SOBRENATURAL VINGANÇA
Em O Juízo, o crescente destroçar
psicológico e físico de um pai e sua racionalidade encontra paralelos na
reparação histórica da escravidão no Brasil
Por João Paulo Barreto
A gradativa perda de uma sanidade ameaçada por vícios e
fraquezas, juntamente a um estado de ganância cega e inescrupulosa, são o mote
principal de O Juízo, novo filme de
Andrucha Waddington. Com um título a abordar a proposta dessa perda de uma
consciência mental (um juízo de comportamento intimo) diante do não
compreensível sobrenatural, a obra de Waddington, escrita por Fernanda Torres,
traz essa desconstrução de seu protagonista diante daquilo que ele não entende e
que advém do intangível. Junto a isso,
também está aquilo que já o corrói há tempos dentro de um mundo e de uma vida
material constituídos por um vício no alcoolismo e as consequentes derrotas
atreladas ao mesmo.
Na figura de um destroçado pai que tenta salvar um casamento
fracassado, o drama de O Juízo, além
do apropriar de uma alegoria do sobrenatural para contar uma história de
vingança, tem nessa desconstrução de seu personagem central sua mais notável
característica. Porém, para além dessa proposta direta de análise da quebra
psíquica de um homem, Torres traz em sua escrita e título do filme uma questão de juízo
e justiça que resvala em uma questão histórica. Na opressão de senhores do
garimpo contra escravizados em busca de diamantes da salvação, o longa de
Waddington concede ao seu público uma reflexão pertinente do real em uma rima
precisa com o gênero do terror e suspense.
Criolo e Felipe Camargo: peso em interpretações |
Em Augusto, o pai em questão, centra-se a tal desconstrução de um
homem a ceder aos próprios fantasmas e àqueles que o cercam de maneira
sobrenatural. No papel, Felipe Camargo, em sua postura combalida e expressão de
constante pesar, coloca sua presença física de maneira a salientar exatamente
essa ideia da loucura que gradativamente engole sua psique. E Waddington salienta esse crescente de
loucura de maneira surpreendente dentro de uma proposta de terror.
Essa abordagem reside no construir de uma ambientação dentro
do cinema de gênero que não necessariamente precisa apelar para os sustos
fáceis, os conhecidos jump scares, para
causar em seu público uma reação artificial diante dos elementos que o filme
traz. Assim, naquela casa no interior de Minas Gerais, cercada por montanhas,
matas e silêncio, Waddington alcança uma densa atmosfera de tensão que se vale
bem mais da sugestão de um terror à espreita do que de algo palpável a gerar em
sua audiência qualquer falsa catarse dentro do horror. “Lembro de um filme
chamado Os Inocentes, dirigido por
Jack Clayton. Um suspense com um toque de loucura, do sobrenatural. Uma obra
absolutamente clássica. Foi uma grande inspiração para mim”, afirma Waddington
acerca das influências na construção de O
Juízo.
Fernanda Montenegro no papel da médium espírita Marta Amarantes |
ARQUÉTIPOS E RELIGIOSIDADE
Na história, aqui, o espírito de um ex-escravo e garimpeiro
volta em busca de vingança contra a família cujo ancestral o traiu, causando
sua morte e a de sua filha. No papel do atormentado Couraça, Criolo cria um
personagem cuja dor e um planejamento calculista contra o homem que o traiu anos
antes guia sua jornada no pós-morte. Esse pós-morte é um dos pontos louváveis
da obra, que, em um ambiente que remete à desolação de um Hotel Overlook, cria
para o público uma sensação de sufocamento que, mesmo em um cenário de tamanha
amplitude, consegue tornar palpável o desconforto do espectador diante do
destroçar físico e psicológico daquele pai atormentado, vitima da vingança e da
própria ganância.
“Como referência, de uma maneira geral, eu tenho todos os
grandes filmes que vi em minha vida. É algo que fica dentro de você. Vendo essa
ideia de um cara que vai com a família para uma casa e lá fica preso, com a
loucura a dominá-lo, não tem como não pensar em O Iluminado. São arquétipos do gênero que se você não esbarrar em
um, esbarrará em outro. Cabe a você se apropriar da história que está contando
e fazê-la da maneira mais autoral e fidedigna para a dramaturgia que está
levando para a tela,” salienta o cineasta.
É comum em diversas produções brasileiras vermos a religião
espírita ser abordada de uma maneira que se mantém, na maioria das vezes, entre
o romantismo e um tom pretensamente científico. Assim, ao inserir a personagem
de Marta Amarantes, uma médium espírita em uma proposta que, apesar de se ater
ao cinema de gênero, traz um conceito respeitoso e fiel ao espiritismo (e digo
isso como alguém que, mesmo ateu, foi criado na doutrina kardecista). Uma
abordagem bem vinda para uma obra que, apesar de calcada no fantástico, tem um
consciente viés dentro da religião espírita. E com a presença de Fernanda
Montenegro a viver a personagem de Marta, é alcançado um peso para um papel que
poderia facilmente derrapar em um clichê místico, mas que tem em sua naturalidade
outro ponto alto.
*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 06/12/2019
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