sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

O Preço da Verdade


Vidas descartáveis 


Em filme-denúncia, Mark Ruffalo e Todd Haynes entregam a negligência monstruosa da gigante Dupont no condenar de vidas humanas visando lucro

Por João Paulo Barreto

Notório em uma louvável e constante postura ativista no uso de sua voz enquanto privilegiado pela consagrada carreira de ator, Mark Ruffalo tem na sua biografia diversas ações em causas humanitárias, ambientalistas e voltadas para minorias. Como produtor e protagonista de O Preço da Verdade, título genérico e pobre para o impactante Dark Waters (Águas Sombrias, em tradução literal), o Hulk dos filmes da Marvel assume mais um respeitado papel no disseminar de fatos a beneficiar o conhecimento público e provar o cinema como meio de informação além do entretenimento. Sim, por mais que a “namoradinha do Brasil” e lambe botas, Regina Duarte, não ache, o cinema deve, sim, possuir um viés ideológico.

Dito isso, o foco aqui vai para o caso real do envenenamento pela Dupont , a gigante da indústria química, das águas fluviais da cidade de Parkersburg e região, na estadunidense Virginia Ocidental (a West Virginia imortalizada na letra de John Denver). Ruffalo vive o advogado Rob Bilott que, em meados dos anos 1990, quando se tornara sócio do escritório de advocacia onde atuava, recebe a denúncia de Wilbur Tennant, fazendeiro local que perdeu 190 cabeças de gado em circunstâncias estranhas e que o levaram a desconfiar do envenenamento das águas em sua propriedade.
Billot chega à fazenda de gado onde 190 vacas morreram envenenadas

Com uma promissora carreira em defesa justamente de empresas químicas em processos legais, Bilott teve uma reviravolta profissional ao abraçar a investigação contra a Dupont, mesmo que isso viesse a significar lutar contra burocratas que enterram segredos corporativos em anos de processos jurídicos. Como um peso ainda maior em sua consciência, o escritório onde trabalhava tinha na indústria química um parceiro financeiro significativo. Assim, Billot, ao assumir a investigação e processos legais contra a Dupont, foi de encontro a uma palpável fonte de renda em seu próprio ganha pão. Porém, o rastro putrefato de negligências e irresponsabilidades que a empresa trazia em sua trajetória na cidade de Parkersburg e arredores, bem como as ocorrências de tragédias pessoais que tais negligências causaram a seus habitantes, era algo que não se podia ignorar diante do “jogar para debaixo do tapete” que se tornaram as atitudes da Dupont.

DESPREZÍVEL CORPORAÇÃO

O diretor Todd Haynes assume a batuta na criação da atmosfera que, gradativamente, se torna sufocante na vida de Rob Billot diante dos quase vinte anos que O Preço da Verdade traz em seu recorte. Neste período, vemos o homem bater de frente a magnatas da indústria que levaram à frente o uso, por exemplo, do teflon, marca conhecida por tornar impermeável tecidos e facilitar a limpeza de utensílios domésticos.  Tal uso revelou a liberação de produtos tóxicos que, na corrente sanguínea, causaria, dentre outros males, câncer em diversos órgãos. Do mesmo modo, o impacto em gestantes foi percebido pela desprezível corporação, mas ignorado, mesmo que o nascimento de bebês com deformações tenha chegado ao conhecimento dos executivos.

Anne Hathaway vive Sarah, a esposa de Billot: testemunha de um colapso

Mark Ruffalo constrói seu personagem justamente nesse patamar de gradativa perda de um equilíbrio físico e psicológico. Inserindo elipses de tempo eficientes tanto no contar da história pregressa em paralelo à evolução da atuação do advogado no caso, bem como no mostrar do nascer e crescer dos três filhos do defensor, o diretor Todd Haynes dá ao espectador não somente uma noção do peso do tempo que as lutas em tribunais e no contato com as vítimas têm na vida de Billot. Aqui,  ter acesso aos resultados de tais negligências nas vidas de pais de crianças que nasceram com suas saúdes comprometidas afeta, inclusive, a vida do advogado que se coloca no lugar daquelas pessoas.

Assim, não apenas a queda das vitimas diretas da monstruosidade causada pela Dupont, mas o colapso nervoso e físico de um homem que vai entregando todo seu potencial contra uma corporação é exibido nas pouco mais de duas horas de projeção. Quando uma das vitimas reais da empresa química surge em tela, representando a si mesma e tentando viver uma vida normal diante de sua deformação física e sofrimento que lhe perseguiu em sua existência, a pergunta que ele faz a Billot acerca de um jogo esportivo concede um lapso de esperança ao espectador. As manchas daquelas águas sombrias que soam como uma metáfora exata para o que o filme de Todd Haynes nos traz como reflexão para o mundo capitalista e desumano permanecem, porém.

Em tempo: há um documentário intitulado The Devil We Know que aborda com profundidade toda a denúncia feita contra a Dupont. Imprescindível assistir.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 14/02/2020



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