domingo, 29 de dezembro de 2019

Cats


O público como gato escaldado


Constrangedor visual e dramaticamente, adaptação do musical Cats 
para as telas te dá vontade de ver a peça teatral

Por João Paulo Barreto


Qual a ideia de resultado plausível no que se refere a efeitos visuais que um filme quer transmitir (ou quiçá alcançar) quando coloca todo o seu elenco formado tanto por rostos conhecidos quanto por quase anônimos dentro de um artifício cujo resultado aplicativos de câmeras de celular conseguem construir melhor do que o exibido nos cinemas?

Dirigido por Tom Hopper e estrelado por diversos desses rostos, Cats, a adaptação para a telona do bem sucedido musical de teatro escrito por Andrew Lloyd Weber em 1981, nos faz sair do cinema com essa pergunta na cabeça. Não somente pela estranheza que cada uma das cenas leva à mente do espectador por conta de aspecto visual de sobreposição tosca de pelos de gato em rosto de atores, mas, também, por esse fato trazer a noção exata do quão não adaptável para o cinema aquela peça teatral é.

E tal estranheza não é apenas uma questão de gosto pessoal diante das imagens vistas. Em termos de utilizar o “estranho” e o “tosco” como atributos cinematográficos, nomes como o de Tim Burton, por exemplo, já fazem isso há muito tempo e encantam com resultados muito melhores que os de Hopper aqui. Não. O que acontece com Cats é justamente a ideia de tentar disfarçar através de sua não maquiagem uma proposta de live-action que simplesmente diminui qualquer impacto dramático que seu elenco (muito esforçadamente, saliento) tenta trazer à tona.

Aquele efeito básico de aplicativo engraçadinho de celular

BARATAS DANÇARINAS

Diferente da adaptação realizada em 1998, quando a própria peça teatral foi transposta para um projeto filmado pelo diretor David Mallet, com a presença de diversos atores que se juntaram ao elenco de bailarinos, a versão Cats de 2019 deixa de possuir qualquer razão em sua existência justamente por levar ao seu público a reflexão de que tal experiência, se vista em um palco de teatro, possivelmente alcançaria melhores resultados do que a que temos na sala de cinema.

Na história, a gata abandonada Victoria (Fancesca Hayward) encontra um grupo de gatos de rua que vivem no bando dos jellicle, felinos dançarinos e cantores liderados por Old Deuteronomy (Judi Dench) e que têm na boêmia e na glória dos velhos tempos representados por figuras como Gus - O Gato Teatral (Ian McKellen) e Bustopher Jones (James Corden) suas rotinas de ode à nostalgia.

As baratas dançarinas: constrangedor 

De número musical em número musical, vamos sendo apresentados a diversos personagens felinos e suas personalidades. A melhor delas está em James Corden, que sabe usar bem sua presença física rechonchuda como meio de comédia, e em Ian McKellen, que consegue, mesmo com seu rosto felino, trazer peso para a melancolia de seu personagem cujos dias de brilho desvanecem.

Mas o que fica na memória, de fato, são os momentos de constrangimento alheio, como quando um grupo de ratos e baratas humanóides dançam (e são degustadas) para a gata vivida por Rebel Wilson. É neste ponto em que o público, diante daquela tentativa preguiçosa de se fazer comédia, percebe o desastre daquele projeto e seu fracasso ao tentar empreender qualquer gag visual que cause alguma graça.

E desanima ver o esforço gigante (e não recompensado) de uma atriz e cantora de tamanho talento quanto Jennifer Hudson, que até tenta inserir peso em sua personagem combalida pela rejeição e fracasso, mas acaba por perder-se em uma expressão constante de tristeza que se embaça no efeito felino de seu rosto. Ao menos na sua voz marcante durante o número musical, um vislumbre desse talento.

Mas aí já é tarde demais. A lembrança das baratas humanóides cantando, dançando e alimentando gatos já nos marcou.

*Texto originalmente publicado no jornal A Tarde, dia 30/12/2019

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Playmobil - O Filme


Desbravando a Imaginação Infantil


Ao dar vida aos bonequinhos que ilustraram brincadeiras de várias gerações, Playmobil – O Filme diverte com bom timing cômico e reverência aos musicais Disney

Por João Paulo Barreto

Desde que o primeiro filme para cinema tendo os brinquedos Lego como tema surgiu em 2014 (para TV, as produções são anteriores), foi perceptível o filão que a Warner Bros. tinha em mãos. Ao utilizar uma marca de bonequinhos de montar conhecida mundialmente, metade do caminho em relação a apresentar uma nova franquia de sucesso para crianças e adolescentes (adultos, também, convenhamos) do século XXI, abastecidas desde sempre com tais brinquedos, já estava andado. Faltava apenas conceder personalidades cômicas aos seus personagens, utilizar vozes hilárias, uma história que explorasse seus diversos mundos e pronto. Lá estava um sucesso que gerou grana, continuações e outros filmes temáticos a explorar seus personagens (como o próprio Batman, cuja licença já é da Warner).

Assim, não tardaria muito para que outro brinquedo clássico que estimula imaginações de crianças há décadas seguisse ideia semelhante e chegasse às telas de cinema com uma história que visita seus diversos mundos, traz várias referências à cinefilia e à cultura pop como um todo e, reconheço, se sai bem na função de divertir adultos e, possivelmente, crianças. A criança que ainda mora em mim (piegas, eu sei) se divertiu, ao menos. Playmobil – O Filme segue exatamente essa cartilha de preencher 100 minutos com as várias possibilidades de imaginação que muitos pequeninos tiveram ao crescer em contato com os pouco articulados bonequinhos e seus vários cenários criados para catapultar vendas.

Personagens em busca 

O diretor estadunidense, Lino DiSalvo, experiente animador oriundo do Walt Disney Studios, em entrevista para  A Tarde, afirma que, ter um tema que reside na imaginação de diversas crianças e adultos há tanto tempo, foi algo que o desafiou na possibilidade de dar vida a um brinquedo notório por uma expressão única e uma limitação em seus movimentos. No entanto, encontrou um bom artifício.

“Playmobil é um tipo de brinquedo que você tem originalmente na vida real. Conhecemos sua expressão única. Por isso, foi  uma decisão na animação fazer os olhos dos Playmobils de uma maneira mais expressiva. Assim, eu poderia conseguir "atuações" maiores e expressar emoções de maneira mais ampla. No filme, muitas das expressões que você vê foram criadas em desenhos à mão. A minha parte preferida da animação é a atuação”, explica DiSalvo.

Diretor Lino DiSalvo

DIVERSOS MUNDOS

Com esse detalhe das expressões dos bonequinhos resolvido, mas ainda mantendo a marca das carinhas sorridentes como algo contínuo, caberia ao diretor e seus roteiristas utilizarem a proposta de visitar os muitos mundos que os cenários de Playmobil oferecem para criar uma narrativa fluída e que se aproveitasse bem dessa já estabelecida premissa de vários ambientes.

Na história, Charlie e Marla, dois órfãos vividos por Gabriel Bateman e Anya Taylor-Joy (que precisa criar o irmão caçula rebelde) são transportados para o mundo dos Playmobils, onde encontram diversos personagens, em especial um grupo de selvagens que acaba sequestrando Gabriel (agora transformado em um Viking). Na busca pelo irmão, os tais mundos são visitados por Marla, o que acaba servindo para DiSalvo inserir vários temas, o que vai desde as batalhas campais que remetem a Coração Valente a lutas em arenas lembrando obras como Gladiador.

Entre todos estes, porém, o que mais diverte é um breve mundo do velho oeste onde inicialmente vai parar Marla. Com inserções a referenciar o faroeste espaguete de Sergio Leone (lembrando das raízes italianas de Lino DiSalvo), essa passagem tem nos close-ups clássicos e em sua reverencial trilha uma momento de regozijo para os adultos fãs do Western na sessão a acompanhar os filhos.

Homage a Sergio Leone

MÚSICAS E ATORES REAIS

Lino DiSalvo traz para seu primeiro longa metragem como diretor uma vasta experiência na animação. Porém, para ele, a direção de atores de verdade, em cenas que não fossem animadas (popularmente conhecidas como live-action), foi uma experiência que lhe deu um pouco de medo.

“Para mim, dirigir pessoas de verdade, sendo que eu venho de uma carreira ligada unicamente à animação, foi algo muito assustador (risos). Quando você desenha algo e faz a animação, você tem o controle sobre aquelas expressões. Você pode, por exemplo, apagar uma sobrancelha e a ajustar melhor. Mas, claro, quando há uma pessoa atuando e você dirige, quem detém esse poder é ela,“ explica o diretor entre sorrisos. O diretor resume sua atividade como diretor de atores reais: “Meu trabalho no set era que, emocionalmente os atores estivessem no lugar preciso ,” explica DiSalvo.

Playmobil utiliza, ainda, uma ferramenta narrativa em seu desenvolvimento que remete aos clássicos Disney (mesmo que tenha sido deixada acertadamente de lado em filmes como os da Pixar e Dreamworks). Trata-se dos números musicais no desenvolvimento de seus personagens. Um tanto cansativo em alguns momentos, mesmo tendo essa ideia de homenagem pregada pelo cineasta.

“Eu amo a ideia vinda do cinema clássico em que um personagem consegue se expressar através de uma música. Eu me lembro de, quando criança, ver estas animações musicadas e cada parte delas era algo muito especial. Honrar esse tipo de cinema representa muito para mim”, finaliza Lino.

*Texto publicado originalmente no Jornal A Tarde, dia 23/12/2019




sábado, 21 de dezembro de 2019

Star Wars - A Ascensão Skywalker



O Declínio Imperialista

Apesar de previsível em suas reviravoltas, novo Star Wars encerra com boa reflexão político-social, emoção e espetáculo visual a trilogia Jedi dessa década

Por João Paulo Barreto

Após dois filmes nos quais a emoção do reencontro com velhos personagens, bem como com elementos pilares da clássica trilogia Star Wars, se sobrepunha dentro da trama em termos de impacto junto às audiências compostas tanto por fãs fervorosos como por apenas apreciadores de ficção espacial e da saga criada por George Lucas, o fechamento da nova série de longas iniciada em 2015 sob a batuta de J.J. Abrams retorna à essência original da ideia de Guerra nas Estrelas como um contexto prioritariamente da luta de classes por sobrevivência.

Sim, basicamente, neste último capítulo da terceira trilogia, o que se propõe é colocar em evidência a ideia precisa de uma resistência indo contra um opressor (ou ideia opressora) que retorna gradativamente à sua força de dominação, tentando espalhar seu poder (ou influência) através da violência (ou de ofertas falsamente promissoras que, ao final, só beneficiarão os seus), mas que bate de frente com a união de pessoas cientes que aquele mal não pode retornar das trevas.

Sim, qualquer semelhança com a realidade, infelizmente, não é mera coincidência e, ainda mais infelizmente, aqui, na nossa galáxia do real, o Lado Sombrio da Força está vencendo. E, sim. É exatamente isso. Tomei a liberdade de salientar um contexto político brasileiro nessa crítica. Nunca é demais lembrar-se do abismo do nosso próprio “Dark Side” e pretenso “Império”.

Rey e seu momento da verdade no despertar de sua Força

UNIÃO FAZ A FORÇA

Por este caminho, é bastante pontual que em seu tomo de encerramento, a trilogia volte à premissa original do clássico de 1977, colocando como argumento central a batalha pela sobrevivência de diversos povos unidos por um ideal de vida e contra a dominação armamentícia e econômica de um Império capaz de destruir todo um planeta com o fugaz apertar de um canhão.  Neste intento, a salvação reside na jovem padawan Ray (Daisy Ridley), que segue seu treinamento Jedi dessa vez sob a batuta da general Leia Organa (Carrie Fisher), irmã de seu antigo mestre, o falecido Luke Skywalker (Mark Hamil).

No reencontro com atormentado e dúbio vilão Kylo Ren (Adam Driver), mais do que uma simples dicotomia entre os símbolos do bem e do mal é trazida pelo filme de J.J. Abrams. Aqui, encontramos o personagem do rapaz corrompido desde a infância pelas ideias maléficas daquele lado obscuro citado acima, que acaba por se tornar um patricida, mas que, gradativamente, percebe o grau da manipulação que sofreu (o que não o redime de seu crime, pontuo). Lá, a jovem conhecida como catadora de sucata, mas que se nota possuidora de um poder Jedi que, neste episódio, percebemos esconder muito mais do que o “simples” equilíbrio da Força.

Na união das duas forças manipuladas pela tentação do Lado Sombrio, exatamente o que é necessário para suprir de energia renovada tal símbolo maléfico representado pelo retorno do Império. O que vemos a seguir, porém, é o acordar de uma autopercepção: a de que a força para destruir aquele mal residia na própria jovem. Intocada, Imperceptível. Bastava a sapiência de notá-la e usá-la de maneira perspicaz. Ok, não é necessário ligar os pontos aqui para compreender o simbolismo de Star Wars - ­ A Ascensão Skywalker em tempos tão sombrios e de levantar de forças obscuras em todo planeta Terra.

Eterna princesa Leia (Carrie Fisher): despedida 

FÓRMULA VS ESPETÁCULO VISUAL

Apesar de sua estrutura previsível de reviravoltas no que tange às batalhas espaciais, o encerramento da franquia pelas mãos J.J. Abrams (um declarado aficionado pelo universo Star Wars), faz jus a um objeto de culto de diversos fã radicais, que, óbvio, torcerão o nariz do mesmo modo como fizeram para muitas coisas vistas nos dois primeiros filmes. Porém, mesmo com seus perceptíveis problemas dentro dessa previsibilidade em seu desfecho, como resolução para a saga reiniciada há quatro anos, este último capítulo entrega visualmente os melhores momentos dos três filmes que integram a trilogia.

As lutas entre Rey e Kylo Ren em um oceano revolto, por exemplo, ou o momento em que certo personagem retorna para um emocional reencontro, compõem um belo cenário para um encerramento de peso.  Além disso, vale salientar o impacto do momento em que o elmo de Vader, como a representar todo um falho e vilanesco Império, é derrubado por um golpe de ambos, Kylo Ren e Rey, trazendo mais uma eficiente metáfora para a união daqueles dois pólos da Força contra um mal maior.

E quando um filme consegue te emocionar a partir do choro doloroso de um wookiee diante da perda de um dos personagens pilares daquele universo, bom, seu intento principal conseguiu ser alcançado. E isso em uma obra que lhe impede, mesmo dentro de um universo tão fantasioso, não esquecer, para o bem ou para o mal, do Lado Sombrio que está na realidade do lado de fora da sala de cinema.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 21/12/2019



sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Crime sem Saída


Caminhos Perigosos, Pontes Fechadas


Claustrofóbico e intenso em sua violência, Crime sem Saída, apesar do genérico nome nacional, reflete bem a metáfora das 21 Pontes fechadas do seu título original   


Por João Paulo Barreto

Há um frenesi constante nos 99 minutos de Crime sem Saída (título nacional genérico e preguiçoso que quebra o impacto e a metáfora de seu original, 21 Pontes) que colabora com precisão na criação de uma claustrofobia para seus personagens e, por consequência, para o seu público.

Na história da busca pela captura de dois suspeitos de assassinar oito policiais durante um roubo de drogas, e deixar a cena do crime com 50 quilos de cocaína, essa construção de uma atmosfera claustrofóbica, curiosamente, reflete não em um único local fechado como ponto de partida, mas, sim, toda a ilha de Manhattan. E tal ambientação, construída a partir da busca frenética de um policial honesto dentro de um ninho de ratos corruptos e fardados, alcança este intento não somente com enquadramentos e cenários sufocantes nas suas cenas de tiroteios, mas, de maneira inversa, também nas várias imagens aéreas da cidade de Nova York e das 21 pontes do rio Hudson, fechadas para impedir a fuga dos suspeitos.

Chadwick Boseman, notório ator que interpretou o Pantera Negra nos filmes da Marvel Studios, desenha com precisão a pressão sofrida por seu protagonista, o detetive Andre Davis, dentro daquela rede de corrupção e morte que gradativamente vai se estendendo como cenário para sua busca pelos dois supostos assassinos. Com uma conturbada herança familiar, o filho de um também policial famoso por sua competência, porém morto violentamente em ação, Andre segue os passos do pai dentro de um universo no qual sua sombra e lenda pesam-lhe nos ombros.

Boseman no papel do detetive Andre Davis: peso diante da lenda do pai

PONTES METAFÓRICAS
Aprofundando a trajetória dos dois supostos antagonistas que cometem os crimes (vividos por Stephen James e Taylor Kitsch) com peso semelhante ao que desenvolve o drama do próprio Andre Davis, Crime sem Saída concede uma reflexão acerca dos dois lados daquela trajetória de violência. A mesma violência que massacrou a infância de Andre, mas que, com o guia certo, pôde ser colocado nos trilhos da justiça, foi a que mutilou a família do jovem Michael, fazendo-o ceder a um impulso que, sem o mesmo tipo de guia e direcionado pela fúria constante da não aceitação, o levou para um caminho tortuoso cujo final refletiu em uma tragicidade.

Em seu título original, 21 Pontes, uma pertinente metáfora para tal construção dos personagens em fuga é construída. Ao desenvolver o personagem de Stephen James como um jovem de infância conturbada pela perda do irmão mais velho na guerra do Afeganistão e a tentativa desastrosa de seguir seus passos nas forças armadas, o filme tem no fechamento das pontes de Manhattan para impedir sua fuga, uma rima precisa para todos os caminhos que foram fechados na vida do jovem Michael.

Stephen James, que já havia brilhado em Raça e Se a Rua Beale Falasse, traz em seu olhar perdido durante seus tropeços criminosos, mas obstinado ao perceber o quão profundo é o abismo de corrupção miliciana em que se afunda, um peso essencial para a tragicidade de seu personagem.

Stephen James em sua simbólica cena

REALIDADES DISTINTAS
Nesse paralelo que a obra desenha, exibindo duas vidas oriundas de tragicidades semelhantes, mas escapando por diferentes caminhos, o filme constrói essa relação entre as existências conturbadas de suas duas figuras centrais. Michael, em seu desespero por perceber-se levado em um turbilhão do qual perdera qualquer controle, encontra pragmatismo e um pouco de fé na para encarar os olhos do seu talvez algoz, Andre.

A cena em questão coloca os dois homens cara a cara em um vagão de trem, em mais um dos símbolos da claustrofobia oferecida pelo diretor Brian Kirk (conhecido pela direção de alguns episódios de Game of Thrones). O momento põe os dois personagens apontando armas simultâneas entre si. Dois extremos de uma mesma origem de violência. Dois homens negros em desesperos semelhantes e, gradativamente, vitimas caçadas pelos mesmos algozes.

Em sua conclusão, a cena insere um terceiro personagem. Branco. Corrupto. Assassino. Manipulador. Como um símbolo vergonhoso para uma suposta justificativa para os atos de corrupção, o diálogo que fecha o filme traz uma ótima oportunidade para observar como funciona a deturpação de um sistema de segurança falido moralmente, onde policiais oprimem através do medo, impondo não autoridade, mas, sim, terror. Vindo de um país como os Estados Unidos, a mensagem contida em um filme de rótulo de ação é muito bem vinda à reflexão.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde dia 13/12/2019

domingo, 8 de dezembro de 2019

Western Stars


A Plenitude de um Mestre 


Mescla de documentário e performance ao vivo, Western Stars nos presenteia com um Bruce Springsteen, aos 70 anos, completo em sua sabedoria e talento


Por João Paulo Barreto

Há uma introspecção oferecida por Western Stars, mescla de documentário intimista e performance ao vivo de Bruce Springsteen, que alcança indivíduos além dos seus ávidos fãs que devem comparecer ao cinema para conferir tal experiência. O que Western Stars oferece ao espectador atento para essa pérola em cartaz no Circuito Sala de Arte é uma reflexão acerca da vida em sua completude. Acerca de erros cometidos em uma trajetória e acerca da necessidade de se perdoar no que tange a tais erros. Mas, sobretudo, Western Stars é sobre envelhecer com uma consciência tranquila e uma serenidade que possa lhe dar paz. Independente dos percalços que aquela sua trajetória lhe trouxe, o que esta obra pode lhe oferecer como ser humano, e isso não necessariamente exige uma familiaridade sua com a biografia do boss, é uma redenção intima e uma reflexão sobre o seu próprio envelhecer.

Ler isso pode soar romantizado e idiossincrático, mas a obra de Bruce Springsteen, que completou 70 anos de idade esse ano, dialoga com as pessoas de maneira singular, trazendo reflexos da experiência de uma trajetória com a qual muitos podem se identificar. Lutar contra os próprios demônios, angústias e apreensões é algo que aflige a muitos. É o meu caso. É o caso de muitas pessoas que seguem em frente em tempos tão estranhos e sombrios. Ter a capacidade para reconhecer e valorizar a arte e o poder de um compositor como ele, a força de sua escrita para alcançar um conforto pessoal mínimo, é algo deveras importante para quem se interessa por música como uma força de reflexão.

Bruce aos 70: a serenidade que a longa e sinuosa estrada trouxe

CARISMA E DIÁLOGO

Com um artista notório por seu carisma e criações capazes de dialogar com um público de diversas classes sociais e etnias, podemos encontrar um conforto em letras que abordam desde paixões amorosas (correspondidas ou não, como é o caso de Bobby Jean); dificuldades de uma vida de sufocos financeiros e sonhos despedaçados (The River); superação dessas mesmas dificuldades (Better Days); nostalgia de um tempo bem vivido, mas só reconhecido tardiamente (Glory Days); peso de uma pátria exploradora e corruptamente bélica (Born in the USA); denúncia contra a fascista brutalidade da polícia (American Skin – 41 Shots), além de um (entre vários) hinos do azarado em busca da própria estrela, como é o caso de Born to Run. Bruce Springsteen é aquele tipo de ídolo que, independente do mesmo trazer um som que lhe agrade, suas letras, em algum momento, vão falar diretamente aos seus ouvidos. Basta ficar atento(a).

ENTREGA PESSOAL

Em Western Stars, o boss revisita lembranças de sua vida, aborda seu envelhecimento, sua relação com a esposa Patti Scialfa, e concede ao público um presente especial: um show com o novo álbum homônimo tocado na integra direto de seu secular celeiro, em uma atmosfera brilhante, e acompanhado por uma orquestra com trinta integrantes. Nas faixas do disco, mais um documento da sinceridade e honestidade de um artista pleno, que não esconde os próprios tormentos, preferindo compartilhá-los, distante de qualquer auto-piedade, na busca do evoluir além deles. “É fácil se perder de si ou nunca encontrar a si mesmo. Quanto mais velho você fica, mais pesado aquela bagagem que você carrega e que não superou fica. É quando você foge. E eu cometi muito desse tipo de fuga ”, afirma Bruce, em sua inconfundível voz rouca, entregando um dos muitos diálogos redentores do filme. Em outro momento, ele fala da sua constante luta contra aquele sentimento que o atormenta, referindo-se à luta contra a depressão que quase o 
combaliu. 

Bruce e sua esposa, Patti Scialfa

Passei 35 anos tentando aprender a deixar para trás as partes destrutivas de minha persona. E ainda há dias em que eu preciso lutar conta isso”, salienta o chefe antes de introduzir uma das novas faixas, em um dos momentos mais marcantes da obra.

“Todos nós temos nossas partes despedaçadas. Emocionalmente, espiritualmente, nessa vida, ninguém consegue escapar sem se machucar. Nós estamos sempre tentando achar alguém cujas partes despedaçadas se encaixam com as nossas próprias e, assim, algo inteiro possa emergir”, reconhece Bruce, ao abordar seu casamento de quase trinta anos após vermos imagens de arquivo dos dois bem mais jovens em uma rima exata com a sintonia no palco.

De certa maneira, é bom ver o Boss sorrir, feliz. Se alguém que nos ajudou e fez refletir diante de tantos percalços consegue alcançar essa plenitude após caminhos tortuosos de uma vida, a esperança te aquece o peito de forma especial ao assistir a Western Stars.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 08/12/2019


quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O Juízo


SOBRENATURAL VINGANÇA

Em O Juízo, o crescente destroçar psicológico e físico de um pai e sua racionalidade encontra paralelos na reparação histórica da escravidão no Brasil


Por João Paulo Barreto

A gradativa perda de uma sanidade ameaçada por vícios e fraquezas, juntamente a um estado de ganância cega e inescrupulosa, são o mote principal de O Juízo, novo filme de Andrucha Waddington. Com um título a abordar a proposta dessa perda de uma consciência mental (um juízo de comportamento intimo) diante do não compreensível sobrenatural, a obra de Waddington, escrita por Fernanda Torres, traz essa desconstrução de seu protagonista diante daquilo que ele não entende e que advém do intangível.  Junto a isso, também está aquilo que já o corrói há tempos dentro de um mundo e de uma vida material constituídos por um vício no alcoolismo e as consequentes derrotas atreladas ao mesmo.    

Na figura de um destroçado pai que tenta salvar um casamento fracassado, o drama de O Juízo, além do apropriar de uma alegoria do sobrenatural para contar uma história de vingança, tem nessa desconstrução de seu personagem central sua mais notável característica. Porém, para além dessa proposta direta de análise da quebra psíquica de um homem, Torres traz em sua escrita e título do filme uma questão de juízo e justiça que resvala em uma questão histórica. Na opressão de senhores do garimpo contra escravizados em busca de diamantes da salvação, o longa de Waddington concede ao seu público uma reflexão pertinente do real em uma rima precisa com o gênero do terror e suspense.

“A escravidão que aconteceu no Brasil é algo irreparável, mas que deve ser encarada. É algo que está dentro da sociedade brasileira de uma maneira muito violenta. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Então, é uma questão muito séria. A presença forte de Criolo no papel do Couraça colocou toda essa personificação neste personagem. A encarnação desse Couraça trouxe essa questão ao filme”, explica o diretor Andrucha Waddington.


Criolo e Felipe Camargo: peso em interpretações 

DESMONTAR FÍSICO

Em Augusto, o pai em questão, centra-se a tal desconstrução de um homem a ceder aos próprios fantasmas e àqueles que o cercam de maneira sobrenatural. No papel, Felipe Camargo, em sua postura combalida e expressão de constante pesar, coloca sua presença física de maneira a salientar exatamente essa ideia da loucura que gradativamente engole sua psique.  E Waddington salienta esse crescente de loucura de maneira surpreendente dentro de uma proposta de terror.

Essa abordagem reside no construir de uma ambientação dentro do cinema de gênero que não necessariamente precisa apelar para os sustos fáceis, os conhecidos jump scares, para causar em seu público uma reação artificial diante dos elementos que o filme traz. Assim, naquela casa no interior de Minas Gerais, cercada por montanhas, matas e silêncio, Waddington alcança uma densa atmosfera de tensão que se vale bem mais da sugestão de um terror à espreita do que de algo palpável a gerar em sua audiência qualquer falsa catarse dentro do horror. “Lembro de um filme chamado Os Inocentes, dirigido por Jack Clayton. Um suspense com um toque de loucura, do sobrenatural. Uma obra absolutamente clássica. Foi uma grande inspiração para mim”, afirma Waddington acerca das influências na construção de O Juízo.

Fernanda Montenegro no papel da médium espírita Marta Amarantes

ARQUÉTIPOS E RELIGIOSIDADE

Na história, aqui, o espírito de um ex-escravo e garimpeiro volta em busca de vingança contra a família cujo ancestral o traiu, causando sua morte e a de sua filha. No papel do atormentado Couraça, Criolo cria um personagem cuja dor e um planejamento calculista contra o homem que o traiu anos antes guia sua jornada no pós-morte. Esse pós-morte é um dos pontos louváveis da obra, que, em um ambiente que remete à desolação de um Hotel Overlook, cria para o público uma sensação de sufocamento que, mesmo em um cenário de tamanha amplitude, consegue tornar palpável o desconforto do espectador diante do destroçar físico e psicológico daquele pai atormentado, vitima da vingança e da própria ganância.

“Como referência, de uma maneira geral, eu tenho todos os grandes filmes que vi em minha vida. É algo que fica dentro de você. Vendo essa ideia de um cara que vai com a família para uma casa e lá fica preso, com a loucura a dominá-lo, não tem como não pensar em O Iluminado. São arquétipos do gênero que se você não esbarrar em um, esbarrará em outro. Cabe a você se apropriar da história que está contando e fazê-la da maneira mais autoral e fidedigna para a dramaturgia que está levando para a tela,” salienta o cineasta.

É comum em diversas produções brasileiras vermos a religião espírita ser abordada de uma maneira que se mantém, na maioria das vezes, entre o romantismo e um tom pretensamente científico. Assim, ao inserir a personagem de Marta Amarantes, uma médium espírita em uma proposta que, apesar de se ater ao cinema de gênero, traz um conceito respeitoso e fiel ao espiritismo (e digo isso como alguém que, mesmo ateu, foi criado na doutrina kardecista). Uma abordagem bem vinda para uma obra que, apesar de calcada no fantástico, tem um consciente viés dentro da religião espírita. E com a presença de Fernanda Montenegro a viver a personagem de Marta, é alcançado um peso para um papel que poderia facilmente derrapar em um clichê místico, mas que tem em sua naturalidade outro ponto alto.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 06/12/2019