segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Livro Jimmy Page no Brasil

Zeppelin Baiano

LIVRO Jimmy Page no Brasil, de Leandro Souto Maior, desmistifica, através de entrevistas com famosos e anônimos, a passagem do guitarrista do Led Zeppelin por Lençóis, Salvador e pelo sudeste

Por João Paulo Barreto

A fama é sedutora e hipnótica. Muitas vezes, nociva. Requer equilíbrio administrá-la. Há quem consegue lidar com ela por décadas. Há quem ceda aos seus encantos e riscos de sufocamento. E há aquelas pessoas que, após anos dentro daquela espiral, apenas almejam por um respiro. Em um exercício de imaginação, é curioso pensar em Jimmy Page passando por essa sensação de busca por esse respiro quando alcançou a marca dos 50 anos de idade. Crise de meia idade? Existencial? A comichão de um grande amor que lhe encantava? As possibilidade são muitas. As décadas de 1960 e 1970, quando fez parte de bandas pilares do Rock como Yardbirds e Led Zeppelin, foram intensas para Page. Junto a Eric Clapton e Jeff Beck na primeira; e a Robert Plant, John Paul Jones e John Bonham na segunda, o guitarrista ajudou a construir fundações de um estilo que moldaria a Cultura no século XX. Imaginá-lo, então, após recém completados 50 anos de idade a buscar, em 1995, por esse respiro em um local remoto como a cidade baiana de Lençóis, na Chapada de Diamantina, é algo muito compreensível.

O guitarrista inglês e a musa baiana, a cantora Margareth Menezes

Os dias de Jimmy Page no Brasil, há 25 anos, são o tema da pesquisa do jornalista e músico, Leandro Souto Maior, que lança, pela editora Garota FM Books, o livro Jimmy Page no Brasil, extensa pesquisa que refaz os passos do guitarrista britânico não somente em Lençóis, mas em Salvador, Rio e São Paulo durante aqueles dias da pré-internet e sem a fugacidade e imediatismos baratos das redes sociais. "Há mais de vinte livros escritos por jornalistas e pesquisadores gringos sobre Led Zeppelin e sobre Jimmy Page. Em nenhum deles há nada sobre essa fase. Chega nessa época, tem um pulo. Um hiato que parece que não aconteceu", explica Leandro acerca da motivação em registrar essa história em um livro bilíngue. "Eu quero que os fãs do mundo inteiro saibam o que aconteceu. Foi um período longo que ele passou aqui e que viveu coisas que não viveu, por exemplo, nos Estados Unidos ou em algum outro país", pontua o autor.

Jimmy Page e Paulo Ricardo em 1996

FONTES FAMOSAS E ANÔNIMAS

O autor em foto de Maira Coelho
Dentre os diversos entrevistados, nomes como os de Margareth Menezes, Charles Gavin, Roberto Frejat, Paulo Ricardo, Daniela Mercury, Pepeu Gomes, e diversas outras pessoas que, famosas ou não, estiveram com o mestre da guitarra naquele seu período nessa terra brasilis. "Em Lençóis, tinha muita gente que sequer sabia quem era Jimmy Page. Só veio a saber depois, quando a história começou a circular. Souberam que ele era alguém muito famoso. Mas, em um primeiro momento, quem o encontrou por lá, era o cara do açougue ou o padeiro, sabe? ", conta Leandro. "Jimmy Lama", apelido irônico como ficou conhecido no circulo de músicos e admiradores que frequentavam a cidade à época, aproveitou seu anonimato até quando pôde. " Quando o Jimmy foi parar em Lençóis, tem histórias curiosas. Uma delas diz que ele adorava acordar cedinho, nas primeiras horas do dia, e ir para a padaria. Lá, ele comprava o pão da primeira fornada que saia, passava manteiga, e sentava ali mesmo, na calçada em frente à padaria, para comer. E isso era todo dia! Foram vários relatos sobre isso que eu tive. Várias pessoas testemunharam isso", relata Leandro. "A galera o chamava de 'Jimmy Lama' porque ele andava todo largado, de chinelo, de bermuda rasgada, totalmente oposto da visão de um rock star que a gente costuma ver. E até das próprias fotos famosas que a gente vê do Jimmy. Ele sempre muito bem vestido, um verdadeiro lorde inglês", explica.


HUMILDADE

Em Lençóis, Jimmy Page financiou instituições de amparo a jovens em situação de risco, bem como, no Rio de Janeiro, ajudou a fundar a Casa Jimmy, local voltado para abrigar jovens sem lar. Na capital fluminense, inclusive, Page recebeu o título de Cidadão Honorário. Sua passagem pelo Brasil destoa da imagem do astro do rock, do glamour, da soberba tão característica em diversas histórias envolvendo as bandas setentistas em suas lendárias "bad trips".

"
Em todos os relatos, não teve um que não atestasse essa impressão dele como um cara aberto, acessível. Que gostava de conversar, especialmente se o assunto era música. Um cara que se deslumbrava com coisas novas. Por exemplo, há relatos de quando ele viu um berimbau pela primeira vez. Dá pra imaginar um cara que tirou cada efeito mais louco que o outro da guitarra, chegar e dar de cara com um instrumento não eletrificado, de uma corda só, e que faz aquele som hipnótico?", exemplifica Leandro ao citar o interesse de Page sobre o berimbau. "Há entrevistas do Jimmy sobre a época dele na Bahia em que ele fala do seu fascínio pela capoeira. E não só com a dança ou com o visual, mas também com a história. Às vezes eu acho que ele sabe mais sobre a capoeira do que muito brasileiro. Então, acho que ele é um cara muito interessado e humilde, também. Todos os relatos de todo mundo que esteve com o Jimmy usam essa palavra: humilde. Ele não tinha soberba. Ele não se colocava acima, apesar de toda a história, toda influência, todo legado para  a cultura mundial que ele já tinha deixado ali naquela altura da vida", finaliza Leandro.

Oooh, it makes me wonder... 

Jimmy Page no Brasil
280 páginas
                Financiamento Coletivo:
catarse.me/jimmypagenobrasil

*Matéria originalmente publicada no Jornal A Tarde, dia 24/11/2020




sábado, 21 de novembro de 2020

Marighella

Marighella Vive!



Em estreia especial pelo Dia Consciência Negra, Marighella, filme de Wagner Moura, revive a brutalidade de um país tirano no contar dos últimos anos de vida do deputado e revolucionário herói

Por João Paulo Barreto

A importância e impacto existentes no lançamento  de Marighella, longa metragem dirigido por Wagner Moura, justamente na semana do Dia da Consciência Negra traz um peso e ainda maior relevância histórica para o trabalho. E o lançamento acontece em Salvador, a cidade mais negra da América Latina, terra natal do próprio deputado e escritor Carlos Marighella. Salvador recebeu a primeira sessão em circuito comercial de um filme cuja urgência se faz necessária pelo tenebroso momento de negacionismo proposital e manipulador da ditadura e do golpe militar de 1964, bem como diante de uma tentativa oportunista e canalha de se reescrever os fatos históricos, banalizando todos os crimes e monstruosidades cometidas pelos militares no período.

Moura, em sua estreia como diretor de longas metragens, adapta a densa biografia escrita por Mário Magalhães em uma obra que coloca sua audiência quase que fisicamente dentro do mesmo turbilhão que os últimos anos de vida de Marighella representaram.  Junto ao seu diretor de Fotografia, Adrian Teijido, no processo de dramatização fílmica da história do autor de Minimanual do Guerrilheiro Urbano, de Chamamento ao Povo Brasileiro (organizado após seu assassinato) e fundador da Ação Libertadora Nacional, grupo revolucionário que lutou contra a homicida ditadura no Brasil, Moura equilibra cenas frenéticas em planos sequência que nos colocam dentro da ação com momentos tenros, em uma simbólica ideia de calmaria que precede a tempestade na vida de seu protagonista.  Na calmaria, vemos Marighella (Seu Jorge, em um peso expressivo para o papel) brincar com seu filho no mar do Rio de Janeiro, e equilibrá-lo na suavidade da superfície da água. Lá fora, tanques de guerra esmagam tanto asfalto quanto a liberdade. Moura tem plena consciência do que monta naqueles paralelos e o que pretende nos fazer refletir com eles.

    Marighella (Seu Jorge) e seu filho: a tempestade se aproxima

2020 NEGACIONISTA

"Hoje há gente discutindo se a ditadura foi mesmo ruim, se a tortura é aceitável e se a terra é mesmo redonda. Isso era impensável há cinco ou seis anos. Aprendi que não se pode menosprezar a capacidade de piadas e absurdos se alastrarem até ganharem status de verdades. Mentira e desinformação precisam ser levadas a sério e combatidas pedagogicamente, não se pode mais rir de sandices como a mamadeira de piroca", alerta Wagner em relação ao estado de mentiras, negacionismo e manipulação midiática que vivemos em 2020, algo que tem ecos desde o golpe parlamentar de 2016 e a eleição de 2018. "É preciso levar a sério e reagir imediatamente. O manejo escroto das redes sociais polarizou o mundo e relativizou a verdade. E, claro, a aversão de tipos como Trump e Bolsonaro à cultura, à ciência, ao pensamento crítico, à regulação das redes e à liberdade de imprensa favorecem um projeto de dominação que se beneficia da ignorância", complementa.

Sobre a dificuldade de se adaptar uma obra tão densa quanto o livro de Mário Magalhães, Moura explica que, para ele, o roteiro é a parte mais difícil do cinema. "Nós estávamos lidando com a história de vida de muitas pessoas e com um período conturbado do país. Eu e Felipe (Braga, co-roteirista) trabalhamos juntos em Marighella desde 2013. Para nós, desde o começo era claro que tínhamos que ter um recorte muito específico", salienta o cineasta. Inserindo elipses exatas no avançar da luta e do tempo restante que resta a Marighella, tempo este conscientemente contado pelo revolucionário naquele recorte dos anos de chumbo e sangue,  o roteiro de Moura e Braga, juntamente com a montagem  de Lucas Gonzaga, demonstra seu foco como o de um filme que, apesar dos seus intensos 155 minutos, tem uma urgência explosiva no transmitir daquela trajetória para o público. "Não gosto de ver filmes biográficos que em apenas duas horas tentam dar conta da vida inteira de alguém. Melhor ler um livro ou ver um documentário. Nós optamos pelos cinco últimos anos da vida de Marighella. E muitas vezes pensei se não deveria ter feito um filme só sobre o último dia de sua vida", relembra Wagner.  

O diretor e seu protagonista: sintonia exata em filme essencial

CINEMA CONTRA REPRESSÃO

De um assalto a um trem para o roubo de armamento militar que abre seus minutos iniciais, com o plano sequência citado a nos pegar e colocar dentro daquela mesma tensão encontrada pelo protagonista e seus camaradas, ao momento de anos antes, quando o corte para o mar da baía de Guanabara denota exatamente a fugaz calmaria antes do caos e da perda, a estrutura proposta por Wagner Moura em sua câmera na mão, muitas vezes trêmula, transmite de maneira precisa esse esgotamento físico e temporal. A queda pode até ser inevitável diante do poder do inimigo, mas também será sentida pelo carrasco. "Não. VOCÊS perderam", replica Branco, personagem de Luiz Carlos Vasconcelos, pendurado em um pau-de -arara, enquanto um assassino militar o tortura. A simbologia desse momento é exata.

Na truculência esbanjada e regada a mortes e sangue, a representação governamental militar encontra em Lúcio (delegado vivido por Bruno Gagliasso em uma atuação corajosa e sem vaidades) suas mais profundas camadas de desonestidade e virulência. Desde a deturpação de fatos, passando pela manipulação de cenas de crime, até a aspereza e fel engolidos a seco quando tem que se curvar diante de agentes estadunidenses que vêm ao Brasil no rastro do seu suporte ao golpe militar, Lúcio é a representação do quão vil é o estado brasileiro dentro daquela política de violência, censura e terror. O mesmo terror que utiliza como pretexto para acusar de "terroristas" aqueles que se opõem à sua corrupção, algo que vemos se repetir em tentativas de um ministro da Justiça corrupto de um governo alçado em uma plataforma de mentiras.  

Gagliasso se despe de vaidade para compor o monstro Lúcio: papel corajoso

Sendo sua primeira experiência na direção de um longa metragem, Wagner Moura explica que o seu processo por trás da câmera tem similaridades com sua experiência na atuação. "Eu acho que dirijo como atuo. Tento estar muito presente e contagiar o ambiente com energia criativa. Mas dirigir é muito mais fácil que atuar. Quando eu dirijo, sinto muita empatia pelos atores, porque eu sei o quanto aquilo pode ser doloroso", evidencia o ator e diretor. Ainda sobre esse processo, Marighella referencia um tipo de direção bastante próxima aos seus atores, com uma câmera a captar seus movimentos constantes, algo que remete ao cinema feito pelos irmãos Dardenne, diretores preferidos de Wagner.  "Os Dardenne são meus cineastas favoritos. Seus filmes são muito políticos, mas extremamente humanos, geralmente sobre jovens de classe social baixa. Eu acho que a crueza com que eles filmam encontra eco na nossa tradição de cinema político, do Cinema Novo até Tropa de Elite. E todos bebem no neo-realismo italiano, que é meu cinema favorito", declara o diretor.

Da influência de um cinema que historicamente surgiu como uma luta contra o fascismo, Marighella e seu diretor se estabelecem como símbolos dessa mesma luta.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 22/11/2020


 

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Sem Descanso

 Força Assassina


ESTREIA
Sem Descanso, documentário de Bernard Attal que aborda a violência do Estado no notório Caso Geovane, chega aos cinemas em um 2020 marcado pela truculência da polícia

Por João Paulo Barreto

Em 02 de agosto de 2014, Geovane Mascarenhas de Santana, de 22 anos, foi abordado por uma viatura policial enquanto pilotava sua moto no bairro da Calçada. Rendido, mão na cabeça, de costas para um deles, já foi covardemente agredido fisicamente pelo primeiro policial que se aproximou. Colocado em seguida de joelhos, foi revistado e teve seus documentos verificados. Após longos minutos, foi colocado na viatura, enquanto um dos oficiais pilotava sua moto. Toda a ação à luz do dia, em um dos locais de maior movimento de Salvador, passou como rotineira pelos transeuntes e motoristas. A certeza da impunidade diante de mais um ato de truculência e abuso de poder era certa para aqueles homens fardados diante de mais um jovem negro. Porém, uma câmera estava lá para registrar a última vez que Geovane foi visto com vida. 

Vinte e dois dias depois, o corpo do jovem seria sepultado na cidade de Serra Preta, interior do estado. O intervalo de tempo entre a gravação daquele vídeo no qual Geovane encontrara seus juízes e carrascos, junto a uma reflexão urgente e um anseio de mudança quanto a barbárie da violência policial, é o que propõe apresentar Sem Descanso, documentário do cineasta Bernard Attal, que narra a busca angustiante de Jurandy, pai de Geovane, pelo seu filho durante as duas semanas que se seguiram à abordagem no bairro da Calçada. Jurandy passou por delegacias, batalhões, hospitais, instituto médico legal, e, como o próprio nome do filme diz, não descansou até ter notícias de seu filho. A confirmação do assassinato surgiu após partes do corpo decapitado de Geovane terem sido encontradas em dois pontos distintos do subúrbio de Salvador, em uma tentativa covarde e monstruosa de acobertar as atrocidades cometidas dentro do batalhão da polícia, um órgão do Estado que deveria proteger sua população, mas a assassina abusando do poder que esse mesmo omisso Estado lhe concede.

Geovane é abordado, agredido e levado pela polícia

SEM DIÁLOGO

"Várias vezes tentamos conversar com o governo, com os órgãos públicos e com a corregedoria da polícia. Chegamos até a marcar encontros,mas eles desistiam de última hora ou negavam esse encontro. Realmente, é uma pena porque eu não queria fazer um filme contra a polícia", explica Bernard Attal acerca das motivações de investigar para o documentário o caso Geovane. Porém, o cineasta deixa claro que a busca pelo diálogo foi primordial na construção de seu filme. É o diálogo que impede a barbárie. É o diálogo que fortalece democracias e impede a ascensão de uma violência fascista oriunda daqueles que deveriam proteger, mas ameaçam a sociedade. "A violência policial é uma tragédia da sociedade toda. A sociedade toda é responsável. Tanto a Polícia, quanto o Estado, quanto a Justiça, quanto nós, como cidadãos, somos responsáveis. Eu não queria apontar especialmente a polícia nesse caso. Eu queria conversar com as autoridades públicas para entender se eles iam tomar providências para reduzir esses casos. E eles se negaram completamente ao diálogo. Isso foi realmente uma pena porque eu achei que seria uma dimensão do filme que eu teria gostado de ter, mas, no final, não temos. A postura desse governo é de simplesmente não tratar o problema da violência policial", afirma Bernard.

Jurandy no local onde seu filho foi levado: mergulho na dor 

DIREITO DE ENTERRAR OS SEUS

Com seu assassinato, Geovane deixou para trás mulher e filha, pessoas que foram privadas do convívio com ele. Deixou para trás avós e amigos. Deixou para trás seu pai, Jurandy, que não  descansou até o momento em que pôde perceber, vendo o caixão do seu filho, a dimensão da tragédia que sua vida teve. Esse descanso, aliás, nunca virá. Como Antígona, da obra de Sófocles, Jurandy exigiu o direito de enterrar seus mortos.  "É um tema muito grave quando se trata da violência policial. A polícia faz de tudo para que  não sejam descobertos os corpos. Porque, se o corpo não for descoberto, não tem caso na justiça. E isso vem já da ditadura militar e de antes. E por isso que se pode negar crimes políticos e crimes não políticos. Sem corpo, não há caso", pontua Bernard, e salienta a referência que seu filme faz a Antígona e ao risco sofrido por Jurandy.  "Esse é o nível de barbaridade. Não se sabe em que circunstâncias essas pessoas foram levadas. Isso é totalmente coerente com a história de Antígona. Mas Antígona tem uma outra dimensão, também, pois ela desafia as autoridades. Ela aceita o risco pelo direito de enterrar seu irmão. No caso de Jurandy, foi exatamente isso. Ele sabia que estava correndo um risco grande na busca do corpo do filho", compara Bernard.

Iniciada a produção em 2015 e lançado em festivais em 2018, o filme estreia comercialmente em um 2020 marcado por mais exemplos de violência policial. E a indignação só aumenta. "A dimensão de indignação não foi diminuindo ao longo do tempo. Eu não costumo assistir aos meus filmes depois. Eu tento me distanciar do filme, mas, cada vez que eu escuto mais uma história de uma pessoa agredida pela polícia, minha indignação só faz aumentar. Realmente, esse filme nasceu dessa indignação", finaliza o cineasta.

*Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, dia 06/11/2020


quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Livro - Novas Fronteiras do Documentário

Decifrar o
 Real

LIVRO Em Novas Fronteiras do Documentário - Entre a Factualidade e a Ficção, autor Piero Sbragia traça perspectivas de análise do cinema documental e entrevista diretores baianos

Por João Paulo Barreto

A foto que ilustra essa capa do Caderno 2 de A Tarde, na qual o escritor Piero Sbragia conversa com o documentarista Eduardo Coutinho, foi tirada em outubro de 2013 durante uma tarde de autógrafos de um livro que trazia uma coletânea de textos do cineasta. A foto, clicada pelo amigo de Piero, Pedro Moreira, traz um Eduardo Coutinho um tanto desfocado. No prefácio do livro Novas Fronteiras do Documentário - Entre a Factualidade e a Ficcionalidade, que Piero Sbragia lança em 2020, o autor observa que a falta de foco daquele registro é "conotativa e denotativa", pois revela "o nervosismo dos jovens diante do mestre". Na conversa com Piero  para essa matéria, relembrei uma comparação semelhante com a capa do Blonde on Blone, na qual o escritor (cujo nome não me recordo) fala que a imagem um tanto borrada de Bob Dylan refletia a velocidade na qual ele estava naquele distante 1966. Digo a Piero que enxerguei na imagem borrada de Eduardo Coutinho a mesma velocidade e visão à frente do seu próprio tempo, que o colocava em um patamar diferenciado de entendimento da nossa realidade.

Coutinho e Piero Sbragia em momento definidor para o autor

No seu livro, Piero Sbragia analisa diversos aspectos da construção do documentário, focando não somente em alguns desses aspectos atrelados a Coutinho e sua atenção a um cinema documental visando a audição de suas personagens, mas, também, a Cao Guimarães, diretor cujos filmes seguem por um norte de introspecção e observação.  Piero observa que "é interessante essa conexão do Cao com o Coutinho porque, efetivamente, eles fazem filmes muito diferentes. O Coutinho, para mim, sempre foi um cara à frente do seu tempo. Ele antecipava tendências. Era um cara da vanguarda, no sentido da origem da palavra, do francês avant-garde. A pessoa que ia na frente para levar bala. Levava o tiro primeiro, mas conseguia chegar primeiro aos lugares. Eu acho que o Coutinho é esse cara. O Cao eu vejo mais como alguém atento ao zeitgeist, ao tempo. O Cao é, para mim, o reflexo do momento, da nossa contemporaneidade. E eu coloco os dois no mesmo patamar", pontua o escritor ao comparar Coutinho a Cao e salientar a ideia de observar a velocidade do primeiro, cuja inesperada metáfora que encontramos na foto do seu encontro com o documentarista reverbera nesse texto e em quase sete anos após sua morte brutal.

VOZES BAIANAS

Em Novas Fronteiras do Documentário - Entre a Factualidade e a Ficcionalidade, Sbragia, além de aprofundar o estudo do cinema de documentário, algo que surgiu a partir da construção de sua dissertação de mestrado, traz na visão de dez documentaristas de diferentes gerações e abordagens de cinema, um maneira de traduzir para a pessoa de posse do seu livro uma análise da realidade por olhares atentos. Assim, através de nomes como os de Amanda Kamanchek, Cristiano Burlan, Eduardo Escorel, Eliza Capai, Geraldo Sarno, Juca Badaró, Maria Augusta Ramos, Orlando Senna, Paula Trabulsi e Susanna Lira, o autor cria um panorama amplo desse cinema que registra para sua audiência nuances profundas do real.

O veterano Geraldo Sarno é um dos entrevistados no livro

Dentre os dez nomes de cineastas entrevistados por Piero para seu livro, veteranos da Bahia como Geraldo Sarno e Orlando Senna, bem como Juca Badaró, diretor do premiado As Cores da Serpente, e que representa o estado em uma nova geração de documentaristas, uma abordagem de diferentes olhares dentro da experiência de criação do cinema documental é feita. "Eu queria ter pessoas como o Geraldo Sarno, como o Orlando Senna, e como o Eduardo Escorel que, juntos, têm 150 anos de cinema. Eu queria ter pessoas como o Juca Badaró. como a Amanda Kamanchek , que só têm um longa metragem no currículo, mas que conseguiram realizar nesses longas obras que, de certa maneira, foram revolucionárias para mim", explica Piero e salienta a presença de Sarno, Senna e Badaró de forma a trazer o foco de sua abordagem do cinema de documentário brasileiro para fora do eixo Rio-SP. "Eu tentei fugir um pouco dessa análise limitada de que o Cinema no Brasil parece que só foi feito no Rio ou em São Paulo. Eu acho muito importante e saudável em qualquer discussão de cinema que a gente tenha, seja em um livro, um debate ou em uma live, pensarmos o cinema como algo produzido no Brasil inteiro. Temos muitos jovens talentos indígenas de Manaus, de Roraima, do Acre, que estão produzindo filmes, curtas, longas", exemplifica o escritor. 


Um dos entrevistados, Orlando Senna em foto clássica de sua labuta


"CUIDADO COM OS MITOS"

Retornando ao encontro do autor com Eduardo Coutinho, em 2013, Piero salienta o fato de que a assinatura do cineasta no livro lançado à época continha um pseudônimo (Stephen Rose). "O maior documentarista brasileiro, em um autografo num livro, adota um pseudônimo ficcional. O que isso significa? O que isso representa? A leitura que eu faço disso é como se ele estivesse falando para mim: 'Olha, não me mitifique. Não crie um mito sobre a minha pessoa'", observa. No ato de se mitificar pessoas, o risco dessa importância ser dada a oportunistas mal intencionados reverbera para o presente caótico. "Quando o Coutinho assina como Stephen Rose, em outras palavras, ele está falando assim: 'cuidado com os mitos'. E quando eu falo "cuidado com os mitos", fazendo essa ponte de 2013 para 2020, é claro que eu também estou falando de Jair Bolsonaro. É claro que eu também estou falando de várias pessoas e de vários políticos que se elegem na sombra de um mito que é construído sobre eles", sinaliza.

No estudo do cinema de documentário apresentado por Piero Sbragia em seu livro, a análise da obra de Cao Guimarães, além da visita a alguns filmes de Eduardo Coutinho, juntamente aos aspectos teorizados por Bill Nichols em relação aos modos construção dentro do documentário, se destaca a necessidade da compreensão atenta do diálogo, da escuta, e do olhar urgente à nossa realidade. "Vivemos hoje em uma sociedade que berra. As pessoas berram nas redes, gritam nas janelas, batem panelas, fazem buzinaço. Todo mundo grita e o que de fato está acontecendo? Nada! Que tipo de mudança essa gritaria toda traz para o Brasil? Nenhuma. Eu acho que gritar não é o caminho. Talvez o caminho seja ouvir. Que é o que o Coutinho fez nos filmes dele. O Coutinho sempre foi um bom ouvinte. Eu sinto essa necessidade da gente ouvir mais nesse Brasil em que as pessoas gritam muito", finaliza.

Preciso!

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 04/11/2020