quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

O Homem Invisível


O Mal Bem Visível


Mais um esmero da Blumhouse Produções, O Homem Invisível traz releitura de clássico de 1933 unindo cinema de gênero com uma urgente denúncia ao abuso contra a mulher

Por João Paulo Barreto

Na atualização para os tempos atuais, clássicos cinematográficos de ficção científica, quando recriados, correm grandes riscos de parecerem datados em suas propostas ou ineficientes em uma comparação ao contexto de suas épocas originais. Vide, por exemplo, filmes como O Dia em Que a Terra Parou, marco dirigido por Robert Wise em 1951, e sua versão de 2008, estrelada por Keanu Reeves. Enquanto o primeiro trazia um claro tom denunciatório contra a postura belicista das potências mundiais naqueles anos iniciais da Guerra Fria, quando o fantasma das duas bombas atômicas lançadas apenas seis anos antes ainda assombrava pessoas de todo o planeta, seu remake da década retrasada se rendia a uma simplória proposta de filme de ação. Havia, claro, até um esforço se manter fiel a uma mensagem antibélica, mas todo tom se perdia diante da necessidade do espetáculo visual.  

Adentrando no âmbito dos monstros clássicos da Universal Studios, cujas adaptações da primeira metade do século XX ajudaram a moldar o imaginário dos filmes de terror e ficção científica que viriam a surgir, o cenário não é tão diferente em termos de perda de um frescor (não confundir tal sensação de perda com preciosismo) que as obras originais possuíam. Um exemplo dessa perda são as versões do clássico O Lobisomem, sendo a primeira de 1941 ainda conseguindo construir uma melhor atmosfera de terror que a sua insossa e homônima de 2010.

Cecilia (Elizabeth Moss) em momento chave no sotão

A surpresa, porém, é gigante quando entramos no cinema para encarar uma adaptação de O Homem Invisível, cujo apreço pelo clássico de 1933 dirigido por James Whale é tão grande quanto pelo original literário de H.G. Wells, e percebemos estar diante de uma pérola do horror tanto físico quanto psicológico, bem como uma peça pungente de alerta contra abusos em relacionamentos e contra a violência misógina. Claro que boa parte dessa percepção de sucesso se deve à logomarca da Blumhouse Productions a abrir o longa. Responsável por filmes como Atividade Paranormal, Corra!, A Visita, Fragmentado e Vidro, a empresa de Jason Blum tem dado um revigorante frescor às produções do gênero de horror. Aqui, mais uma vez, não decepcionou.

DENÚNCIA CONTRA MISOGINIA 

Utilizando um roteiro que insere a característica vilanesca de seu personagem título de uma maneira mais orgânica, sem caricaturas, e calcada em uma brutal realidade (no original de 1933, o personagem enlouquece gradativamente por conta da invisibilidade irreversível), o filme de 2020, dirigido por Leigh Whannell, desenvolve tal figura através da perspectiva de sua namorada, Cecilia Kass (Elizabeth Moss).  Vitima de abusos físicos e mentais, a jovem decide fugir do cárcere privado onde era mantida por seu namorado, o milionário empresário e pesquisador do campo da óptica, Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen). E é neste ponto violento e pesado de sua abordagem que O Homem Invisível se diferencia, deixando de ser apenas um filme de ficção científica para se tornar um essencial exemplar de uma união entre o horror e uma temática séria de sua imersão no terror psicológico.

With a Little Help From My Friends: Cecilia busca ajuda

Ao construir sua trama nos tempos atuais, Whannell trouxe para o século XXI não somente o contexto tecnológico de seu personagem título, mas toda uma proposta de alerta dentro de uma questão grave que é a misoginia. E, ainda, além de inserir essa discussão no filme, o roteiro de Whannell desmistifica a postura clichê da presença feminina em filmes de horror. Normalmente vistas como figuras frágeis, manipuláveis e vitimas de dores infringidas por presenças masculinas, a Cecilia de Elizabeth Moss se diferencia por seu pulso firme que, mesmo abalada inicialmente, consegue se sobressair e defender-se diante de tamanha brutalidade contra si.

TÉCNICA E AMBIENTAÇÃO

Na mescla de uma presença física e psicológica, mas com a necessária ausência visual de seu vilão invisível, o diretor Leigh Whannell concede ao espectador uma série de artifícios para desenhar a tensão de sua obra. Sem necessariamente apelar para os sustos fáceis oriundos dos já ultrapassados jump scares (inserções de tons repentinos e altos de trilha sonora ou imagens bruscas para causar impacto na audiência), Whannell prefere trazer seu foco para a sugestão oriunda dessa ausência visual. Assim, contorna a ideia do medo pela “simples” proposta (eficiente aqui, friso) slasher e gore na sanguinolência de seu filme, preferindo causar mais impacto pela sugestão de tais sustos.

E neste trilhar do horror através da sugestão, a presença física de seu vilão vai se desenhando aos poucos em cena. E é bastante recompensador perceber, neste desenhar, as pistas que o cineasta insere de maneira tão orgânica em elementos que se tornarão recompensas centrais para a audiência no desenvolvimento do longa. Dois exemplos são a (apesar de não tão natural) escada com a qual Cecilia presenteia James (Aldis Hodge), o amigo policial que a acolhe; e a cena de maior impacto, quando um extintor de incêndio apresentado em um tenso momento anterior ilustra precisamente este modelo orgânico de pista e recompensa (termo que define artifício do roteiro em plantar elementos em cena) citado anteriormente.
A melhor recompensa, no entanto, é perceber que ainda há vida inteligente no atualmente combalido (e quase rendido a clichês) cinema de gênero.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 28/02/2020




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