quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O Juízo


SOBRENATURAL VINGANÇA

Em O Juízo, o crescente destroçar psicológico e físico de um pai e sua racionalidade encontra paralelos na reparação histórica da escravidão no Brasil


Por João Paulo Barreto

A gradativa perda de uma sanidade ameaçada por vícios e fraquezas, juntamente a um estado de ganância cega e inescrupulosa, são o mote principal de O Juízo, novo filme de Andrucha Waddington. Com um título a abordar a proposta dessa perda de uma consciência mental (um juízo de comportamento intimo) diante do não compreensível sobrenatural, a obra de Waddington, escrita por Fernanda Torres, traz essa desconstrução de seu protagonista diante daquilo que ele não entende e que advém do intangível.  Junto a isso, também está aquilo que já o corrói há tempos dentro de um mundo e de uma vida material constituídos por um vício no alcoolismo e as consequentes derrotas atreladas ao mesmo.    

Na figura de um destroçado pai que tenta salvar um casamento fracassado, o drama de O Juízo, além do apropriar de uma alegoria do sobrenatural para contar uma história de vingança, tem nessa desconstrução de seu personagem central sua mais notável característica. Porém, para além dessa proposta direta de análise da quebra psíquica de um homem, Torres traz em sua escrita e título do filme uma questão de juízo e justiça que resvala em uma questão histórica. Na opressão de senhores do garimpo contra escravizados em busca de diamantes da salvação, o longa de Waddington concede ao seu público uma reflexão pertinente do real em uma rima precisa com o gênero do terror e suspense.

“A escravidão que aconteceu no Brasil é algo irreparável, mas que deve ser encarada. É algo que está dentro da sociedade brasileira de uma maneira muito violenta. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Então, é uma questão muito séria. A presença forte de Criolo no papel do Couraça colocou toda essa personificação neste personagem. A encarnação desse Couraça trouxe essa questão ao filme”, explica o diretor Andrucha Waddington.


Criolo e Felipe Camargo: peso em interpretações 

DESMONTAR FÍSICO

Em Augusto, o pai em questão, centra-se a tal desconstrução de um homem a ceder aos próprios fantasmas e àqueles que o cercam de maneira sobrenatural. No papel, Felipe Camargo, em sua postura combalida e expressão de constante pesar, coloca sua presença física de maneira a salientar exatamente essa ideia da loucura que gradativamente engole sua psique.  E Waddington salienta esse crescente de loucura de maneira surpreendente dentro de uma proposta de terror.

Essa abordagem reside no construir de uma ambientação dentro do cinema de gênero que não necessariamente precisa apelar para os sustos fáceis, os conhecidos jump scares, para causar em seu público uma reação artificial diante dos elementos que o filme traz. Assim, naquela casa no interior de Minas Gerais, cercada por montanhas, matas e silêncio, Waddington alcança uma densa atmosfera de tensão que se vale bem mais da sugestão de um terror à espreita do que de algo palpável a gerar em sua audiência qualquer falsa catarse dentro do horror. “Lembro de um filme chamado Os Inocentes, dirigido por Jack Clayton. Um suspense com um toque de loucura, do sobrenatural. Uma obra absolutamente clássica. Foi uma grande inspiração para mim”, afirma Waddington acerca das influências na construção de O Juízo.

Fernanda Montenegro no papel da médium espírita Marta Amarantes

ARQUÉTIPOS E RELIGIOSIDADE

Na história, aqui, o espírito de um ex-escravo e garimpeiro volta em busca de vingança contra a família cujo ancestral o traiu, causando sua morte e a de sua filha. No papel do atormentado Couraça, Criolo cria um personagem cuja dor e um planejamento calculista contra o homem que o traiu anos antes guia sua jornada no pós-morte. Esse pós-morte é um dos pontos louváveis da obra, que, em um ambiente que remete à desolação de um Hotel Overlook, cria para o público uma sensação de sufocamento que, mesmo em um cenário de tamanha amplitude, consegue tornar palpável o desconforto do espectador diante do destroçar físico e psicológico daquele pai atormentado, vitima da vingança e da própria ganância.

“Como referência, de uma maneira geral, eu tenho todos os grandes filmes que vi em minha vida. É algo que fica dentro de você. Vendo essa ideia de um cara que vai com a família para uma casa e lá fica preso, com a loucura a dominá-lo, não tem como não pensar em O Iluminado. São arquétipos do gênero que se você não esbarrar em um, esbarrará em outro. Cabe a você se apropriar da história que está contando e fazê-la da maneira mais autoral e fidedigna para a dramaturgia que está levando para a tela,” salienta o cineasta.

É comum em diversas produções brasileiras vermos a religião espírita ser abordada de uma maneira que se mantém, na maioria das vezes, entre o romantismo e um tom pretensamente científico. Assim, ao inserir a personagem de Marta Amarantes, uma médium espírita em uma proposta que, apesar de se ater ao cinema de gênero, traz um conceito respeitoso e fiel ao espiritismo (e digo isso como alguém que, mesmo ateu, foi criado na doutrina kardecista). Uma abordagem bem vinda para uma obra que, apesar de calcada no fantástico, tem um consciente viés dentro da religião espírita. E com a presença de Fernanda Montenegro a viver a personagem de Marta, é alcançado um peso para um papel que poderia facilmente derrapar em um clichê místico, mas que tem em sua naturalidade outro ponto alto.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 06/12/2019

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