domingo, 23 de maio de 2021

Bob Dylan - 80 Anos


Dylan 80

CELEBRAÇÃO Robert Allen Zimmerman chega aos 80 anos tendo marcado o século XX  (e começo deste) com sua voz única, letras definidoras de uma época e elevando a função social do artista na reflexão do seu tempo
 Robert Allen Zimmerman à frente da revolução iniciada nos anos 1960 

Por João Paulo Barreto

Beatrice Zimmerman, ou apenas Beatty,  mãe de Bob Dylan, tem registrada na biografia do músico, escrita por Robert Shelton, uma passagem definidora:  "Quando ele estava planejando ir para a faculdade, eu dizia: 'Bobby, por que você não estuda algo útil?'. Ele dizia: 'Vou estudar Ciência, Literatura e Arte por um ano, então decidirei o que quero'. Eu dizia: 'Não continue escrevendo poesia. Por favor, não faça isso. Vá para a escola e faça algo construtivo. Consiga um diploma'", relembrou Beatty do conselho dado ao poeta sem diploma que, futuramente, iria compor Mamma, You Been On My Mind.

Beatty e Abe Zimmerman, seu pai, enxergavam pouco além dos limites que a suas próprias vidas haviam lhe concedido, sob o próprio suor, avançar.  "Não critiquem o que vocês não podem entender. Seus filhos e filhas estão além de seu comando", cantaria Bob anos depois, em um paralelo inevitável que se faz aqui. Naquelas quase duas décadas em que viveu com os pais, e principalmente durante os anos 1950, o frio de Duluth e Hibbing, cidades localizadas em Minnesota, Estados Unidos, não permitia a Dylan ou a qualquer outro jovem, a rebeldia comum àquele período de efervescência em que o Rock surgia através de nomes como Little Richard, Chuck Berry, Gene Vincent e Elvis Presley. As baixas temperaturas , naquela inóspita região estadunidense, representava um equalizador de ações e de comportamentos. Não havia como alguém aspirar a ser James Dean pilotando um carro durante um racha, ou Marlon Brando, de jaqueta de couro, em cima de uma moto. A combinação de termômetros abaixo de zero, uma economia voltada unicamente para mineração e a inexistência  de uma cidade para além de, no máximo, seis quarteirões, uma rua comercial e, quiçá, um cinema, não concede muita coisa além de inércia e conformismo de viver pelo vencimento das contas e pelo final do expediente ou das aulas.

Serenidade da experiência e do amadurecer

O primeiro local mencionado acima é onde Bobby Zimmerman nasceu há exatos 80 anos. Foi criado, porém, em Hibbing. As cidades vizinhas faziam parte da região cuja principal atividade econômica à época era a mineração de ferro. A névoa do minério dominava a atmosfera, simulando o mesmo peso metálico que a tal inércia inaudita e onipresente causava a seus cidadãos. Exceto a Bobby, cujas ambições eram esmagadas por ela, bem como, quase, seus próprios pensamentos. Friso no "quase". Ainda em Hibbing, passava seus dias a ler e as suas noites a tentar captar sinais de estações de rádio longínquas. Emissoras que lhe apresentaram o citado Little Richard, aquele que mais lhe influenciou musicalmente ainda na infância, anos antes de Hank Williams e Woody Guthrie (junto com sua máquina de matar fascistas)  se apresentassem como as referências primordiais da música que catapultaria aquele menino à fama alguns anos depois. Após nascer e crescer no gelado estado de Minnesota, com suas terras reviradas pela mineração,  Zimmerman morreu e renasceu em Nova York, vinte anos depois, em 1960, quando desembarcou no boêmio bairro de Greenwich Village. Lá, aperfeiçoou seu cantar, dedilhar de violão e soprar de gaitas em cafés e inferninhos,  primeiro sob a alcunha de Bob Dillon, nome que já usava em Minnesota;  depois como Robert Allyn, para, finalmente, em 1961, batizar a si mesmo como Bob Dylan, lançando seu homônimo disco de estreia em março de 1962, com um contrato assinado pela Columbia Records.  

INFLUÊNCIAS

"Um artista precisa tomar cuidado para nunca chegar a um ponto em que ache que já viu tudo. Tem sempre que entender que deve ficar constantemente em transformação. E, enquanto puder permanecer nesse estado, as coisas vão funcionar", disse Bob Dylan anos depois, por ocasião da gravação do documentário de Martin Scorsese, No Direction Home (2005), quando revisitou seus primeiros anos. Tal definição, exata em sua adequação à trajetória do cantor e compositor, norteou seus passos desde o começo.  Do lançamento de seu primeiro álbum,  surgiu seu registro folk herdado de Guthrie em faixas de tributo como Song to Woody, de autoria do próprio Dylan em homenagem ao cantor que motivou sua ida Nova York com o intuito de visitá-lo no hospital; e Talkin' New York, sua primeira impressão sobre a cidade que o acolhera.

Marcelo Costa e sua paixão dylaniana 

O jornalista, crítico musical e editor do site Scream & Yell, Marcelo Costa, durante o ano de 2018, escreveu um diário intitulado "Bob Dylan com Café", cuja proposta era mergulhar em um disco diferente de Robert Zimmerman por dia, à media que explorava a caixa com a discografia completa, lançada pela Columbia Records. Profundo estudioso de tal obra, Marcelo observa que "se nós olharmos o mundo hoje, rádios, TVs, a indústria cultural como um todo, o nome e a importância de Bob Dylan talvez passem despercebidos para muita gente. O que diz mais sobre o mundo moderno do que sobre Dylan. Porque Bob Dylan foi um big bang no entretenimento moderno, e, provavelmente, sem ele, a música pop teria tomado outro rumo. Sabe-se lá qual, mas não seria a mesma coisa. Porque a cultura pop moderna tem a assinatura de Bob Dylan. Os Beatles foram os grandes divulgadores da nova ordem cultural mundial na segunda metade dos anos 60, e eles estavam fazendo aquilo tudo influenciados por muitas coisas, entre elas, Dylan", afirma.


O olhar tenro do garoto que levantaria a revolução

No seu segundo disco, tal influência se torna pungente. Com The Freewheelin' Bob Dylan, o músico, em seu íntimo, conseguiu um resultado melhor do que o que encontrou para si mesmo no de estreia. E não é para menos. Por trás de sua notória capa, lá está o hino de uma geração, Blowin' in the Wind, a abri-lo e delineá-lo, passando pela intensa Girl From The North Country, e a faixa de alerta A Hard Rain's A-Gonna Fall, que traduziu com exatidão a angústia de todos durante a crise dos mísseis da Baía dos Porcos, entre Cuba e EUA, e a iminência de uma atômica nova guerra mundial, que quase se concretizou. A mudança e a revolução começam a acontecer já com o disco seguinte, The Times They are A-Changin', quando essa  consolidação como a voz de uma geração dentro da música folk, e através de duetos junto a Joan Baez, se confirmou. Porém, a comichão de uma mudança pessoal diante do peso de tal título passou a incomodá-lo.

A revolução propriamente dita começa



Another Side of Bob Dylan, Bringing It All Back Home e Highway 61 Revisited, seus três discos seguintes, juntamente com uma turnê pela Inglaterra, foram a confirmação da ideia de constante movimento dita pelo homem em seu revisitar de memórias proposto por Scorsese, que inicia No Direction Home com a apresentação de Like A Rolling Stone em Manchester, quando o grito de "Judas!" foi entoado por um fã revoltado com a passagem do artista para um perfil elétrico de música, com o peso de guitarras e uma energia não condizente com a da música folk que o consagrara. Seguidores o acusavam de ter se vendido. Seu álbum de 1966, o definidor Blonde on Blonde, com sua famosa foto ligeiramente borrada na capa a representar, como já foi interpretado antes, a "velocidade própria de Dylan à frente de seu tempo", consolidaram aquela nova estrada que ele queria percorrer dali em diante. Poucos meses depois, porém, em julho de 1966, um acidente de moto o deixou hospitalizado e lhe fez interromper as turnês por oito anos. Mas o álbum seguinte, John Wesley Harding, seria lançado em 1968, após sua recuperação física. Dali em diante, a força propulsora de um artista em constante evolução permaneceria até os dias de hoje, às vezes buscando introspecção e calmaria, outras cantando com os pulsos sangrando sobre trilhos.


"SEM FIM"

A velocidade captada em uma imagem
"No seu livro Crônicas, lançado em 2004, Dylan explica: 'Aonde quer que eu vá, sou um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk rock, um artesão da palavra de tempos passados, um chefe de Estado fictício de um lugar que ninguém conhece. Estou no inferno do esquecimento cultural'" relembra o Marcelo Costa, citando a autobiografia de Dylan. E, certeiro, declara:  "Quem dera todos os esquecidos cravassem três álbuns no número 1 da parada americana e quatro no topo da parada inglesa entre 2006 e 2020! Isso sem contar que esse homem é o único na História a ganhar o Nobel, o Pulitzer, o Oscar, o Grammy e o Globo de Ouro, grande parte destes prêmios neste novo século", pontua. "O Bob Dylan que chega agora aos 80 anos não é um homem que vive no passado. Nunca viveu. Desde 1988, ele estava na estrada com a mesma turnê (Never Ending Tour), e só mesmo uma pandemia mundial para o tirar dos palcos – mas não do estúdio. Bob Dylan é, talvez, o único ser humano vivo presente na galeria dos maiores artistas de todos os tempos, uma sala que reúne nomes como William Shakespeare, Salvador Dali, Pablo Picasso, Ludwig van Beethoven... Quando falamos de Dylan, é desse nível de artistas que estamos falando. Não é apenas a História viva. É a História viva sendo escrita. Que seja assim por muitos e muitos anos", finaliza.











*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 24/05/2021





sábado, 22 de maio de 2021

Army of the Dead

 

O Tigre e o Zumbi


ESTREIA Com Army of the Dead - Invasão em Las Vegas, diretor Zack Snyder revisita, dezessete anos depois, o gênero de seu filme de estreia, e volta a brincar com as possibilidades do imaginário do Horror Zumbi

Por João Paulo Barreto

Há um momento de Army of the Dead - Invasão em Las Vegas no qual um tigre zumbi (!!) aparece em cena. Com seu rugido estrondoso e ameaçador, metade do corpo apodrecido pela putrefação cadavérica e ossos aparentes logo abaixo da superfície de seu pêlo carcomido, a besta digital adentra em cena, caminhando por uma Vegas devastada em destroços. O momento serve como um preparo de terreno do filme a criar expectativa e temor. Pelo fato de não ser abatida logo de cara pelo grupo liderado por Dave Bautista, percebe-se que se trata exatamente disso. Uma apresentação inicial para algum momento catártico que veremos mais à frente. E que momento! Mas, não se preocupe. O que acaba de ler não foi um spoiler, mas apenas uma percepção e explicação concreta de como o cineasta Zack Snyder busca nesse seu revisitar ao tema "filmes de zumbis", dezessete anos após Madrugada dos Mortos, saídas para as não repetições (ou minimizá-las ao máximo) de ideias já vistas em outras obras dentro desse gênero.  Mesmo não sendo mais novidade neste tipo de filme (já vimos animais zumbis antes), a proposta de um tigre zumbi tão brutal, ágil e violento quanto um animal "vivo", entrega bem a proposta de Snyder na busca por trazer algo para além do convencional quando falamos de mortos-vivos.

O desafio é grande. Afinal, não somente o mestre George Romero como referência que já guiava o, até então, futuro diretor de 300 e Watchmen na sua primeira incursão pelo estilo há quase duas décadas com a refilmagem de um clássico, mas, hoje, some-se a isso uma quase banalização do tipo de obra, com a demasiada quantidade de temporadas de The Walking Dead e suas derivadas, além de outros filmes que abordaram essa proposta nestas duas décadas do século XXI, sendo alguns com esmero e outros deixando a desejar. Dentre os da primeira opção, está o excelente sul-coreano Train to Busan (no Brasil, lançado sob o pobre título de Invasão Zumbi - perceptível a falta de originalidade por aqui na proposta de nomes nacionais), filme de 2016 que trabalhava de maneira frenética a criação da ferocidade das criaturas mortas (tais quais as que vemos com Snyder), bem como a inserção de um drama/conflito familiar entre os personagens principais.

A besta digital de Zack Snyder

Na história vista aqui, um comboio das forças armadas estadunidenses leva uma carga secreta pelo deserto de Nevada (estado onde fica a cidade de Las Vegas), quando sofre um acidente brutal, deixando-a escapar de seu confinamento. É quando revela-se o conteúdo de tal container como um zumbi ágil e dotado de inteligência, cujos ataques transformam as vitimas em seres tão brutais quanto ele. A partir daí, temos a violência gráfica (e muito bem-vinda) já notória nos filmes de Zack Snyder, sendo, aqui, apresentada como um bônus da sua montagem econômica, no qual todo o prólogo da obra, contextualizando a tal "invasão em Las Vegas" do título, surge de forma enérgica e dinâmica ainda nos créditos iniciais, e ao som, claro, do clássico Viva Las Vegas. A capital dos cassinos dos Estados Unidos torna-se sitiada pela proliferação de zumbis e todo dinheiro de um cofre vira o objeto de caça de um grupo liderado por Dave Bautista (o Drax, de Guardiões da Galáxia), que segue em direção local condenado.

REGRAS E MESCLA DE GÊNEROS

Na coletiva de imprensa para divulgação do filme, o cineasta Zack Snyder falou sobre esse propósito de buscar escapar das ideias pré-concebidas do gênero "filme de zumbi", bem como acerca das possibilidades que a proposta de novos direcionamentos poderia trazer. "Eu meio que desenvolvi essa ideia de um zumbi que escapa da área 51 e termina em Las Vegas. Um muro é construído ao redor da cidade. E isso remete a vários filmes que eu cresci vendo, como Fuga de Nova York (filme de 1981, dirigido por John Carpenter). Sempre fui fascinado pelas regras desses filmes. O que o público iria esperar de uma ideia pré-concebida que fazem de um filme de zumbi? O quão longe o público iria conosco dentro dessas regras? E foi assim que começou. Era algo que estava conosco (Zack e a produtora Deborah Snyder) há anos", explica o diretor.

Dave Bautista em seu papel de protagonista

Dentre as possibilidades, claro, estava a de investir em um tom de comédia, mas sem extrapolar para a sátira, como o sucesso Zumbilândia e o excelente exemplar britânico Todo Mundo Quase Morto. O filme de Zack Snyder, no entanto, apesar de inserir momentos que levam sua audiência a sorrir em pequenas tiradas cômicas, prefere não se entregar de vez a essa veia como saída para variar o estilo de filmes de zumbi. A produtora Deborah Snyder aborda esse limiar no qual Army of the Dead caminha em sua construção temática. "Em termos de tom, podemos dizer que (o filme) tem graça, mas não faz graça. Às vezes, há essas pequenas inserções de humor, mas não significam que você está a salvo. É sempre caminhando no fio da navalha. sabe? ", explica.


PARALELOS "ROMERICOS"

Como exemplificado com as diversas obras citadas, em um gênero cinematográfico já tão explorado no decorrer dos anos e que enveredou por estilos que variam entre o terror, o suspense, a ação frenética e a comédia, há uma opção interessante para o espectador atento que almeja algo além da diversão catártica trazida pelo jogo de caça e caçadores entre vivos e morto-vivos. Funcionando, desde os clássicos iniciais de George Romero, como metáforas para a paranoia estadunidense com o comunismo, além das alusões precisas ao consumismo e à escravidão advinda do capitalismo, os filmes de zumbi têm essa verve intrínseca às suas propostas. Em Army of the Dead, porém, mesmo talvez inserida sem tal propósito de análise, está a ideia de um grupo de vivos que se arrisca (ao ponto de morrer nas presas de zumbis) no resgate de um fortuna situada dentro de um cofre no meio de uma cidade condenada.

Bom, ver a ironia do fato de que nas pérolas iniciais de Romero, os zumbis caminhavam por entre corredores de shoppings em uma alusão exata ao que somos, e que nós, os vivos, tentávamos salvar o que mais interessava (nossa pele), é, no mínimo, curioso de se observar como a mesa virou. Hoje, adentramos no covil das feras na tentativa de deixarmos de ser exatamente os zumbis da base da pirâmide. E não estou falando apenas do roteiro de Snyder. Touché!



*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 23/05/2021




sábado, 15 de maio de 2021

Endless Arcade - TFC

 Teenage Fanclub
e
a energia sem fim do pop




NOVO DISCO  Com Endless Arcade, décimo segundo  álbum de estúdio, banda escocesa  apresenta seu pop puro em melodias e letras que nos fazem respirar com mais calma em um presente no qual isso se faz urgente

Por João Paulo Barreto

Há um texto escrito há vinte anos por Nick Hornby no qual ele aborda o lançamento do Howdy!, o então novo disco da banda escocesa Teenage Fanclub. Nele, o autor de Alta Fidelidade, Um Grande Garoto e Febre de Bola fala sobre a proposta de um disco "quase insanamente feliz", e, também, sobre o direcionamento cínico, ressentido e repleto de uma falta de interesse da crítica especializada em relação ao "ensolarado, alegre e entusiástico" Songs from Nothern Britain, álbum anterior da grupo de Glasgow, lançado três anos antes. No texto em questão, publicado na revista Mojo em 2000 e, no ano seguinte, no site Scream & Yell (com tradução de Claudia Ferrari), o escritor referencia Brian Eno quando este reflete sobre como as sensações de alegria, entusiasmo, curiosidade e fascinação presentes na rotina de criação esbarravam no acima citado áspero direcionamento da crítica para com o produto finalizado. E olha que estamos falando de um período no qual a Internet engatinhava e as maldades levianas oriundas das redes sociais ainda ficavam restritas às mentes perigosas dos trolls que as criavam. Reler este texto, hoje, confirma como o Teenage conseguiu escapar de todo sarcasmo e cinismo de uma sociedade marcada por pessoas que acham que essas duas características rimam com inteligência. "Não tenha medo desta vida", canta o refrão da faixa título do novo disco. Quer algo mais direto do que isso?

Neste abril  de 2021, o TFC lançou seu décimo segundo disco de estúdio em 32 anos de carreira. Endless Arcade é um álbum no qual o Teenage Fanclub faz jus à sua premissa de pureza lírica do pop. Mas não confundir tal pureza com ingenuidade ou manuais de autoajuda. O otimismo notório de sua letras se faz presente aqui, mas há as asperezas que nos incomodam. Há o reflexo da dor, também. Logo em sua abertura, uma canção intitulada "Lar" nos faz imaginar se tratar da calorosa sensação de se sentir bem vindo, de se sentir abraçado. Mas, na real, não é sobre isso. É, sim, sobre a noção da perda. A letra, de fato, canta sobre a incerteza de voltar a ser feliz e toda angústia atrelada a essa desesperança. Porém, mágico e belo, o set instrumental de mais de três minutos que encerra a música a partir de sua metade em diante nos acalenta após a pancada inicial de realidade.

Veteranos com energia adolescente: 30 anos de estrada

MUDANÇAS

Duas décadas se passaram desde Howdy!, sétimo álbum da banda citado por Nick Hornby em seu texto para a Mojo. O Teenage Fanclub lançou ainda mais quatro discos (sendo um deles chamado Words of Wisdom and Hope - quer mais provas das intenções positivas desta banda?). Além disso, passou pela saída de Gerard Love, baixista e vocalista, em 2018, mas manteve seus outros membros fundadores de 1989 (e vozes inconfundíveis) Norman Blake e Raymond McGinley nas guitarras, bem como Francis Macdonald na bateria. No lugar de Gerard Love, o já tecladista e guitarrista, Dave McGowan, assumiu o contrabaixo, com a banda dando boas vindas a um novo tecladista, Euros Childs, a partir de 2019.  Chegamos à terceira década do século XXI e a sonoridade otimista somada a letras que, distante da plasticidade falsa e de tons furados de discursos de coach, nos fazem escapar um pouco do peso de uma realidade pesarosa e trágica que vivemos.

FOCO NO SIMPLES

Sim, admito. É verdade que soa clichê citar a simplicidade do pop que sobressaí em uma canção de 2min ou de 2min e meio. Soa clichê, também, citá-la como sendo um clichê. Mas é preciso pedir licença para este pontuar da capacidade singular que tal tipo de canção pode lhe causar. Ao ouvir The Sun Won't Shine On Me, com sua letra composta com apenas seis frases (sendo uma delas o título e o refrão), em uma valsa que te convida a bailar abraçando a si mesmo (sim, pode me chamar de cafona) enquanto ouve nos fones de ouvido o personagem te dizer que "à deriva como gelo no mar, enquanto, com a mente problemática, estou em declínio e percebo que o sol não mais brilhará sobre mim", é impossível não se cativar por tal poder presente na canção. Exagero ao dizer que dá para sentir as ondas de tal mar gelado? Talvez. Mas, no fundo, creio que não.

Norman Blake e Raymond McGinley: três décadas de parceria

Do mesmo modo, as mensagens diretas nas faixas seguintes, I'm More Inclined e Back In The Day, fazem o ouvinte perceber como a música pop é capaz de te embalar por momentos de introspecção (ou de perigosa nostalgia), mas sem deixar de te divertir. Afinal, é para isso que levantamos de manhã, não? Em algum momento do seu dia, você precisa sorrir. E sendo um ateu (ou a toa, como já fui chamado em mais uma fracassada tentativa citada lá no começo de fazerem sarcasmo rimar com sapiência), uma letra no qual o personagem diz que "não encontrou a religião e que nunca precisou dela" por ter colocado sua fé na pessoa que ama... bom, a música fala por si. O que é mais importante do que depositar a fé no amor concreto por alguém para além de qualquer foco em dogmas ou supostas vidas eternas? A vida é apenas uma. Faça-a valer.

E sobre o perigo de se idealizar e romantizar tempos passados, ao final de Back In The Day não surge uma solução para este processo de superar o que ficou para trás, desanuviando a angústia atual. Mas, do mesmo modo, você sorri por perceber a mensagem clara de identificação. E aprende a dar mais um passo à frente, ansiando por um futuro tão bonito quanto este passado que você idealiza.

Ainda dá para sorrir e renovar sua fé e energia positiva a partir do simples ato de colocar uma música nos fones de ouvido. E não é para isso que Música serve? Sim. E não há cinismo, sarcasmo ou menosprezo que tire a verdade disso. Ainda bem.

ENDLESS ARCADE /  TEENAGE FANCLUB
MERGE RECORDS /
VINIL (IMPORTADO) R$230,00  / CD (IMPORTADO) R$110,00 /
DISPONÍVEL EM PLATAFORMAS DE STREAMING


 *Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 08/05/2021