sexta-feira, 9 de agosto de 2024

5ª MOSTRA DE CINEMA CONTEMPORÂNEO DO NORDESTE - OFICINA DE CRÍTICA DE CINEMA

 

Exercício de escrita crítica proposto para a
Oficina de Crítica de Cinema na 5ª edição da
Mostra de Cinema Contemporâneo do Nordeste

Ministrante: João Paulo Barreto


Anderson Moreira, Thacyla Mendes e Gustavo Simas


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Café, Pépi e Limão


Texto de Gustavo Simas. 

O livre arbítrio como privilégio

Longa baiano Café, Pépi e Limão escancara a ilusão da escolha em adolescentes em situação de vulnerabilidade


"É só você ler e assinar."
"Mas eu não sei ler."
"E assinar seu nome você consegue?"
"Sim, assinar eu consigo."

 Assinar um documento sem saber o que ele contém. Fazer escolhas, na pele de uma criança, sem ter um rastro de ideia das consequências.

A frase proferida no filme pelo pai de Café, em cárcere, acaba como um espelho da realidade dos personagens que Adler Paz e Pedro Léo trazem no longa de 2022: uma prisão abstrata, abusiva e cruel que forçam Café, Pépi e Limão a assinarem os ‘termos e condições’ invisíveis de uma vida na periferia de Salvador.

A ilusão da escolha e o livre-arbítrio como um privilégio indisponível e distante.

Via de regra, a abordagem de um cineasta ao filmar personagens em situações trágicas e contextos de vulnerabilidade é sempre sensível. O pesar a mão demais ou ‘de menos’, automaticamente ativa um olhar atento da vivência dos espectadores e críticos sobre a precisão e/ou cuidado acerca da realidade retratada. Em termos menos prolixos, é muito mais fácil errar.

Como abordagem para lidar com esse desafio, os diretores o colocam como um filme de contrastes. Contraste através da linguagem cinematográfica e do contraste social mais evidente.

 O contraste separa o filme em momentos. É extremamente habilidoso nas cenas iniciais, de mais leveza e até humor. Somos introduzidos ao universo desses personagens, Pépi, Café e Limão através de uma ótica de ingenuidade esperada da idade, e uma fluidez nos diálogos sem cortes, sustentadas pelas atuações impecáveis das crianças, que parecem um documentário.

A natureza handheld da câmera é igualmente inteligente para traduzir essa franqueza nos momentos leves como também para suportar a ansiedade, drama e sofrimento da trama que se desenrola.

Parto do ponto que os cineastas lidaram bem com o desafio do contraste. A câmera sempre tremida e flutuante traz uma naturalidade crua nas tomadas que é admirável, e nos outros aspectos, insistem em rejeitar artifícios fáceis para falar sobre uma realidade dura.

Em um tema essencialmente sensível, seria mais cômodo usar artifícios diversos como ‘muleta do drama’ para tornar o filme mais comovente, mas a escolha deliberada de não usar trilhas e recursos para emocionar a qualquer custo parece muito acertada. Nesse sentido, sinto uma certa franqueza ao espectador.

A ausência desses elementos não fazem falta, e sim tentam construir a natureza particular de crueldade, incômodo e aflição conforme o filme fica mais denso (confirmada pelo próprio diretor em papo após a sessão, na 5ª Mostra de Cinema Contemporâneo do Nordeste).

Seja através do som da cidade, nos suspiros ofegantes e nos ruídos que permeiam a vida dos personagens, os sons soam como lembretes muito infelizes de uma "maldição" em que estão inseridos. A maldição do falso livre-arbítrio e a possibilidade de sair daquela realidade. A cena em que Pépi retorna para o viaduto, é reflexo dessa mensagem, é absolutamente primoroso na execução - por consequência, cruelmente doloroso assistir. As escolhas de Pépi nunca foram escolhas em primeiro lugar.

O desafio de não deixar a peteca cair até o ato final era enorme. O caminho escolhido foi o mais brutal e cru possível. Confesso que senti que o contraste equilibrado a partir de um ponto parece dar lugar ao ‘chocar pelo choque.’

O silêncio após o último frame, dá lugar, sim, ao incômodo, à revolta, e à tristeza. Mas não incomodaria que na mensagem final do filme tivéssemos pelo menos alguma fagulha ou sinal de resistência. Os adornos petistas e easter eggs do Lula nos cenários trazem um subtexto que muitos vão sorrir, mas diante de tanta crueldade apresentada, talvez era necessário um manifesto mais alto e definitivo além da tradução da nossa realidade quase de forma literal.

Afinal, em tempos como esses, a esperança nunca deveria deixar de ser uma convidada bem-vinda.



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O Dragão da Maldade 
contra o Santo Guerreiro
(Antônio das Mortes)


Texto de Vanessa Elisbão


o coronel é cego

o professor assiste o sangue do guerreiro escorrer. o delegado é covarde - assim como o leão, aquele já famoso de outras histórias, mas nesse caso, sem a estrada que o leva por novos caminhos. aqui existe uma intenção de verdade que existe tal como um compromisso. um compromisso em dizer a verdade: miserável, subjugada e violenta. verdade que acontece no escuro. 

o ódio é só uma das cruzes da vingança (a outra é o amor, por sua vez). o professor existe e semeia a destruição, num solo à beira do caminho, reservado àqueles que ouvem, até sentem e vivem, mas não acreditam. ainda assim, semeia a destruição da ordem, do esperado, da regra, do silêncio ordenado e da obediência consentida. o jagunço se arrepende. santa bárbara tem as vestes de Oyá. tudo é uma batalha, mas a batalha não é tudo; existe como aquilo que produz o novo, como quem traz ao mundo um mundo novo, portanto, não é vazia. expressa uma ontologia metamórfica onde tudo é agitado internamente continua por ecoar em sons, cores e corpos novos. 

assim, as pessoas dançam, festejam e saem à rua, mas a justiça ainda é um teatro. o surrealismo aparece como ode ao mito, ao sonho, à possibilidade. ao futuro que sempre pode acontecer. como quando André Breton diz que a rebelião leva sua justificação em si mesma, completamente independente das chances que ela possui para modificar ou não o estágio de coisas que a determina; ela é a faísca ao vento, mas a faísca que busca a pólvora no paiol.

lindo.

(N.E. um adendo importante: as letras minúsculas são intencionais e revelam um posicionamento de recusa mesmo do maiúsculo. é político, quando penso em bell hooks que diz da recusa egoica intelectual, e estético também, simplesmente porque acho mais bonito.)



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John Wick - Capítulo 4
Baba Yaga



Texto de  Anderson E. Moreira

O dia a dia e a saga de um assassino de aluguel  que voltou a ativa, nesse quarto filme da franquia o que eu pude observar que foi retirada a melancolia que tinha o primeiro filme e adição de mais cenas de porradaria e violência explicita. 

Mas vale ressaltar também que dentro do longa com roteiro de Michael Finch, Shay Hatten e direção de Chad Stahelski pode se encontrar alívios cômicos para tentar arrancar uma gargalha do seu espectador na sala de cinema. 

E, sim, isso aconteceu comigo! Principalmente com o próprio John interpretado por Keanu Reeves e o outro personagem chamado de Rastreador / Sr. Ninguém, interpretado pelo ator Shamier Anderson e seu cachorro fiel escudeiro. 

Nessas idas e vindas depois de um ano que assisti o capítulo 4 tive um estalo desse filme após participar de uma oficina critica de cinema essa tal cena me chamou atenção! Não que as outras com seus planos sequencias bem executados e o ritmo frenético da câmera na mão não chame a atenção de quem assiste, 

Mas a luta nas escadas faz com que a gente sinta na pele aquela adrenalina, e transpondo para o lado social da coisa como eu vi ali eu consegui imaginar um trabalhador que acorda cedo todo santo dia e sobe cada degrau para alcançar uma boa condição de vida, matando um leão e varias outras situações por dia e chega um momento que ele cai e volta novamente lá do começo! 

É o que acontece todo santo dia com as pessoas na sociedade que não desiste e sobe novamente.



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American Fiction





Quando a representatividade se torna caricatura

Texto de Thacy Mendes

A representatividade realmente representa? Ou é apenas ilustrativa?

Com abordagem humorística para discussões sérias, "American Fiction" discorre sobre o papel da representatividade, do pensamento crítico e o perigo dos estereótipos raciais.

O longa dirigido por Cord Jefferson - que teve a façanha de ser indicado ao Oscar logo com seu primeiro filme - conta a história de Monk, um escritor e intelectual que, ao enfrentar dificuldades para vender seus livros, decide assumir um pseudônimo e escrever uma história dotada de estereótipos atribuídos a pessoas negras. Sua intenção era apenas fazer uma piada com os editores, entregando a eles uma obra de má qualidade, contudo, para sua surpresa, a obra é aclamada pela editora, e após a publicação também é abraçada pelo público.

Agora, é importante ressaltar o contexto envolvido na dificuldade do escritor para publicar suas obras. Segundo seu agente, os livros de Monk não eram "negros o suficiente" para as demandas do mercado literário. Nesse ponto questionamos o perigo dos estereótipos e o real valor da representatividade.

O que seria "negro o suficiente"? E com qual regra esse valor é medido? A história que Monk escreve como forma de piada é baseada em crimes e com linguagem pautada em xingamentos. Ainda assim, este livro foi tratado como revolucionário e inovador, tanto pelo público como por autoridades do meio literário.

Enquanto isso, era dito que os outros livros de Monk não atendiam as demandas do mercado literário. Mas então o que mercado busca? Uma representatividade que promova a diversidade ou algo que apenas perpetue a visão de pessoas brancas?

O cenário apresentado em American Fiction denuncia uma representatividade que só importa quando atende a requisitos pré-definidos.

Como o rapper brasileiro Baco Exu do Blues diz na canção Bluesman: "eles querem um preto com arma pra cima, num clipe da favela gritando 'cocaína' Querem que nossa pele seja a pele do crime".

Em determinada cena, Monk vai para uma livraria e percebe que os livros escritos por pessoas negras são todos catalogados como "literatura afroamericana", independente do gênero ou tema, já os livros de autores brancos são devidamente organizados em suas categorias. Essa cena destaca como a literatura (e a arte, de forma geral) de autores negros é frequentemente marginalizada e confinada a um nicho específico, independentemente do conteúdo. Aqui está exposta a tendência de reduzir a identidade negra a uma única categoria, ignorando a diversidade e a complexidade das suas experiências e narrativas, perpetuando a desigualdade e indo contra a tudo aquilo que a representatividade propõe.

O longa também reflete quanto ao pensamento crítico envolvido no consumo da arte, ainda mais quando o protagonista questiona outros personagens negros que também consideraram aquele livro como revolucionário. Refletimos sobre o que consumimos? Prestamos atenção na mensagem transmitida e em como impacta o mundo a nossa volta? Sabemos o que cada obra está comunicando? Ou apenas nos contentamos com o superficial que satisfaz nosso consumo e gera engajamento?

A ficção da trama cutuca a realidade de diversas maneiras. Com tantas camadas envolvidas em apenas 117 minutos de filme, não é a toa que American Fiction levou para casa a estatueta de Melhor Roteiro Adaptado no Oscar 2024.