza. 

Barbara Sturm, diretora de Conteúdo da ELO Company e criadora do ELAS Foto: Felipe Rau

Para Sofia Federico, a participação no Selo ELAS trouxe uma maior solidificação ao projeto Tempo Azul Meio Piscina. “As mentorias foram super importantes! Não somente para mim, como roteirista e diretora, mas, também, para a produtora, a Benditas Projetos Criativos. Tivemos cinco encontros com profissionais de diversos campos, especialistas em roteiro, produção, legislação e contratos, e pós-produção. Essa é uma ação super importante do Selo ELAS, e que traz resultados efetivos. Fizemos muitos ajustes ao projeto, ouvimos e acolhemos boa parte das críticas. Ele vai amadurecendo a cada escuta. O resultado é que agora estamos prontinhas para filmar”, salienta Sofia.

CULTURA RESISTE

Sem qualquer incentivo à Cultura como patrimônio e indústria no Brasil; com um desmonte do mercado de cinema por parte de uma Ancine sob censura e tendo um agravante que é a atual pandemia, o mercado cultural brasileiro sofre com as arbitrariedades e incompetência do atual (des)governo. Sofia Federico e Helena Ignez têm em suas trajetórias experiências de presenciar diversos momentos da produção cinematográfica nacional. “Cinema brasileiro é sinônimo de resistência. O cinema chegar até aqui foi uma conquista importante de muitas pessoas, grupos, entidades, governos. Quando eu falo “chegar até aqui”, faço questão de trazer os números do setor audiovisual como um todo, que é um mercado que emprega cerca de 100 mil pessoas e gera mais de R$ 20 bilhões ao ano. Em 2017, o PIB do audiovisual superou o da indústria farmacêutica! É importante colocar os números, porque, hoje em dia, só dão valor a quem apresenta impacto na economia. O surpreendente é que, apesar dos números, a cena que está sendo montada no momento pelo governo brasileiro é de um esquadrão de tratores e motosserras prestes a avançar em direção a uma floresta imensa. O cinema brasileiro é essa grande floresta. Os motores estão roncando e a pá dos tratores está erguida em nossa direção”, alerta a diretora de Tempo Meio Azul Piscina.

Sofia traz um enérgico aviso em sua fala. Mas salienta, também, o ato de resistência atrelado ao fazer cinema. “O cenário é de uma tragédia colossal a caminho. Mas, prefiro deixar a cena em suspensão, abandonar esse filme ruim e acreditar que haverá resistência. Como sempre, resistiremos - seja para impedir o avanço das máquinas, seja para reconstruir a floresta inteira”, finaliza. Helena Ignez, que desde os anos 1960 é testemunha das diversas batalhas travadas pelo cinema brasileiro, é enfática: “Atravessamos 21 anos de ditadura militar. Estamos preparadas para resistir. O cinema brasileiro continuará e será forte como sempre. Esse (des)governo está caindo. Fora Bolsonaro!”.

Fora!

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 27/06/2020


sábado, 20 de junho de 2020

Partida | Papo com Caco Ciocler e Georgette Fadel


Viagem Insólita 


Com Partida, cineasta Caco Ciocler traz melancólica, porém, contundente e esperançosa análise do diálogo entre diferentes ideologias políticas 
no rastro da ascensão fascista da eleição de 2018 

Por João Paulo Barreto

Diante da tragédia social e política oriunda da ascensão e vitória nas urnas de uma candidatura calcada no espalhar de notícias falsas, baseada em um discurso de ódio a minorias, de exclusão da Cultura como meio de fomento e desenvolvimento do cidadão, e alimentada pelo uso calculado do fanatismo religioso como meio de angariar votos, o medo e a apreensão de muitas pessoas naquele não tão distante outubro de 2018 eram palpáveis. Tal tragicidade anunciada acabou por ser confirmada de maneira ainda mais pesarosa, uma vez que, menos de dois anos depois, mais de quarenta mil brasileiros e brasileiras (em números oficiais) foram vitimas da irresponsabilidade insanamente calculista de um projeto de governo que prega o descaso e o caos na Saúde Pública do país que finge governar para todos.

No melancólico Partida, o cineasta Caco Ciocler nos transporta para aquele final de 2018 de maneira a nos fazer refletir sobre o que poderíamos ter sido caso fosse outro o resultado daquele trágico dia. Com a tristeza e o choque do domingo no segundo turno da eleição para presidente abrindo sua mescla de documentário e ficção, e com a última semana daquele ano a ilustrar a busca pela compreensão na rotina de seis dias de um grupo de profissionais da arte durante uma utópica viagem de ônibus de São Paulo ao Uruguai na esperança de conhecer o ex-presidente José “Pepe” Mujica, Ciocler traz para Partida a tentativa de um diálogo entre dois possíveis lados da política. Lados que, apesar de contrastantes em ideologias e meios de vida, compartilham, ao menos, um pouco de humanidade. Tal diálogo preside na figura da atriz Georgette Fadel, alguém cuja posição de esquerda se torna uma busca por um modo mais justo de enxergar a sociedade e o mundo como um lugar comum a todos, e o choque de suas profundas ideias com a superficialidade opinativa da direita representada pelo empresário e ator Léo Steinbruch, cujas opiniões se restringem ao sarcasmo e à rasteira e solúvel ojeriza ao PT e aos, em suas palavras, “16 anos no poder sem nada resolver”.

Caco Ciocler dirige Georgette Fadel em cena tensa de Partida
  
FICÇÃO E REALIDADE

Na estrutura de sua direção e captação de seus atores em cena, Ciocler aparece orientando-os a não representar, mas, sim, deixar suas ideias fluírem. O filme, porém, não é totalmente espontâneo em suas falas, tendo, em uma quebra de parede, os momentos de preparação para tais diálogos trazidos à tona ao espectador. Mas isso, importante frisar, não serve como um desencantar do público diante do encontro com algo engendrado em sua construção, mas como uma percepção de como a arte como profissão e a função social daqueles artistas são indissociáveis. Em suas ideias contrastantes, os “personagens interpretados” por Fadel e Steinbruch se opõem ideologicamente, mas são exatamente os dois cidadãos brasileiros que se embatem dentro daquele confinamento sobre os eixos do ônibus a viajar para o Uruguai.

”Esse jogo entre ficção e realidade sempre teve uma intenção que existisse”, explica o diretor Caco Ciocler. “A principio, eu orientei que não deveria haver personagens. Mas é óbvio, e eu digo isso no filme, é óbvio que os personagens naturalmente começarão a aparecer. E é muito interessante ouvir, por exemplo, o Léo Steinbruch dizer, depois dessa experiência, que não sabia mais o que era ele e o que era o personagem. Ele me disse apenas que sabia que tinha que reagir de um jeito que interessasse ao filme, mas que não era exatamente ele ali”, pontua Ciocler que, em Partida, dirige seu segundo longa. 

Georgette em momento de descontração durante a longa viagem

EMBATES

Dentro de um espaço de confinamento que poderia representar naquele contexto a noção de busca por um diálogo comum em um transporte que nos leve adiante, tal qual é o Brasil como lugar onde diversos povos e culturas de diferentes crenças e ideologias precisam coexistir, Partida tem na presença pungente de Georgette Fadel seu diálogo mais pertinente. E isso é dito não por um ponto de vista voltado a uma visão mais vinculada à esquerda em um posicionamento político necessário, mas por se fazer notório e óbvio que, diante da tragédia brasileira iniciada em abril de 2016 e consumada em outubro de 2018, a proposta de uma forma de governo voltada apenas para privilegiados economicamente não é algo mais cabível em um país onde a fome começa novamente a se fazer presente.

“A esquerda e a direita não são dois lados. Para mim, a esquerda é plenamente viva. Eu vejo a esquerda como uma escuta aberta. Eu vejo a verdadeira esquerda como uma possibilidade de se construir um planeta melhor a todo mundo junto, a cada momento. Ou seja, a inclusão plena de tudo e de todos. Já a direita é como uma visão de mundo que pressupõe a felicidade do que? De uma família apenas? Dos iguais? Dos brancos iguais? Não sei. De parte da população como uma tribo que ignora as outras tribos?”, pontua a diferença entre as escolhas políticas e sociais a atriz Georgette Fadel que, apesar da busca pelo diálogo, salienta a dureza do embate entre ela e Léo. “Esse conflito entre eu e ele foi muito cruel durante a viagem toda. Realmente, era impossível que um fosse até o outro, politicamente. Claro que não no nível pessoal. Eu fiquei amiga do Léo. Mas, se formos para o front, eu vou estar de um lado e ele vai estar do outro”, salienta.

Mujica, Fadel e Ciocler em cena central do filme

“PEPE” MUJICA

Em seu desfecho, Partida consegue, mesmo tendo sido concebido em um momento que não imaginávamos a intensidade das trevas nas quais o atual governo empurraria o Brasil, trazer uma reflexão oriunda de uma das mentes políticas mais precisas na necessidade de uma revisão social e econômica de um futuro que urge em ser menos injusto e excludente. No encontro com o ex-presidente José “Pepe” Mujica, em sua última cena, apesar de merecidamente comemorada por todos, o filme de Ciocler nos coloca em um choque de realidade que reflete, naquele dezembro de 2018, precisamente esse atual e tão sombrio 2020.

“No futuro, corremos o perigo de que, com muito dinheiro, os mais ricos poderão comprar anos de vida”, responde Mujica quando questionado acerca dos anos que estão por vir. Isso em dezembro de 2018. Observando o que ocorre hoje, quando acontece um colapso propositalmente planejado e genocida da saúde pública brasileira, quando vivemos há mais de um mês sem um ministro da Saúde e há quase dois anos sem um real presidente da República, é palpável quem e para quem se governa nesse nosso triste Brasil sequestrado pela mentira.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 21/06/2020


domingo, 7 de junho de 2020

Entrevista - Adolfo Gomes

“Quando se faz uma crítica de cinema ou um filme,
 é preciso oferecer algo de si mesmo”

Adolfo Gomes
cineclubista, programador e crítico de cinema 

O crítico de cinema Adolfo Gomes (Foto Paula Sampaio)

Adolfo Gomes tem em sua presença no audiovisual baiano, na função de cineclubista, programador e crítico cinema, uma identidade pessoal que se mescla com o esforço hercúleo de se valorizar o patrimônio cinematográfico do nosso estado. Trabalhou durante treze anos como programador da Sala Walter da Silveira (local onde faz falta como programador), ajudando a construir, na sala que leva o nome do mais conhecido cineclubista da Bahia, a oportunidade para diversos cinéfilos e críticos em formação (eu, um deles) de mergulhar em filmografias completas, movimentos cinematográficos e escolas do pensamento crítico da sétima arte. Na criação do Cineclube Walter da Silveira, que levou à frente na gestão de Bertrand Duarte na DIMAS (Diretoria de Audiovisual da FUNCEB), diversos encontros entre cinéfilos, realizadores e críticos foram realizados, permitindo alimentar a proposta pioneira na Bahia que o icônico Walter da Silveira lançou na segunda metade do século XX. Membro da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), Adolfo é um dos autores presentes em três dos livros lançados pela associação com reuniões de escritos que refletem o pensamento crítico cinematográfico do país. Nesta entrevista ao A TARDE, Adolfo aprofunda suas impressões do olhar destinado ao cinema em tempos fugazes como os atuais, quando a fruição na sétima arte vem se perdendo diante da pressa na absorção simplória de conteúdos do audiovisual.

Por João Paulo Barreto

A crítica de cinema feita hoje, dentro de uma fugacidade na absorção de conteúdos liberados em streaming e na pressa que a internet impõe na análise de filmes e séries, possui um esforço imenso em sua meta de se estabelecer como um meio de reflexão que escape ao simples banal. Qual a sua opinião acerca do processo da escrita crítica dentro dessa realidade atual? Talvez o mais importante seja indagar sobre o que esperamos do cinema nos dias de hoje. Ao meu ver, isso precede qualquer debate. Assim, como “fazer filmes” tornou-se algo relativamente acessível e banal; escrever sobre filmes, por consequência, reflete algo dessa natureza instantânea do registro audiovisual, que tende a ser mais fugaz, descartável do que perene e reflexiva. Antes, quando se filmava uma cena, era preciso esperar até que, num laboratório, fosse “revelada” aquela imagem, a dinâmica da encenação pretendida dependia dessa contingência técnica-temporal. O mundo agora é mais visível e pragmático neste sentido. Vemos as coisas, via de regra, em tempo real. Portanto, o fazer cinematográfico atual já não lida mais com o tempo da filmagem e percurso de produção do mesmo jeito. O intervalo que havia entre a captação e a visualização da imagem foi abolido pelo digital. É semelhante ao que acontece com a crítica. Escreve-se e publica-se da mesma forma acelerada. O que quero dizer com a analogia, é que esse ritmo vertiginoso se traduz, na minha opinião, numa certa frivolidade do olhar, ao mero tomar partido, o posicionar-se apressadamente a favor ou contra, em detrimento da problematização das questões apresentadas por uma determinada obra audiovisual. Se um filme é, face uma análise crítica, bom ou ruim, isso deve resultar de um itinerário reflexivo, argumentativo e até histórico, e não pronunciado como uma sentença. O cinema é, acima de tudo agora, uma arte das incertezas e da fluidez. Cabe pensar um pouco mais sobre o dispositivo audiovisual - seu alcance, possibilidades e fragilidades – do que simplesmente na sua consequência, o filme.

O aprofundamento junto a necessidade de um tempo de fruição e absorção também se faz necessário na escrita crítica. Neste aspecto, para você, o processo de construção fílmica se aproxima do processo de construção textual da crítica de cinema? 
Pode parecer demasiado condescendente com a crítica situá-la no mesmo patamar da realização. No entanto, penso que a construção fílmica, sobretudo atualmente, implica resolver ou se impor demandas críticas e textuais. A produção teórico-crítica e, ao mesmo tempo, o imaginário fílmico consolidado fazem com que já não haja mais inocentes. É difícil, tanto para um crítico quanto para um realizador, delimitar as influências, o impacto e a importância que filmes, poéticas e leituras pré-existentes têm no processo criativo contemporâneo. Com praticamente tudo ao nosso alcance, há o grande desafio de evitar a mera colagem, o rearranjo do que já foi feito, a revisita persistente . Trata-se de uma constatação: A maioria das realizações e das críticas atuais é excessivamente descritiva. Então, percebo uma convergência na produção e fruição. Isso sim, infelizmente, equaliza as duas funções de uma maneira geral. No entanto, existem rupturas nos filmes e nos escritos sobre cinema. Quer dizer: espaços de transgressão. Para ilustrar isso, tomemos como exemplo um filme da natureza de O Rei do Cagaço, de Edgard Navarro. A cena inicial, o registro do ato de defecar, subverte a lógica descritiva. É uma imagem tão endógena, magmal, tão "nova" e desconcertante, que parece nunca vista antes. Navarro transforma um gesto fisiológico em outra coisa, numa paisagem lunar. É como se fossemos os primeiros a pisar na lua ou a presenciar tal passo. Em síntese, o filme demanda da crítica imaginação. É preciso, quando se faz uma crítica de cinema ou um filme, oferecer algo de si. E uma das coisas mais pessoais e transgressivas que podemos conceber, neste sentido, ainda é a imaginação.

Cena de O Rei do Cagaço, de Edgard Navarro - Disponível no YouTube
Na comparação entre a linguagem da escrita crítica e a linguagem cinematográfica, são notórios os exemplos de profissionais da crítica que se tornaram exímios cineastas. Esse apuro no olhar dentro da análise textual reflete de que maneira no olhar do fazer cinematográfico? 
Certa vez, o cineasta alemão Werner Herzog declarou prescindir da história do cinema, pois as imagens que buscava nos seus filmes não têm paralelo, nem derivam do que já havia sido visto e filmado. Entendo o que ele quis dizer e não me parece, ainda hoje, nem exagerado, nem presunçoso da parte dele. No Brasil, tivemos o José Mojica Marins, o Ozualdo Candeias e, em certo sentido, o Glauber Rocha que também poderiam reivindicar prescindir da história do cinema. A utopia deles é tão frondosa que isso soa possível, seus filmes tornam crível o sonho de uma autonomia criativa e histórica dessas proporções. É claro que existem outros realizadores assim, de exceção. Mas para todos os demais, a história do cinema é imprescindível, igualmente o olhar crítico.

Neste aspecto da capacidade do profissional da crítica levar à audiência um norte no que se refere ao aprofundamento na História do cinema, qual sua opinião acerca da importância da profissão? Outrora, o crítico era uma espécie de cartógrafo que percorria o território do cinema descobrindo e documentando suas paisagens (os cineastas, movimentos estéticos e revoluções culturais) com a autoridade de um desbravador. Toda uma geração de cinéfilos, como a minha, buscava o primeiro contato com realizadores e filmes - na altura, praticamente inacessíveis - através dos escritos, das críticas. Claro, havia ainda a importância de legitimação artística do cinema que emergia da reflexão estética elaborada nos textos. Tais instâncias da crítica desapareceram, foram incorporadas pelo mercado cultural como uma etapa de quase merchadising e divulgação. A grande contribuição crítica da atualidade não está mais em revelar ou tutelar a arte fílmica, mas em tentar organizá-la diante do caos de oferta por meio da curadoria, da proposição de associações e de links entre filmes e propostas criativas. Há quem diga que o específico cinematográfico é a montagem. Diria que o que define a crítica no momento é a economia de recursos: ver menos filmes, ver filmes de maneira mais certeira e rigorosa e por mais vezes. Na contramão da quantidade, da opulência, um certo franciscanismo curatorial.

O cineasta alemão Werner Herzog
Você tem vasta experiência como curador e programador de sala de cinema. Em como tais experiências refletiram no aprimoramento de sua construção textual como crítico?
Não tenho método, nem sequer uma estratégia de construção textual. Sempre procurei desenvolver um olhar crítico a partir de uma indagação central e pessoalíssima: o que é o cinema para mim? Minha resposta sempre foi mais existencial do que estética. Reconheço: esse é apenas um dos paradoxos da minha relação com os filmes. Como se trata, sobretudo, de uma relação de sobrevivência (preciso do cinema para existir), minha aproximação com o ofício da programação e da curadoria foi natural. Para obter as cópias e ver os filmes, precisava de argumentos e justificativas, do contrário não seria possível exibi-los, acessá-los. Eram outros tempos. Os filmes tinham presença física, peso, diâmetro e demandavam a experiência coletiva da projeção. À medida que via esses filmes, ampliava meu olhar, me aproximava das pessoas e queria compartilhar com elas outras obras. Assim, minha cinefilia foi sendo moldada criticamente e se retroalimentando das curadorias que fazia. Mais do que um crítico, sempre fui um cineclubista.

Para além da vaidade estilística na escrita, creio que o profissional da crítica deve focar em um contexto específico da obra e o tempo sobre o qual ela busca refletir. Para você, qual a função da escrita crítica cinematográfica como fator de reflexão social e política? Para quem não faz muita distinção entre cinema e vida, como eu, é algo incontornável, uma questão de cidadania. Sempre tive uma relação visceral com a arte e com os filmes em particular. Não existe o mundo do Godard e a sociedade, por exemplo. É, para mim, uma coisa só. Portanto, sinto o Godard como um pai, um mentor. Sempre encarei como um ato político ver um filme, escrever sobre ele - em última análise o cinema é também um meio de inserção social, de esperança, de construção de utopias. A escrita, qualquer escrita, não deixa de ser um testemunho histórico para nós mesmos e para os outros. É a força dela: captar uma emoção e traduzi-la em palavras, num discurso. Por si só, mais do que uma função, é um instrumento de reflexão ampla.

O cineasta francês Jean-Luc Godard
Em conversa com o crítico francês Jean-Michel Frodon, perguntei-lhe acerca da proposta de análise crítica sem a necessidade de se esgotar todas as discussões e nuances oferecidas pela obra. O seu processo de escrita segue caminho semelhante?
Meu ponto de partida sempre é uma ideia. Escrevo para esclarecê-la e fazer vir à tona um sentimento, uma impressão concreta e objetiva. Talvez não seja um crítico, simplesmente busco ter um olhar crítico. Quando escrevo nunca quero esclarecer um filme, explicá-lo ou circunscrevê-lo. Escrevo para descobrir o efeito do filme sobre mim, sobre o cinema. Estou em busca daquela ideia que ele, o filme, faz despertar em mim.

*Entrevista originalmente publicada no Jornal A Tarde, dia 08/06/2020


 


terça-feira, 2 de junho de 2020

After Life


A vida 
como um sopro 


NETFLIX Em tempos de dolorosa reflexão acerca da morte, After Life, série de Ricky Gervais, chega à segunda temporada oferecendo, dentro do humor ácido, 
exata análise do luto e do (in)conformismo 

Por João Paulo Barreto

Lidar com a tristeza do luto é algo que não deve ser prejulgado. Diante da dor da perda, cada pessoa terá um comportamento único. Foi Stephen King que escreveu no seu livro, Saco de Ossos, lançado em 1998, que “o luto é como um convidado bêbado em sua casa. Alguém que sempre volta da porta para lhe dar um último abraço de despedida”. Essa despedida, porém, nunca de fato acontece. Eu acrescentaria que, muitas vezes, tal convidado bêbado acaba sendo a própria pessoa vitima daquele luto. Vitima daquela perda de alguém a quem amou tão intensamente que a dor que toma conta do lugar dentro do peito onde o(a) outro(a) esteve presente se torna a nova e confiável companhia. Torna-se um estado de constante repetição e esforço para prosseguir. E é muito dessa constatação que propõe os doze breves episódios de After Life.

Tal repetição, como bem citado na série ao referenciar o clássico Feitiço no Tempo, é o que define a vida de Tony (Ricky Gervais), jornalista da Gazeta de Tambury, cidade ficcional que recria as comuns aparências de localidades do interior da Inglaterra. Sendo o homem a exata definição de todas as características físicas e psicológicas descritas acima, a pancada em sua existência e origem do seu luto advém da perda de sua esposa, Lisa, que faleceu em decorrência de um câncer de mama. Sua vida pacata, escrevendo desde sempre para um jornal de distribuição gratuita e que cobre apenas trivialidades da pequena cidade, se justificava para além de qualquer inércia que a sua trajetória profissional poderia dar a impressão de possuir. Seu impulso de vida era unicamente dedicado ao seu casamento com Lisa. Sua felicidade dependia de seu convívio com ela, que, além de esposa, era também sua melhor amiga. E o que mais podemos desejar além disso? Alguém que se torne não somente seu parceiro por toda a vida, mas, também, seu cúmplice e melhor amigo(a)? E foi justamente isso que Tony perdeu quando Lisa sucumbiu ao câncer.

Tony (Gervais), seu pai senil e a enfermeira cuidadora

CONFORTÁVEL DOR

Apesar de soar niilista em alguns momentos, mas sempre sagaz em suas observações, seu personagem segue em uma relação de inconformismo diante da perda e de um conformismo perante o luto. Em determinada cena, Tony diz que a dor se torna um conforto. Uma sensação de normalidade. Quando ele se sente minimamente em um estado de suposta alegria momentânea (não confundir com felicidade, friso), ele percebe que aquele não é o seu eu natural. Voltar à dor é necessário para que, contraditoriamente, ele se sinta confortável. E nesta sua rotina de apenas seguir as horas do dia, seu único conforto está na companhia de sua adorável cadela de estimação e nos vídeos que gravou de suas brincadeiras e outros momentos que passou com Lisa. Neste aspecto, é válido observar a maneira orgânica como tais registros servem de flashbacks para o espectador conhecer Tony antes da amargura tomar conta de seu senso de humor e de sua existência. Ao invés de desenhar a narrativa diante do passado como uma quebra da realidade de Tony, Gervais, também roteirista e diretor, nos mantém dentro do mesmo estado temporal de seu protagonista, permitindo experimentar junto com ele aquelas pílulas de felicidade ao voltar ao passado que tanto lhe fez bem e que agora é seu único refúgio.

ANÁLISE DA HUMANIDADE

“Pessoas preferem ser uns merdas famosos do que não serem famosos de modo algum”, profere Tony ao sair de uma entrevista nonsense na qual pais vestem o filho bebê como um mini Hitler apenas para terem um pretexto para sair no jornal local como uma piada. Em uma das cenas que serve como maneira de Gervais explorar sua crítica ácida à sociedade fútil e escrava da necessidade de existir virtualmente, o roteirista aproveita para ilustrar impressões no que tangem a outros vários aspectos que resumem a humanidade no século XXI. Tais momentos de entrevistas, inclusive, servem desde pontos de alívio cômico para Gervais destilar tanto sua veia ácida às diversas situações que se apresentam como exemplos da estupidez humana. Além disso, também funcionam como espaço aos seus ótimos coadjuvantes, dentre eles o pacífico e hilário, Lenny (o comediante Tony Way, o bobo da corte em Game of Thrones), que aguenta as provocações de Tony sem esquentar em momento algum. 

Tony e Lisa (Kerry Godliman): vida antes da tempestade

Suas discussões no ambiente de trabalho, também, são oportunidade para o também diretor e roteirista da série inserir seu ponto de vista relacionado a religiões. Notoriamente ateu, Gervais transforma seu alter ego também em um ateísta, inserindo pontuais e pertinentes análises, por exemplo, sobre a ideia católica de que o deus da bíblia é o único existente, ignorando crenças que outras pessoas possam ter em Rá, Ganesha ou Zeus (“Da mesma forma que você não acredita em outros deuses, eu não acredito no seu”). Ou mesmo quando confrontado sobre a ideia (injustamente definida como niilista) de que sua não crença em reencarnações ou vida após a morte o levaria a tornar a sua própria vida desnecessária e passível de ser encerrada (“Você não interrompe um filme que está gostando apenas pela fato de saber que ele vai acabar. Então, porque eu deveria fazer o mesmo com a minha vida? Ela é preciosa justamente por se a única que eu tenho”). 

Tony e seus colegas de jornal: Sandy (Mandeep Dhillon) e e o hilário Lenny (Tony Way)

Nessas discussões sobre a sua personalidade a viver apenas no mundo material, mas que valoriza aquela única chance de existir, mesmo que brevemente, neste planeta, Tony flerta bastante com a ideia de suicídio, ponto que After Life consegue trabalhar de maneira delicada, sem descambar para um melodrama frágil e, também, sem banalizar tão séria questão. No seu flerte com a cuidadora de seu pai idoso e senil, Tony lhe fala que gosta daquela companhia por representar uma repetição do seu dia a dia, na citada referência a Feitiço do Tempo, clássico com Bill Murray. No seu mundo de eterno luto, ao menos aquela companhia lhe serve de aceno para um futuro diferente e de um possível recomeço. Com um personagem tão pessimista, saímos de After Life contraditoriamente renovados em um otimismo muito bem vindo.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde dia 03/06/2020