quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Dorivando Saravá - O Preto que Virou Mar


O Dorivar de uma Vida



Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar, doc de Henrique Dantas, 
mergulha na trajetória e na religiosidade Caymmi

Por João Paulo Barreto 


O poeta, cantor e compositor Tiganá Santana, em seu depoimento no documentário Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar, traz uma exata definição para Dorival Caymmi e sua relação musical entre o real e a beleza de composições que parecem vindas de um outro lado dessa realidade. Tiganá afirma: “Caymmi é um lapidador do criar. Um homem que desvela descrições profundas do real. O belo dele parece vindo de outro lugar. Parece surreal.  Se a gente vai por tradições negras, a partir de uma leitura de religiões de matrizes africanas, não há efetivamente uma divisão entre dois mundos. Um mundo invisível, espiritual, o é a partir de um mundo tangível”, explica. Na sua exata análise acerca de Caymmi, Tiganá vai mais além: “Há, portanto, o outro lado. Não um outro mundo. Eu acho que Caymmi é um mediador a partir do criativo, das artes. Um mediador entre estes lados“, finaliza o músico.
É com essa apresentação que o norte do filme dirigido por Henrique Dantas, que tem sua estreia nessa sexta, dia 29, na 52ª edição do Festival de Brasília, é definido. Cadenciado em suas imagens poéticas de elementos a representar o lendário Dorival Caymmi e sua relação com o mar e com o Candomblé como um ato de resistência, o documentário se equilibra de maneira precisa entre um desenhar imagético e uma estrutura de depoimentos que guia a plateia pela trajetória do artista. Assim, a convidando a adentrar na profundidade daqueles objetos simbólicos de uma vida repleta de calma e parcimônia como foi a de Dorival. Da mesma maneira que se mergulha em um mar profundo e prístino.
Tiganá Santana fala sobre a poética de Caymmi
Henrique Dantas explica que os objetos simbólicos que trouxe em seu longa vêm de um planejamento minucioso. “Quando começo um filme, uma obra de arte (sou artista visual de formação, mestre e professor em artes visuais), eu entro em um estado de atenção focada naquele universo que quero apresentar”, explica. “Ao me deparar com a história de Caymmi, percebi que os filmes que foram realizados sobre ele eram obras biográficas feitas por pessoas que vivem no sudeste do país e que desconheciam a história preta de Caymmi na Bahia”, salienta o diretor. Um mergulho nessa história é o que é proposto aqui.
MERGULHO LITERAL
O mar se faz presente em sons, imagens e camadas sob as quais se desenrolam causos inesquecíveis do que significa “dorivar” a vida durante aquele mergulho de pouco mais de 85min representado pelo filme de Henrique Dantas. E esse ritmo conduz a audiência do começo ao final de sua trajetória, tanto da vida do Homem que tanto cantou Janaina quanto da série de estórias que degustamos sob o olhar de pessoas que vivenciaram aquele mundo Caymmiano.
Desta maneira, em Dorivando Saravá, desde o começo, é perceptível essa ideia de trazer para a obra mais do que um simples contar de uma trajetória tão rica quanto a do músico através do olhar daqueles que a viveram junto com ele ou que admiram tal existência plena. Ao inserir os citados símbolos da religiosidade de Matriz Africana tão cantada por Dorival em suas canções, a obra coloca em discussão uma necessidade urgente de trazer a música do compositor baiano como um instrumento, também, de resistência contra a violência sofrida por essas religiões em um Brasil neo-pentecostal, onde a política se misturou de maneira pútrida com as igrejas.
Gil aborda a influência de Caymmi em sua geração

Deste modo, a obra dirigida por Dantas traça uma forma de perceber como o abismo de intolerância religiosa que o Brasil adentrou é perigoso.  O movimento neopentecostal no mundo é algo assustador. Existem muitas igrejas no Brasil que falam mais do diabo do que de Deus e nessas técnicas de convencimento e persuasão vão levando as pessoas como gado para onde elas quiserem. Estudei em colégio de freiras em Ilhéus, e, com isso, li muito a Bíblia e posso garantir que nesse livro não existe o ódio plantado por esses falsos profetas,” explica Henrique.
Oriundo de uma época em que as religiões de Matriz Africana eram consideradas criminosas pela lei de então, Dorival Caymmi trouxe seu respeito por esse pilar representativo de boa parte do povo que vive aqui. Em tempos atuais, nos quais “cantoras” se recusam a falar o nome de Iemanjá em canções, olhar para o século XX e ver pessoas como Caymmi valorizando esse rico manancial de cultura e afeto dentro do Candomblé nos faz perceber como estar do lado certo da História é algo que devemos sentir orgulho por tal pertencimento.

O cineasta Henrique Dantas: reconhecer da própria negritude. 

AUTO-RECONHECIMENTO
O processo de pesquisa acerca desse Caymmi negro, não embranquecido por uma sociedade racista e hipócrita, deu ao cineasta Henrique Dantas uma oportunidade de mergulho em sua própria vida e em um salientar do seu auto-reconhecimento como homem negro.
“Meus filmes refletem muito meus mergulhos pessoais e, nesse caso específico, passei por um processo de transformação muito pessoal onde percebi e reconheci a minha própria negritude. Não movido apenas por filosofias ou desejos, mas, sim, por ter passado por experiências modificadoras”, afirma Henrique Dantas. O cineasta, durante o processo de filmagem de Dorivando Saravá, integrou, ainda, uma equipe de curadoria que o ajudou nesse processo pessoal de reflexão. “Sim. Algo muito importante foi o convite para integrar a comissão de seleção da Mostra de Cinema Negro Mahomed Bamba, quando me deparei com 130 filmes pretos que me mostraram muitas das situações que sofri minha vida inteira e não entendia que eram situações de racismo”, finaliza.
Temos na obra de Dorival Caymmi uma forma de nos reconhecermos como brasileiros, como oriundos de uma cultura rica, repleta de respeito e tolerância, que não cedeu nem cederá lugar para truculências oportunistas. Caymmi, que tanto trouxe a calma, o bom humor e a reflexão  como modo de vida, é alguém de imprescindível reencontro na sempre conectada, desatenta e fugaz rotina do século XXI. Permitir-se dorivar é algo que, curiosamente, se tornou urgente hoje em dia. Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar nos dá uma oportunidade única para tal intento.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 28/11/2019



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