sábado, 30 de janeiro de 2021

Inabitável

Inabitável País

CINEMA Selecionado para o prestigiado Festival de Sundance, Inabitável, curta protagonizado por Luciana Souza  e dirigido por Enock Carvalho e Matheus Farias, denuncia um Brasil do qual buscamos escapar

Por João Paulo Barreto

"A gente está atrasada". A última frase proferida em Inabitável, curta metragem escrito e dirigido por Enock Carvalho e Matheus Farias, denota não somente um desfecho de saída, de fuga para sua protagonista em um escape que flerta com a ficção científica, mas uma constatação. Nós estamos atrasados. Atrasados como Estado, como nação, como país. Atrasados como um lugar que não é ciente do poder das escolhas democráticas. Um lugar que não é ciente das consequências dessas escolhas. Único curta metragem brasileiro selecionado para a edição 2021 do prestigiado Sundance Film Festival, nos Estados Unidos, que segue em plataforma on line até a próxima quarta-feira, o trabalho assinado por Matheus e Enock é um angustiante retrato de Brasil. Na história de Marilene, mãe em busca da filha desaparecida, Roberta, uma mulher trans que não volta para casa no dia seguinte após uma festa com amigos, a sensação e comprovação de insegurança de um lugar no qual as vidas LGBT, vidas negras, vidas indígenas, seguem ceifadas com um aval do Estado, compõe o desespero físico que é construído com um calejar que transparece na expressão de sua protagonista.

Marilene (Luciana Souza): dureza no olhar na busca por filha

A experiente atriz dos palcos baianos, oriunda da Companhia de Teatro Popular e vasta trajetória no Bando de Teatro Olodum, Luciana Souza, dá vida a Marilene, protagonista que tem em sua composição a aspereza que a vida e a falta de surpresas diante de um cotidiano tão brutal lhe servem como uma carapaça de proteção. "É uma temática dura. Eu penso que as pessoas que vivem essa realidade, elas se tornam também duras. Pode ter outras formas de se representar isso. Com certeza, tem. Mas o tema vem a apresentar muitas dessas pessoas calejadas com a doença da vida", explica Luciana acerca de sua composição para a dureza no semblante de Marilene diante daquela busca angustiante e sem respostas por sua filha. "Aquela é uma mãe que, de fato, não cede ao desespero e ao choro, porque ela já temia muito aquilo. É algo que estava no roteiro e que a Luciana soube trazer para as imagens, para as cenas do filme, de uma forma muito fiel. Também foi um trabalho de pensar em como ela não cederia a esse medo, a esse choro, a esse desespero. E, ao mesmo tempo, ela se manteria de certa forma com esperança de que a filha pudesse reaparecer", pontua Enock Carvalho, co-diretor.

Marilene, junto a Gilka e Juliana, encontra artefato: respostas

REFLEXÃO URGENTE

Trata-se de um filme com uma mensagem direta sobre esse país que se tornou inabitável para muitas pessoas. Um Brasil no qual, abertamente, um então candidato a chefe do Executivo fala que "as minorias têm que se curvar às maiorias. Ou as minorias se adéquam ou simplesmente desapareçam". E consegue se eleger com esse discurso. Inabitável é uma obra que nos mostra essa fuga urgente de um país que parece ter perdido sua humanidade.  "É uma sociedade adoecida por não conseguir ver o próximo, não conseguir olhar para o lado. Não conseguir ter empatia e compaixão e, de fato, eu acho que é uma falha social. Isso é uma falha do ser coletivo, mas que não aprendeu  a ser coletivo. Eu acho que quando as pessoas elegem políticos que são nocivos, que são ameaças, elas não têm, de fato, essa noção. Algumas têm, mas a maioria delas não tem noção do que eles podem ser capazes. E eles podem matar permitindo que pessoas morram. Eles podem matar deixando uma parcela da sociedade descoberta de leis que protejam seus territórios, que protejam seus direitos. E isso é matar. E você está colocando essas pessoas no poder. Você está votando por elas. Você está elegendo e endossando discursos. E o discurso de direita está muito atrelado ao racismo, ao fascismo, à homofobia", alerta Enock.

Luciana e Matheus discutem os nortes da personagem


Em seu filme, Matheus e Enock levam sua audiência a refletir em como um Estado mesquinho pode ser nocivo diante de sua indiferença. No desaparecimento de Roberta, e na busca de Marilene por sua filha, há símbolos de uma perda que representa um país perdido em uma desesperança. Em determinada cena, lá estão Marilene, Juliana, amiga de sua menina, e Gilka, a vizinha, a colar cartazes com a foto da filha desaparecida. Nas paredes, de forma sutil, outros cartazes aparecem. O padrão desses desaparecimentos surge evidente, porém. No país de um Estado omisso, que governa para poucos, e que prega o desaparecimento de suas minorias, tais cartazes se multiplicam. E em nosso atual presente, caótico e pandêmico, confirma esse comportamento assassino.

"É um sistema pautado na mentira, no caos. Quantas vidas perdidas nessa pandemia é fruto de uma irresponsabilidade de alguém que poderia, simplesmente, fazer diferente? Que teria todo poder nas mãos para fazer diferente. E quando pensamos nesses desaparecidos do filme, tentamos criar um padrão desses desaparecimentos. Claro que a Roberta é o símbolo disso tudo, mas o filme trata de um contexto que envolve outros desaparecimentos. Essa foi uma ideia que foi se formando ao longo da finalização do filme. Porque também começamos a pensar em quem são esses desaparecidos, sabe? E é inevitável não pensar em cada uma dessas mortes provocadas pela pandemia como, também, pessoas que sofrem de uma violência do Estado. De um descaso dos políticos e de um descaso do Estado. Um Estado que parece que não se preocupa em manter as pessoas vivas. Roberta é uma delas. A Marielle, a Matheusa, a Dandara, e tantas outras vidas que estão sendo perdidas todos os dias. E as pessoas parecem que estão nesse estado de letargia absoluta. A gente aqui está cansado, sabe? Está todo mundo cansado", desabafa Matheus Farias.

A dupla de realizadores Enock Carvalho e Matheus Farias

ESPERANÇA E FUGA

Marilene, em seu ensaio de um sorriso nos último momentos de Inabitável, abre para a audiência uma possibilidade de refletir em uma esperança. Sim, lá está a fuga. Sim, lá está a ideia de que não há mais futuro aqui. Mas aquele sutil sorriso traz um fio esperançoso.  Para Luciana Souza, "o filme dá esse contorno que é uma grande gancho. Esse contorno de uma certa esperança, mas de uma esperança que só é possível fora daqui. De alguma forma é até uma utopia. Uma utopia para esse âmbito em que vivemos. A gente não sabe de muitas coisas do além. Acho que dá esse caminho, dá essa esperança de que é possível que haja um lugar melhor para se viver", observa a atriz e questiona: "Que lugar é esse em que a gente vive e que é um lugar que não nos pertence? É um lugar que não temos o direito de existência? É um lugar que não temos direito a coisas básicas? Eu acho que o filme faz essa grande denúncia, sabe? Esse nome Inabitável é esse lugar que não é habitável. É interessante você falar isso do "Estamos atrasadas". Estamos atrasados, mesmo. Estamos atrasados de evolução, também. Estamos atrasados de sanar, de passar para outras questões existenciais, de sanar um tanto dessas diferenças", finaliza.

Estamos muito atrasados. 

 *Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 31/01/2021



*As fotos que ilustram essa matéria são de Gustavo Pessoa. 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

A Nuvem Rosa

Confinados em Si



CINEMA
Realizado antes da pandemia, A Nuvem Rosa, de Iuli Gerbase, filme brasileiro selecionado para o prestigiado festival de Sundance, utiliza o confinamento para desconstruir
 personagens psicológica e fisicamente

Por João Paulo Barreto

"O inferno são os outros". Com essa frase proferida por um personagem da peça Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre, o norte para a compreensão de A Nuvem Rosa, filme escrito e dirigido pela cineasta Iuli Gerbase, tem um primeiro passo em seu trilhar. Selecionado para a mostra competitiva World Cinema Dramatic, do prestigiado Sundance Festival, nos Estados Unidos, que vai até o dia 03 em plataforma digital, o longa de estreia da roteirista gaúcha aprofunda-se na ideia do isolamento físico e emocional de Giovana e Yago. Os dois formam um casal confinado tanto nos cômodos de uma casa quanto no desejo de libertação de suas angústias e sentimentos. Trata-se de um filme que traz a análise do equilíbrio de um relacionamento fadado ao fracasso pelas prisões que ele criou tanto para si próprio quanto aquelas  às quais precisou se adaptar para continuar resistindo.  O inferno está nos outros que nos cercam, bem como, dentro da sanidade de cada um, há, também, um inferno particular.

Trazendo a ideia de uma nuvem tóxica a manter as pessoas presas em casa sob o risco de morte caso tenham contato com o ambiente externo, o longa é baseado em estudos acerca do criação de personagens aprisionados, publicados em  dissertação de mestrado escrita pela própria diretora, cuja defesa aconteceu em 2017. O roteiro escrito por Gerbase foi filmado em 2019, distante de qualquer ideia de que aquela realidade poderia ser a de todos nós em um futuro bem próximo quanto o de 2020 se apresentou.  Sartre, com a peça Entre Quatro Paredes a abordar o contexto de isolamento, juntamente a Luis Buñuel e o seu marco O Anjo Exterminador a ilustrar outro exemplo de análise comportamental humana em situações de confinamento e tensão, são duas das outras obras trazidas pela cineasta na composição de seu texto.

Giovana e Yago: confinados em uma nova realidade

"Eu queria explorar esses personagens em diferentes situações. Temos os protagonistas, um casal de que recém se formou. Temos uma amiga  da Giovana, que, ao contrário, se separou, ficando trancada sozinha em casa. Temos uma menina com as amigas dela na casa dos pais destas. E a gente tem o pai idoso do Yago, preso com uma pessoa que ele já conhece, mas não gosta,  que é o seu enfermeiro", explica Iuli ao falar acerca da criação das dinâmicas comportamentais das pessoas que ela criou para seu roteiro.

PRISÕES FÍSICAS

No destrinchar de suas camadas, o texto de Gerbase permite análises desses aprisionamentos em variadas nuances. O desmoronar daquele relacionamento entre Yago e Giovana que, mesmo em suas diferenças, foi forçado a começar por conta da necessidade de se confinar ; a ideia de uma prisão dentro de uma infância alienada e distante de um mundo anterior que, para aquela criança, possui naquele estado de adaptação sua (única) realidade conhecida; a prisão física dentro de um corpo e mente a ceder para a degeneração de uma doença, com a inserção de uma personagem a perder seu discernimento e capacidades mentais. Em sua história, A Nuvem Rosa se torna uma concisa observação do humano como vitrine para diversos ímpetos, bem como para as limitações que contêm tais ímpetos.

"Nesse estudo, eu via muito, também, quais aprisionamentos temos na nossa vida antes do COVID, antes da nuvem rosa, antes deste aprisionamento de fato. Então, eu também quis explorar essas questões. O pai do Yago mostra um aprisionamento do corpo físico. Quando temos uma doença, ficamos limitados e presos a ela. Ou, enfim, o nosso corpo é mortal e a gente tem um limite de liberdades com o que fazer com ele ", pontua a diretora e roteirista.  

Chegada da nuvem rosa: flerte com a ficção científica

NOVAS ADAPTAÇÕES

Em nossas prisões, a adaptação e a recusa àquelas novas realidades parecem travar batalhas entre si.  Do mesmo modo, aos poucos, as personagens criadas pela roteirista vão cedendo e se deixando levar por aquele "novo normal", para usar um termo em voga no definir do que é essa maneira recém chegada de se comunicar. "Recém chegada", inclusive, soa como um termo equivocado para citar esse novo padrão de contato social, à distância, travado apenas diante de telas, áudios, vídeos e palavras escritas.  "Nós já estávamos em uma era muito virtual. Porque, às vezes, tem amigos que antes de ter tanto WhatsApp, Facebook e Zoom, a gente talvez já visse mais desse modo do que hoje em dia. Às vezes, falamos tanto e tão constantemente pelo celular com alguns amigos e acabamos vendo-os pouco. Claro, eu estou falando antes da pandemia. Mas houve essa adaptação para o virtual", compara Iuli.

LEMBRANÇAS MARCADA

Em A Nuvem Rosa, a questão da perda desse contato, da resistência versus aceitação, é aprofundada, levando sua audiência a não somente penetrar naquela realidade do casal ficcional como, também, perceber-se vivendo dilemas semelhantes. "Tudo vai para o virtual, só que tem coisas que não se sustentam no virtual. E há outras que se sustentam. Eu imagino que para os adolescentes está sendo muito difícil. Imagina quem ia ter o seu primeiro ano na faculdade? Ou ia se formar no colégio, se formar na faculdade? Não vai ter aquele momento de celebração, aquele momento de conhecer as pessoas", reflete a diretora. As lembranças que criamos durante fases da nossa vida em uma formação inicial, juvenil, são as que nos sustentam por anos a fio quando tormentos mentais podem surgir. Quando perdemos tais encontros, tais experiências, tais sensações geradas a partir da interação, a partir do contato com outros, como podemos nos tornar adultos saudáveis? Observando novas gerações perderem isso, pensar em um futuro menos pessimista se torna tarefa difícil.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 29/01/2021





sábado, 16 de janeiro de 2021

O Poderoso Chefão Parte III - CODA

 Revisitando o Padrinho


CINEMA
Em desnecessária nova versão, Coppola remonta terceira parte de O Poderoso Chefão, altera momentos cruciais, exclui cenas e deixa a saga dos Corleone aberta a continuações

Por João Paulo Barreto

Preciso pedir licença para uma introdução confessional e intima em relação a importância que a trilogia O Poderoso Chefão tem em minha formação como cinéfilo e estudioso de Cinema. Trata-se do meu filme preferido. Sim, considero as três partes como um único filme de quase dez horas de duração. Desde a adolescência, quando a paixão pela sétima arte se consolidou, tenho um compromisso anual de visitar os Corleone e adentrar nas camadas narrativas e visuais criadas por Mario Puzo e Francis Ford Coppola. E a cada nova visita, me deparo com algo novo e surpreendente. Por isso, nada mais natural que em minha visita de 2021, eu tenha criado uma expectativa acima do habitual para assistir ao "novo" terceiro capítulo, batizado por Coppola de Coda: The Death of Michael Corleone (ou Desfecho: A Morte de Michael Corleone). Coda, uma referência ao termo musical que define um epílogo, era o título proposto no lançamento original, em 1990, sendo descartado à época.

Michael: tenacidade e sagacidade oriundas da velhice

ARCO DRAMÁTICO

Antes de adentrar no mérito desse texto, no caso, a tal nova versão para a parte final, permitam abordar um dos magnéticos aspectos da obra em três tomos dirigida por Coppola entre 1972 e 1990. Trata-se, claro, da transformação de Michael Corleone (Al Pacino). De um assumido rebelde e dissidente de suas heranças familiares a um sagaz e calculista Don, a metamorfose do rebento caçula dos filhos homens de Vito Corleone (Marlon Brando) na guerra contra os inimigos e traidores da sua família é o que mais fascina na relação de O Poderoso Chefão com seu público cativo. Em um exercício mental, a visita à saga nos permite imaginar qual teria sido o desfecho de Michael se sua primeira esposa, Apollonia Vitelli, não tivesse sido vítima de um atentado que, originalmente, tinha ele como alvo. Constituindo uma família com ela, o aborto provocado por Kay Adams (Diane Keaton) não teria sido o fator preponderante para seu ódio contra inimigos já derrotados e, naquele momento, inofensivos. A perda de um herdeiro ainda não nascido o levou a desprezar a clarividência que o impediria de, em circunstâncias mais pragmáticas, matar o próprio irmão, Fredo (John Cazale), em um ato insano que gerou um peso que ele carregou e que o desestabilizou para sempre. "Nunca odeie seus inimigos. Afeta seu julgamento," diria o próprio Michael, já experiente.

Condecoração da igreja como parte do acordo: cena excluída

ORIGINAL INTOCÁVEL

Apesar de ser um fã da trilogia, é admissível a percepção de que a terceira parte carece de um apuro narrativo que as duas primeiras têm de sobra. Mas não me entendam mal. Apesar de reconhecer alguns dos seus problemas relacionados, por exemplo, à grandiloquência forçada do roteiro no que tange ao poder mundial que Michael Corleone alcançou em sua ascensão religiosa e financeira junto a Igreja Católica, sempre considerei o desfecho da saga "de la famiglia" como bastante satisfatório.

Por isso, convém lembrar alguns dos elementos mais marcantes desse desfecho, tais como a dor e culpa destrutivas de Michael pelo assassinato de Fredo, representada logo na cena de abertura, com o lago e a residência dos Corleone, fria, abandonada ao tempo e às chagas abertas;  a tentativa de salvar o mínimo de afeto entre ele e a ex-esposa (e mãe de seus filhos), Kay, mesmo após a decisão macabra, anos antes, de propositalmente matar um Corleone ainda seu ventre; a busca de Michael pelo perdão divino por seus pecados, algo que denota uma de suas fraquezas advindas da velhice, junto, claro, com a diabetes. Seu final ainda mais doloroso, representando a perda do que Michael mais prezava e protegia: sua família.  E, claro, a lembrança precisa de três momentos de dança com as mulheres de sua vida a fazer a audiência perceber o quanto aquele último golpe desferido lhe tornaria ainda mais distante da redenção que ele almejava e daqueles momentos tenros. Além disso, é inevitável pontuar seu último suspiro antes de ser traído pelo coração frágil que terceira idade lhe concedeu. Na Sicilia, sozinho, vivendo de recordações e de mágoas, ele apenas lembra e se corrói em tristeza, até ceder ao abraço da morte natural.

Ao fundo, Vincent Mancini (Andy Garcia): nova geração

MUDANÇAS DESNECESSÁRIAS

Coppola, infelizmente, priva o espectador de alguns desses elementos em sua nova montagem. Com uma nova cena de abertura que já era conhecida pelos extras das edições em mídia física, na qual Michael negocia com o arcebispo a compra de uma dívida do Vaticano, o diretor de Apocalypse Now substitui o ritual litúrgico da homenagem a Don Corleone. Assim, ao retirar a cena com a celebração na igreja, Coppola quebra uma marca de sua própria trilogia, que tem em seus primeiros atos uma cerimônia religiosa a marcar as relações da máfia com um aspecto sagrado para acordos firmados. No primeiro, os negócios da família eram discutidos durante o casamento de Connie. No segundo tomo, a primeira comunhão de Anthony. Do mesmo modo, a exclusão do prelúdio, com o revisitar do espectador ao local da morte de Fredo, retira um peso introdutório da atmosfera de luto que o filme original de 1990 possui. 

Kay e Michael: terceiras chances e mágoas (quase) esquecidas

Para além disso, as reduções de diálogos, como a conversa de Don Altobello com o assassino contratado, na qual destaca-se a fala do personagem de Eli Wallach sobre a pureza do azeite de oliva siciliano, e o juramento de Vincent Mancini (Andy Garcia) a sua tia Connie (Talia Shire) sobre a sua responsabilidade para com a família, são exemplos que representam escolhas visando, claro, dar melhor ritmo ao filme. Mas as mesmas não se justificam, uma vez que a metragem do longa nunca foi um problema. A perda dos exemplos de tradições culturais dentro do fascinante universo da máfia, sim. Essas ausência em Coda se tornam um problema.

MORTE DE MICHAEL?

Nada mais grave em seu retalho desnecessário, porém, que a alteração que o cineasta fez do final do filme em seu ultimo take. Privando sua audiência de um desfecho físico para seu protagonista, quando o mesmo não mais cede à morte em seu derradeiro mergulhar nas lembranças entrecortadas pelas belas cenas de Michael a bailar com as mulheres de sua vida, Apollonia, Kay  e Mary Corlene, Coppola contraditoriamente retira da obra o que ele mesmo anunciou em seu novo subtítulo. E isso apenas em troca de uma até impactante mensagem sobre a tenacidade da vingança siciliana, mas que, no final das contas, não traz qualquer adição narrativa de maneira positiva ao filme. Pelo contrário. A ausência da morte física de Michael Corleone em seu desfecho definitivo priva o espectador  de uma continuidade emocional para a catártica cena na escadaria, com o grito gutural de dor a chocar personagens e audiência, levando-nos gradativamente ao seu emocionante e doloroso desfecho.

O peso da velhice e da culpa atingem Don Corleone

Fica a conclusão de um legado quase irretocável que, apesar de menos grandioso que em suas duas primeiras partes, tinha na terceira uma conclusão mais do que satisfatória. Ainda bem que temos DVDs e blu-rays para novas visitas aos Corleone em sua versão original. Torcer para Francis não querer retocar ao seu bel-prazer os sagrados tomos um e dois. Afinal, respeitar tradições é um lema dos Corleone.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 17/01/2021



segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Umbrella

 Lágrimas na Chuva

CINEMA Qualificado para uma inédita indicação brasileira ao Oscar na categoria Curta-Metragem de Animação, Umbrella, tenro filme de Helena Hilário e Mario Pence, está no YouTube

Por João Paulo Barreto

Após exibição em diversos festivais internacionais, como o Tribeca Film Festival, o Cinequest Film Festival e o Foyle Film Festival, todos eventos que dão aos selecionados a qualificação necessária para a corrida por uma indicação os Oscar, Umbrella, tocante curta brasileiro de animação dirigido por Helena Hilario e Mario Pence, está disponível on line no canal YouTube da produtora Stratostorm até o dia 21 de janeiro.

Idealizado a partir de um triste e real encontro da irmã de Helena com um garotinho órfão em um abrigo para crianças localizado em Palmas, interior do Paraná, em 2011, Umbrella ilustra, em pouco menos de oito minutos, a perda do afeto paterno, a lembrança desse mesmo amor e a esperança em poder contar com aquele  calor humano e familiar novamente. O símbolo desse afeto está em um simples objeto: um guarda-chuva amarelo, última lembrança do pequeno Joseph antes de ser deixado pelo pai no abrigo. "Minha irmã fazia um trabalho voluntário em um local que se tornou um lar para crianças", explica Helena. Ao observar que um dos garotinhos que viva no lugar não queria nenhum dos presentes levados por sua irmã, ela, então, se aproximou e lhe perguntou o que ele queria. "Minha irmã me disse que ele não queria brinquedo, mas pediu a ela por um guarda-chuva, porque, quando o pai o deixou lá, estava chovendo. E que ele falou que ia voltar, mas nunca mais voltou", relembra Helena, comentando a descrição emocionada que teve da irmã sobre o encontro. Para o garoto de, no máximo, seis anos, aquela era sua única lembrança em uma ainda curta vida. Para ele, ter um guarda-chuva significava a esperança de ter o pai de volta.

Helena Hilario e seu protagonista, Joseph


INSPIRAÇÃO MUSICAL

A partir desse ponto e do doloroso relato que teve da irmã, Helena Hilario visualizou uma história que, simples em sua concepção, denotaria uma carga emocional que um curta metragem sem diálogos, porém marcado por uma trilha sonora eficiente, seria capaz de buscar tanto na reflexão quanto na emoção de sua audiência. E o resultado foi alcançado. "Desde o início, queríamos fazer uma animação. Nunca foi uma opção fazer um filme em live action com atores reais. Eu acho que o tema de Umbrella tão delicado. E a mensagem que       a gente gostaria de passar ia ser muito mais difícil de transmitir com atores reais. Seria possível? Sim. Mas acho que seria muito mais difícil em um filme live action transmitir isso sem diálogos", explica Helena ao falar da opção de um curta calcado em expressões, gestos e música. "Queríamos que a música levasse esse sentimento que buscávamos transmitir. A animação e a música juntas conseguem guiar as emoções que queríamos transmitir. A opção foi essa desde o início. E foi muito bonito o processo de trazer o filme à vida desde o começo. Lá em 2015, quando a gente tinha um primeiro storyboard, eu tinha já a música de referência", relembra a co-diretora.

O processo de criação da trilha sonora passou por inspirações específicas dentro a experiência cinéfila da diretora. "Eu amo a trilha sonora do Hans Zimmer para o filme O Amor Não Tira Férias.Era uma referência. Nas conversas com a Vivian Aguiar, produtora da trilha do Umbrella, ela me disse que os temas que me emocionavam na trilha do Zimmer vinham de orquestra. Não era digital", explica Helena. Assim, a criação da trilha sonora composta por Gabriel Dib para o curta metragem precisou contar com uma orquestra que soube captar e transmitir de modo preciso a emoção trazida pela história daquele jovem em busca de uma lembrança do pai que o deixara.

Momento chave do curta, quando a empatia prevalece


INDICAÇÃO SONHADA

Após a seleção por diversos festivais e a qualificação para uma indicação ao Oscar, erimônia que acontece em abril, Helena pontua que a produção de Umbrella, em seu modo simples, porém eficiente e profissional de construção, busca esse símbolo para o trabalho como o coroar de uma trajetória de oito anos de criação. Mas não somente por isso. Na história de um órfão que é julgado por pegar para si um guarda-chuva que pertence a outra pessoa na esperança de trazer de volta alguém que ele ama, a mensagem primordial de não julgar apenas pelas aparências acaba por sobressair. E Umbrella conforta justamente por nos permitir refletir sobre isso. 

"Nós vamos divulgar nosso filme do modo mais singelo, no YouTube. Não temos nada 'fancy' por trás. Não temos nenhum streaming apoiando ou que vamos estar na grade (risos). Vamos no modo mais singelo, mesmo, esperando que as pessoas compartilhem e possam, de fato, assistir e levar essa mensagem de que não podemos julgar as pessoas sem conhecer o que os outros estão passando. Principalmente nesse ano tão difícil de pandemia. Nesse ano tão difícil que bagunçou a vida de todo mundo. Tem tanta gente que perdeu entes queridos. Tanta gente que está passando por dificuldades. Temos que ter empatia. Temos que nos colocar no lugar do outro", finaliza Helena.

Necessidade urgente.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 12/01/2020





segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

McCartney 3

"Rockdown" de um Beatle 



MÚSICA Com McCartney 3, disco produzido totalmente durante o período de lockdown na Inglaterra, Paul McCartney, aos 78 anos, demonstra o vigor de uma vida dedicada à música 

Por João Paulo Barreto 

Não é mais novidade anunciar o novo disco de Paul McCartney, batizado de McCartney 3, como sendo uma prova do seu talento como multi-instrumentista. Seu domínio por diversas nuances da criação musical já é algo notório desde muito tempo. Na fase Hamburgo, primórdios dos Beatles, atuou como guitarrista da banda que ajudou a transformar em lenda, bem como tocou bateria antes das baquetas terem sido empunhadas primeiramente por Pete Best e, em seguida, por Ringo Starr. Quando Stuart Sutcliffe deixou o contrabaixo do embrião que seriam os Beatles para se dedicar à pintura e ao amor por Astrid Kirchherr (John e Yoko é apenas o segundo capítulo da mesma história ocorrida com a banda), Paul assumiu o instrumento que se tornaria sua marca. Porém, mesmo durante seus anos ao lado de John, George e Ringo, Macca ainda tocou uma variedade de instrumentos, como piano em Hey Jude, Let it Be e Lady Madonna, além da própria bateria, em uma ausência de Ringo, durante a gravação de Back in the USSR (executada apenas por ele e John). Em sua carreira solo, além da totalidade nos discos homônimos de seu sobrenome, há diversos álbuns nos quais Paul, apesar de não ter mantido o controle de 100% dos instrumentos, tocou sua grande maioria, a exemplos como os de Chaos and Creation in the Backyard e Flaming Pie, trabalhos nos quais co-assinou como produtor. 

Paul, em foto captada por sua filha Mary: serenidade e experiência

Porém, nesse completar de uma involuntária trilogia iniciada há cinquenta anos com o seu debut solo, McCartney, e continuada com McCartney 2, em 1981, o músico chega, agora, ao seu respiro do que ele chamou de "rockdown", na alusão à necessidade de confinamento dentro do rígido lockdown exigido pelo governo britânico por conta da pandemia do COVID-19. No estúdio que possui montado em sua casa, Paul começou a trabalhar desde março no que se concretizou com o McCartney 3. E o resultado, sabendo que ele produziu o disco, compôs as letras e executou cada um dos instrumentos não poderia soar mais reconfortante dentro de uma época de tamanha ansiedade para muitas pessoas. Eu, incluído. Dentre os instrumentos usados aqui estão o contrabaixo original de Bill Black, músico que acompanhou Elvis; o seu clássico Hofner empunhado por ele nos anos de Beatles, além de um mellotron também usado com a banda em Abbey Road. 

ENCONTRAR CAMINHOS 

Mas o modo como Paul traz esse conforto para sanar ansiedades não vem de maneira alguma a servir como um discurso coach de auto-ajuda. Mesmo em "Find my Way", sua letra mais direta a abordar esses sentimentos de necessidade de otimismo (e primeira faixa a possuir um videoclipe demonstrando a execução de todos os instrumentos por Paul), Macca traz o citado otimismo pulsante como uma ideia de ser o guia diante das dúvidas de quem está "com medo de dias como estes", nos quais a ansiedade sobrecarrega mentes, como ele mesmo diz na letra. E isso em um disco que abre com uma jam de mais cinco minutos, onde as três simples perguntas (Você sente minha falta?/ Você me vê? /Você me toca?) a levar a batida à frente desenham o ritmo proposto pelo álbum. "Long Tailed Winter Bird" é justamente esse convite a uma leveza da qual precisamos e uma reflexão sobre o contato humano que tanto almejamos. 

Nesse almejar pelo futuro, vencendo ansiedades e planos fugazes que, frágeis em suas possibilidades de se desfazerem, levam o escritor Paul a preferir trazer um olhar para a solidez de seu presente, para a felicidade que está ao seu lado nesses tempos bizarros. "Women and Wives" traz exatamente essa ideia de "buscar pelo amanhã que chegará e nos fará buscar pelo futuro" em um ciclo que não nos permitirá perceber o presente. Perceber as coisas mínimas, as relações humanas que deixamos escapar pelo simples ato de ansiar por um novo dia que sempre se promete como algo melhor do que julgamos ter. 

O contrabaixo que pertenceu a Bill Black


NOVAS PERSONAS

Adicionando mais uma personagem à galeria de figuras quase físicas de suas composições, que possuem nomes como a da guarda de trânsito Lovely Rita; como a batalhadora mãe solteira Lady Madonna e, claro, a solitária e trágica Eleanor Rigby, em Lavatory Lil Paul prefere abordar um humor mais ácido ao trazer a personagem título como alguém em busca de satisfação aos próprios interesses materiais, mas sem perceber que apesar de "pensar ser uma estrela, está lentamente descendo a ladeira". 

Como muitos pretensos artistas de nosso século XXI. 

O carisma de uma das vozes do século XX

SIMBÓLICO MOMENTO 

Há um simbolismo apropriado a McCartney 3 e aos seus dois títulos homônimos e separados por décadas . Quando lançado em 1970, o primeiro disco solo de Paul, batizado apenas de McCartney, trouxe um peso da perda da banda que o baixista se acostumou a chamar de rotina criativa. Inclusive, em sua biografia autorizada, escrita por Barry Miles, Paul detalha bem o período de depressão pelo qual passou quando do término dos Beatles. O seu disco, gravado em casa no final de 1969 e início de 1970, foi um rito de passagem para um período de incertezas após a perda de algo que considerava sua vida. Profissional e afetiva. 

Com McCartney 2, apesar de um resultado um tanto aquém do esperado, o término da sua segunda banda, Wings, em 1981, representou um pouco daquela mudança de panorama e entrada em uma nova década. Quase quarenta anos depois, olhar para essa trajetória e percebê-la influenciada por (e mutável em) cada um dos movimentos musicais que ela visitou nos ciclos criativos subsequentes, nos faz refletir em como Paul teve o mesmo foco de experimentação que dividiu com seus três companheiros de banda durante os trezes discos entre Please Please Me e Abbey Road (gravado em 1969, após o Let it Be). 

Talento multi-instrumentista colocado mais uma vez em ação

Com McCartney 3, um álbum criado do zero dentro de uma rotina de confinamento diante da maior crise social, política e humanitária vista pelo século XXI até o momento, o trabalho acaba por, de certa maneira, se apresentar como um rito dessa passagem para um músico que testemunhou as consequências dos diversos movimentos culturais que ele mesmo ajudou a moldar. Olhar para trás e perceber essa relevância própria é algo que requer um equilíbrio imenso. Torcer para que o mesmo notório equilíbrio e longevidade nos presenteie com outros trabalhos dessa instituição chamada James Paul McCartney. 

Ou somente Sir Paul. 

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 05/01/2021