sábado, 6 de março de 2021

Transamazônica - Uma Estrada para o Passado


Rumos Perdidos


TELEVISÃO Com a série Transamazônica - Uma Estrada para o Passado, Jorge Bodanzky revisita a rodovia que serviu como pano de fundo para Iracema, bem como simbolizou o desastre brasileiro na ditadura militar

Por João Paulo Barreto

No Brasil do "passar a boiada", país da exploração irracional e desenfreada da Amazônia em nome de um  "progresso" que só existe para poucos, a História se repete de maneira sempre trágica. Jorge Bodanzky, que dirigiu, em 1975, ao lado de Orlando Senna, o clássico Iracema ­- Uma Transa Amazônica,  conhece essa repetição e a aborda de maneira ímpar, junto ao co-diretor Fabiano Maciel, em Transamazônica - Uma Estrada para o Passado, série em seis episódios atualmente em  exibição pelo canal HBO Mundi.  

Em sua cena de abertura, Transamazônica - Uma Estrada para o Passado, traz uma fala de Bodanzky sobre o aspecto faraônico da obra iniciada no governo do sanguinário Médici. Obra esta que ligava o nada a lugar nenhum, "conectando os famintos do nordeste aos miseráveis do norte". Na sua fala, o cineasta aborda o revisitar a alguns dos pontos daquela estrada inacabada, desde seu quilometro zero, em Cabedelo, na Paraíba, passando por diversos outros locais simbólicos daquele trajeto em direção ao Norte do Brasil. A constatação trazida pelo diretor na entrevista exclusiva ao jornal A TARDE é de que, após diversos retornos seus à Amazônia, à frente deste novo e de outros trabalhos anteriores, aqueles problemas que o seu filme de 1975 destacavam permanecem os mesmos quase meio século depois.

Jorge Bodanzky - Foto de Marcus Leoni - FolhaPress


 "Eu visitei a Amazônia muitas vezes nesse período todo. São 45 anos. E o que eu observei, a partir da primeira vez, é que o os problemas que o Iracema coloca, todos, todos sem exceção, só aumentam. A questão do menor de idade na prostituição, o trabalho escravo, a questão da ocupação do solo, a questão da madeira, os grandes projetos. Todos os temas que o Iracema aborda só cresceram. Eles só aumentaram e continuam aumentando", explica Bodanzky.

PERSONAGENS

Para além do asfalto e do barro que se encontram nos trajetos de suas construções tanto narrativas quanto geográficas, Transamazônica - Uma Estrada para o Passado carrega boa parte de sua força em seus personagens e no modo como seus encontros se apresentam para a audiência. Desde o equilíbrio entre a questão pragmática e científica do registro dos fatos a partir de um historiador que detém vasto acervo tanto material quanto imaterial em sua ligação histórica da estrada, até as questões de fé de um padre e sua congregação em um dos municípios existentes na região, esse encontro com tais figuras enriquecem a série e denotam o denso trabalho de pesquisa. 

"Foi um longo, longo trabalho de preparação. Foi uma equipe de preparação, com o produtor Nuno Godolphim, que viajou durante um bom tempo para achar esses personagens. Nós queríamos mostrar a história da Transamazônica com o testemunho das pessoas que vivem lá. Não adianta falar as coisas pela a gente, apenas. Queríamos que a estrada falasse por ela mesma. E quem é a estrada? A estrada são as pessoas que moram lá. Então, foi um longo e minucioso processo de se escolher esses personagens. Achávamos que cada um, da sua maneira, poderia contar um aspecto dessa história", pontua o diretor.



Depoimentos: Equilíbrio entre pessoas regidas pela fé e pela razão

O produtor Nuno Godolphim apresenta, também, um pouco desse processo, trazendo uma estruturação de cada um dos seis capítulos da série. "Nos três primeiros episódios, ela apresenta essa relação com passado, esses grandes problemas históricos. A partir do quarto, ela dá uma virada  Começamos a sair da estrada e nos aproximar dos problemas de perto. Ela vira quase um thriller. Já no quinto episódio, ainda fora da estrada, conhecemos as populações indígenas. A série vai ter uma coisa mais lírica para lidar com essas populações. E o sexto é esse encerramento lá no fim da estrada onde a floresta não deixou que os militares seguissem a construindo até o Peru, como eles gostariam", explica o produtor.  

PASSADO E PRESENTE

Na série, a citada reflexão histórica em relação ao modo cíclico como os fatos se repetem, torna-se evidente quando observamos todo o planeta olhar com indignação para a destruição amazônica, exceto aqueles que dizem nos governar, que seguem com seu projeto de destruição definido pelo "passar a boiada". Bodanzky, com seus quase cinquenta anos de constante contato com a Amazônia, criva: "Você fala do momento agora, em que a Amazônia só é citada quando tem grandes tragédias. Eu vou até um pouco mais adiante. Acho que a Amazônia é uma tragédia permanente. Ela nunca deixou de ser uma tragédia. Infelizmente. Esses problemas todos se alternam, mas estão sempre presentes", esclarece.

Marco zero da finada rodovia, na da região de Cabedelo (PB)

Em Iracema - Uma Transa Amazônica, um personagem simbólico é o Tião "Brasil Grande", interpretado com vigor por Paulo Cesar Pereio. Com seu discurso ufanista, falacioso e frágil, o caminhoneiro aborda o "progresso" como sendo mais importante que a natureza. A rima trágica com o discurso oportunista e covarde da atualidade é dolorosa. "Os Tiões de hoje são os garimpeiros. São aqueles que falam as mesmas coisas que falava o Tião em cima do caminhão. A política oficial deste governo é exatamente aquilo que o Tião fala. O projeto dos militares que construíram a Transamazônica foi a base de todos os projetos que vieram depois. Mesmo nos governos civis e, principalmente agora, de novo, com uma visão dos militares sobre a ocupação da Amazônia. É a mesma. Não mudou nada. Na cabeça das pessoas que planejaram a Amazônia durante a ditadura militar nos anos 1970, é a mesma (visão). Veja o que o general Mourão está falando. É a mesma coisa, hoje. Absolutamente a mesma. Em 50 anos, não conseguiram enxergar a Amazônia de uma maneira diferente", finaliza Jorge Bodanzky.   

O medo da tragédia que se anuncia não somente com a constante destruição da Amazônia, mas com a combinação do fracassado projeto militar da Transamazônica ecoando junto ao genocida projeto de Brasil atualmente em curso, é palpável. Olhar para o passado, aprender com essas tragédias e não repeti-las é urgente. Desesperançoso e inalcançável diante de tanta ignorância , admito, mas urgente.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 07/03/2021






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