sexta-feira, 13 de abril de 2018

Baseado em Fatos Reais

(D'après une histoire vraie, França, 2018) Direção: Roman Polanski. Com Emmanuelle Seigner, Eva Green.


Por João Paulo Barreto

É no montar das peças a definir a personalidade doentia da escritora best-seller Delphine Dayrieux (vivida por Emmanuelle Seigner) que reside a captação total da atenção do espectador que assiste Baseado em Fatos Reais, novo trabalho de Roman Polanski, cujo roteiro foi escrito em parceria com o diretor Olivier Assayas. Muito além da simplória e clara percepção de um final um tanto previsível (algo que não chega a diminuir o filme, friso), o longa traz na análise das amostras dos elementos psicológicos que torturam física e psicologicamente sua protagonista seu maior trunfo. Passo a passo, o espectador atento vai observando as rimas temáticas e visuais daquele universo de introspecção ganhar reflexos reais na vida da própria escritora. E é justamente neste ponto que a obra de Polanski encontra sua força.

Vitima de um bloqueio criativo e torturada pelo trauma do suicídio cometido por sua mãe, cujo relacionamento acabou por se tornar tema do seu mais recente livro, a autora sofre um esgotamento psicológico que reverbera em sua própria sua própria rotina de trabalho. Incapaz de lutar contra a tela branca do computador, Delphine cede à curiosidade e decide se encontrar com uma fã que a abordara durante uma sessão de autógrafos. Misteriosa e invasiva, Elle (Eva Green, que usa bem a magreza e os olhares na sua construção) a atrai não somente por representar a figura enigmática que transparece, mas por ser uma crítica sincera de seu próximo livro, ainda em planejamento. Alguém capaz de agir além da condescendência e da admiração, apontando defeitos e pontos de melhoria. Rapidamente, a amizade entre ambas cresce e passa a ganhar contornos de uma dependência afetiva um tanto doentia, ao ponto de Elle se mudar para o apartamento e se auto-intitular sua secretária e a organizadora de tudo relacionado ao trabalho de Delphine.

A invasiva aproximação de Elle na vida de Delphine

BOWIE E O JOGO PSICOLÓGICO 

A partir deste ponto, passamos a observar um jogo psicológico que, apesar de por breves momentos se insinuar com tendências sexuais, logo percebemos se tratar de algo bem mais complexo. Em seu roteiro, Polanski e Assayas, a partir da obra escrita por Delphine de Vigan, constroem um mosaico de pistas que, como já dito, mesmo caminhando para um desfecho previsível, traz para o espectador uma série de ricos elementos que tornam o analisar daquela relação parasitaria entre Elle e seu ídolo um exercício brilhante. A começar pelo modo como, gradativamente, Elle se torna Delphine. A escritora, tomada por tamanha fragilidade física e emocional, permite que a jovem se apodere de tudo que lhe pertence. Desde a senha de seu computador (em uma clara alusão à capacidade intelectual da autora), passando por objetos pessoais, como uma caneca de café, até chegar a um dos elementos mais simbólicos daquele contato: uma camisa com a estampa de Blackstar, último disco que David Bowie lançou em vida.

Ao colocar a garota trajando aquela especifica peça do vestuário de Delphine, algo que representa não somente uma roupa que a autora usa em sua intimidade, mas um símbolo de sua personalidade e de alguém que tem como ídolo, Elle se apossa, também, dos gostos pessoais da mulher. E sendo tal elemento uma imagem que remete a um disco cuja canção título aborda justamente a possessão de uma pessoa quando esta vem a deixar o próprio corpo, bom, não há fragilidade em qualquer desfecho de história que consiga tirar o mérito de tal construção do roteiro de Polanski e Assayas.



RATOS NA CABEÇA

A luta psicológica entre as duas mulheres caminha, assim, para um choque doloroso, com a violência dos atos de Elle contra a escritora extrapolando qualquer suposto cuidado que a mesma venha a possuir no socorrer da convalescente mulher. Porém, neste embate, Polanski e Assayas ainda encontram espaço para mais uma eficiente metáfora retratando o modo aquele relacionamento representa, na verdade, uma autossuperação para Delphine. O momento em questão refere-se à fobia com os ratos existentes em um porão, contra os quais Elle demonstra pânico e total incapacidade de lidar. Tal comportamento leva a própria escritora, doente e incapaz de se mover normalmente, a descer ao local para depositar veneno e armadilhas, em uma clara alusão ao mergulho que a mesma tem de fazer em sua própria psique para resolver aquele conflito.

Mesmo reconhecendo a fragilidade de uma já esperada surpresa final em sua história, observar essas nuances no roteiro de Assayas e Polanski, juntamente com o significado masoquista dos atos da protagonista e o modo como ela mesma consegue superar aqueles conflitos internos, tornam Baseado em Fatos Reais uma experiência das mais satisfatórias.


*Crítica originalmente publicada em A Tarde, dia 11/04/2018







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