quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Bacurau


Somos todos Bacurau!


Com faroeste moderno, cineastas Juliano Dornelles e Kleber Mendonça desenham o triste Brasil do apagamento histórico, humano e cultural que segue em curso

Por João Paulo Barreto

Ao chegar à cidade de Bacurau, no interior do Nordeste, e escutar a explicação acerca do fato de que o nome do local é o mesmo de um pássaro da região, a forasteira vivida por Karine Teles replica dizendo que o animal se encontra extinto. A tréplica da dona da mercearia é exata: “Aqui, não. Mas é que ele só sai de noite. Ele é brabo!” Uma brabeza pela sobrevivência tão necessária quanto a que existe na obra Bacurau, resposta fílmica de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles ao ímpeto de extinguir povos e culturas que atualmente segue em voga por pretensas lideranças no poder.

A resistência contra essa tal morte certa que ameaça seus moradores está logo em sua simbólica imagem inicial, quando, na rodovia que leva a Bacurau (“17km. Se for, vá na paz”, adverte a placa), um caminhão pipa destroça caixões vazios que tomam conta da estrada após um acidente envolvendo o carregamento de uma funerária. De cara, o tom de sua obra é dado.

Em uma densa atmosfera de faroeste moderno, Juliano e Kleber desenham a ambientação de seu longa, quando vemos o futuro distópico brasileiro se confirmar no apagamento proposital de quem ainda ousa resistir. E tal resistência é total no que se refere ao domínio tanto físico quanto ideológico do local onde vivem seus habitantes. Essa é a mesma resistência que vira as costas e fecha as portas para político que, em busca de voto, traz livros velhos, comida, remédios de tarja preta, caixão e vela para angariar apoio, mas que, ao partir, leva uma prostituta local consigo. A cidade de Bacurau é a representação da inteligência crítica que precisa existir e resistir.

A despedida que simbolizará a resistência 

A citada resistência dos seus habitantes está não somente nas armas expostas no museu da cidade, em uma precisa metáfora da História e do conhecimento como poder. Ela já surge nos versos repentistas cantados por Carranca (Rodger Rogério). No repente, poderosa manifestação, mais um símbolo do poder cultural como arma contra o apagamento. Em sua letra, o repentista  enquadra os dois forasteiros que chegam ao lugar com ares de superioridade. “Não quero seu dinheiro”, avisa Carranca. Tal sentimento de superioridade e arrogância é o mesmo do qual os dois forasteiros se tornarão vitimas quando se julgarem membros igualitários do grupo de mercenários contratado para aniquilar toda a população local.

É neste momento que, em seu roteiro, Kleber Mendonça e Juliano Dornelles inserem sua principal noção do que é o Brasil e, mais propriamente, o Nordeste para estrangeiros em situação dominante e o modo como alguns ainda insistem em lamber suas botas. “Você parece branca, mas seu nariz e lábios a entregam,” provoca um dos gringos mercenários quando, entre advertências para não falarem “brasileiro” ali naquele ambiente, sela o fatal destino dos dois.

TRISTE FUTURO

A legenda que abre Bacurau indica aquela realidade ser a de um Brasil em futuro não muito distante. Tragicamente, soa muito bem como o nosso atual presente. No caminhão a desbravar aquela estrada precária repleta de caixões como sinais, segue Teresa (Bárbara Colen), que volta a Bacurau para o enterro de sua avó, dona Carmelita (Lia de Itamaracá, símbolo da música brasileira). Seu reencontro com sua terra é feito de olhares de reconhecimento desânimo por cansaço, como bem demonstra a figura de Domingas (Sonia Braga, de maneira precisa). O pai de Teresa explica para a população que sua mãe gerou muitos filhos, pessoas donas das mais variadas profissões e moradoras de muitas partes do mundo. “A única coisa que ela não gerou foi ladrão,” salienta.

A chegada anunciada à Bacurau da paz

Os quadros nas paredes da casa, em uma precisa direção de arte, desenham a rica trajetória de vida daquela anciã. O símbolo de sua partida é o mesmo que simboliza a morte de toda uma cultura. Não é por menos que é a sua imagem, sorridente e plena, a surgir no clímax do filme, quando todo o plano de aniquilação de um povo e de sua História encontra uma resposta à altura oriunda dos habitantes de Bacurau.

Já a pergunta repetida algumas vezes para os dois forasteiros sobre a possibilidade deles terem ido ao lugar para visitar o museu encontra resposta justamente nisso. É naquele museu que se preservam, ao mesmo tempo, a História e a salvação de Bacurau. A mesma cidade que, em sua independência ideológica e social, se tornou uma ameaça para a dominação constante que se avoluma por todos os lados. Na sua História, a experiência que se ensina ao seu atual povo a maneira precisa de se enfrentar o mesmo mal que se apresentou ali por séculos.

Nesse futuro distópico onde mortes também são oferecidas como opção para fuga, como bem mostra a notícia vista em uma televisão ligada, encontrar a força da resistência sanguinolenta em um símbolo histórico como um museu é por demais recompensador.

A História nos ensina muito. Porém, olhar ao nosso entorno e percebê-la como algo que parece inútil para 57 milhões de eleitores é por demais desanimador.

Mas, sigamos. Continuaremos a ser Bacurau.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 29/08/2019




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