(Brasil, 2011) Direção: José Henrique Fonseca. Com Rodrigo Santoro, Aline Moraes, Angie Cepeda, Othon Bastos, Herson Capri.
Em tempos de jogadores que simulam contusões para não entrar em campo (vide o caso do atleta do Fluminense, Fred, que, recentemente, admitiu ter fingido uma lesão em um jogo –pasmem – da seleção), conhecer uma figura como Heleno de Freitas, atacante do Botafogo durante o final dos anos 1930 e na década seguinte, acaba por gerar inevitáveis comparações entre a época atual e a de outrora.
Temperamental e violento dentro e fora de campo, Heleno era o tipo de craque que valia por todo o time, como demonstram as manchetes de jornais que contextualizam a imagem do jogador logo no começo do filme. É quando conhecemos a sua figura já em um estado de saúde debilitado, internado em um asilo para deficientes mentais. A incrível expressão magra e sofrida de Rodrigo Santoro já nos dá uma pista de que aquela atuação impressionará pela entrega que o ator fez ao personagem.
Corta para os tempos áureos do jogador. No auge da forma física, mas, contraditoriamente, sempre fumando, uma característica marcante tanto para ele quanto para sua futura esposa (e uma de suas muitas mulheres), Ilma, vivida por Aline Moraes, Heleno é um bon vivant não muito diferente dos já citados jogadores da atualidade, mas que se destaca por sua dedicação ao futebol não como um emprego, mas como uma paixão. A contradição da vida de Heleno é constante. Sempre bebendo e apenas enquadrado sem um cigarro entre os dedos quando em campo, o jovem segue uma vida desregrada, repleta de vício (cheirar éter é um deles) que apenas segue uma linha rígida quando a meta é a vitória no estádio.
Transformação: Rodrigo Santoro se supera e entrega sua melhor atuação
“Treino é jogo!”, berrava para seus colegas de time exigindo um maior comprometimento por parte deles. Batia no peito enquanto cantava o hino do Botafogo e se recusava a ficar com o dinheiro do bicho, grana oriunda do público pagante e rateada entre os atletas. “A gente só deveria receber qualquer dinheiro quando ganhasse”, bradava enquanto destruía o vestiário a chutes após perder o título para o rival Fluminense por não ter convertido um pênalti em um momento decisivo do jogo. Essa era a característica que diferenciava a figura de Heleno para os jogadores atuais, cuja, até mesmo, imagem lhes gera lucros. Seu compromisso para com o Botafogo transcendia até mesmo o cuidado com a própria saúde.
Infectado com sífilis, reflexo de sua vida sexual sem limites, Heleno se recusa a fazer um tratamento por julgar que poderá se tornar impotente. Um claro sinal da ignorância por trás da fachada glamourosa do rapaz. Para um homem que tem tudo e cujo interesse principal de vida centra-se em “futebol, cadilacs e cinturinhas”, ganhar o mundial de 1950 vem em primeiro lugar. O resto, inclusive sua saúde, pode esperar. Um erro que, invariavelmente, lhe cobrará um preço caro como veremos ao final.
Meta: esquecendo-se de si, Heleno apenas visa a vitória em campo
Brilhantemente fotografado pelo experiente Walter Carvalho, o filme possui em seu preto e branco características visuais que remetem a Touro Indomável, (não por acaso outra cinebiografia de um atleta de vida conturbada). As imagens dos jogos durante fortes chuvas deixam bem claras as referencias à obra de Scorsese. Outro ponto louvável é a reconstituição de época do Rio de Janeiro. Utilizando imagens de arquivo de um modo que consegue contextualizar bem a primeira metade do século XX, Heleno possui uma eficiente direção de arte e figurino, que retrata de modo satisfatório os personagens naquele momento da história.
Utilizando o futebol como uma moldura para um drama eficiente e uma história de vida fascinante, o diretor José Henrique Fonseca (de O Homem do Ano), capta de forma tocante o drama interno do jogador ao perceber suas chances de conquistar um título ou de jogar no Maracanã irem se esgotando. E com a dedicação de Santoro ao papel, fica difícil não se cativar pela dramática história de vida de Heleno.
Em uma das cenas mais tristes do filme, o vemos observar, pela TV, Pelé durante a copa de 1958. Sua expressão é uma mescla de arrependimento e frustração. Algo que uma vida de excessos fez se tornar sua expressão costumaz.
O diretor Walter Carvalho afirma que, após concluir a pós-produção de Raul – O inicio, o fim e o meio, documentário que esmiúça a vida pública e familiar do mito Raul Seixas, morto em 1989, sentia como se ele estivesse ali, tamanha a presença que o mito do rock nacional é capaz de causar. Também, não é para menos. Após reduzir um material bruto de 400 horas para um produto final de duas horas de duração, Carvalho só poderia, mesmo, enxergar o Raul em todo canto. “Eu queria mesmo era que ele estivesse aqui, dividindo essa barra comigo”, afirmou, durante essa divertida entrevista. Este veterano diretor paraibano que migrou para o Rio de Janeiro em 1968, aos 21 anos de idade, foi testemunha de todo o movimento musical que a cidade simbolizou nos anos 1970 e 1980. Responsável por levar às telas a vida de outro mito da música brasileira, Cazuza, e por fotografar boa parte dos melhores filmes nacionais dos últimos 15 anos, Walter afirma que, assim como aconteceu com o longa sobre o poeta carioca, foi o Raul quem o escolheu para esse desafio. Não diretamente, claro, mas ele diz contar com a sorte para ter essas oportunidades. Foi assim com Cazuza e, agora, ela se repete com Raulzito. Uma coisa é certa: os sortudos são, mesmo, os espectadores que poderão conferir a partir do dia 23 toda a genialidade de Raul Seixas através da óptica desse talentoso diretor. Com a palavra, Walter Carvalho.
Olá Walter! Tudo bem?
Olá, meu querido. Tudo bem com você?
Tudo beleza. Walter, antes de a gente começar a entrevista, eu queria te falar uma coisa. Ano passado, na ocasião da Mostra de São Paulo, eu li uma entrevista sua sobre o seu filme na qual você dizia que era somente o público que iria poder dizer se você deu ou não conta de colocar a história do Raulzito em duas horas de projeção. Olha, o que eu vou te dizer agora não será dito como jornalista, mas, sim, como apenas um bom baiano fã de rock e de Raul: você deu conta, cara. Você mandou muito bem. Ao sair do cinema, confesso que me senti extasiado, realmente muito impactado por aquelas imagens e depoimentos. A minha trajetória de vida teve muito Raul Seixas por causa de meu pai e o momento do filme onde Trem das 7 é ouvida foi a que me causou maior emoção.
Puxa, obrigado. É muito bom ouvir isso. Eu me emociono ao ouvir isso, porque você, mesmo me dizendo que fala não como jornalista, mas você sendo um, acaba possuindo uma visão e leitura muito mais aguçadas do que, normalmente, o espectador comum teria.
Na ocasião da Mostra, você falou, também, que tinha pelo menos quatrocentas horas de material para trabalhar na montagem, transformando-as em apenas duas horas de filme. Qual foi o processo que você e o montador Pablo Ribeiro tiveram que seguir para estruturar tamanha quantidade de material?
Eu estava diante de mais de quatrocentas horas de material. E olha que eu não filmei toda essa quantidade. Eu filmei duzentas e poucas horas, o que já é um absurdo. E juntando com as que eu tinha de arquivo, dava mais de quatrocentas horas. Agora, é preciso que se diga o seguinte: eu fiz 94 entrevistas. Isso é um absurdo em termos de documentário. Essas entrevistas, inclusive, grande parte delas eram de pesquisa. A parte de Salvador, onde eu escutei muitas pessoas, era puramente de pesquisa. Por exemplo, eu não conhecia o Olival (Dias Viana Filho, amigo de infância de Raul). Então, foi preciso fazer entrevistas que serviam, ao mesmo tempo, como pesquisa e como descoberta. O Olival, para mim, é uma descoberta. É um dos melhores momentos do filme por sua espontaneidade e pela revelação que ele faz. O Olival foi a melhor maneira que eu encontrei de dizer por que o Raul gostava de Elvis e por que ele o imitava. Então, respondendo sua pergunta, o que eu fiz foi pegar uma grande folha de papel onde coloquei a foto do Raul no centro e fiz uma série de quadrados em volta da cara dele. Fixei na parede da sala de montagem e fui colocando o nome das pessoas que eu tinha entrevistado com uma linha central que representava o nascimento, a infância e a morte. De um lado, eu tinha a parte, digamos, inicial do Raul, que eram os produtores, a cidade de Salvador, e do outro lado eu tinha a parte familiar. Eu não dividi isso de forma tão intencional, mas, aos poucos, aquilo foi se organizando daquela forma. Então, em um dado momento, eu descobri que estava com um filme que tinha dois planos: o primeiro era privado e o segundo era público. A cortina que conduz o plano privado acontece de forma cronológica. E o plano do público, do Raul artista, ele acontece de forma fragmentada, tanto que eu começo o filme com ele já cantando Luiz Gonzaga, já cantando Let me sing e desenhando no peito com batom a ansata (imagem que ilustra o cartaz do longa). Mas, ao mesmo tempo, ali está acontecendo um outro plano que é o nascimento do Raul, sua adolescência imitando Elvis Presley, sua mudança para Raulzito e seus Panteras na Bahia. Daí ele vai para o Rio de Janeiro, conhece Paulo Coelho, as suas mulheres, seus casamentos, seus filhos e, por fim, sua morte. Ou seja, essa vida privada é absolutamente cronológica: ele nasce e ele morre. O filme não tem medo dessa cronologia. Mas o que a perturba e que é uma coisa da própria cabeça do Raul é a sua vida pública, que ao mesmo tempo que corre junto, ao mesmo tempo elas se cruzam. E tem hora que esse privado vem para frente, tem hora que quem está em evidência é a vida pública. Então, essa é a estrutura narrativa do filme. Como é que eu chego a isso? Exatamente a partir desse núcleo que eu chamei de “genealogia da trajetória”. Eu fui com os nomes de cada pessoa envolvida na vida do Raul escrito nesses quadradinhos (produtores, parceiros, amigos, mulheres), vendo quem tinha relação com o Raul e quem tinha relação entre si. Desse modo, eu fui traçando retas e analisando cada viés. Na ilha de montagem, com meu editor, na solidão de um ano e meio, de seis a oito horas por dia, eu ia cruzando a montagem naqueles assuntos e ia descobrindo coisas. Cada assunto levava a outro viés no papel. Eu ia traçando setas de uma mulher para outra, de um amigo para outro, de uma das mulheres do Raul para um produtor. Quando terminou, se você visse o emaranhado que isso ficou, riscado na parede da sala... (risos). Houve momentos em que eu ia para casa (pausa), cara, eu ia para casa completamente perdido! Quer dizer, não é bem perdido. Eu ia para casa perturbado. Perturbado! Primeiro porque você fica com a voz do Raul dentro da cabeça. Eu, no final da montagem, achava que o Raul estava ali. Eu comecei a achar que eu era amigo do Raul.
E agora? Essa voz do Raul ainda está presente? Ainda mais estando aqui, na terra natal dele.
Eu vou te falar: hoje, quando eu estava no avião chegando a Salvador e olhei lá para baixo, eu tive uma sensação em que precisei me conter. Porque eu queria muito que ele estivesse aqui. Como eu queria que ele fosse enfrentar comigo o que eu vou enfrentar. Hoje, historicamente, eu estou entregando esse filho ao público. A partir de hoje, às 21h30min (horário em que a pré estreia ao público começou), o filme já não me pertence mais. Ele me pertence até às 21h29min. Depois disso, eu não terei mais nenhum poder sobre ele. Acabou. É o público quem vai dizer se eu dei conta ou não da vontade que eu tinha de fazer um filme sobre um mito. Filmar um mito é difícil porque você não tem como defini-lo. Eu inventei um Raul. Eu descobri, encontrei e inventei um Raul. Eu tinha um bloco de quatrocentas horas, como se fosse um sólido, que eu tive que ir arrancando pedaços de tudo que não era o Raul. Eu fui deixando dentro um Raul que eu fui encontrando e, ao mesmo tempo, inventando. Inventando a partir de que? Inventando a partir da memória das pessoas. Eu não tinha memória para saber qual era a relação dele com o irmão. O que o irmão dele me diz no filme é fundamental. É como se eu tivesse uma colcha de retalhos desorganizada. Colada de forma desorganizada. Quando eu escuto o Plínio (Seixas, irmão de Raul); quando eu escuto a Kika (Seixas, ex-mulher de Raul), o Olival, o Roberto Menescal, o Pedro Bial ou o Caetano Veloso, eu vou organizando esses retalhos até formar uma unidade, ou pelo menos uma harmonia dessa colcha de retalhos como um todo. Esse pano recortado com uma certa organização, é o Raul que eu inventei.
Essa estrutura que você citou traz para o filme algo que é bem notável. O modo como você inseriu as mulheres da vida do Raul, a fase de cada uma delas, e contrapôs opiniões para gerar um diálogo. E o mesmo você fez com os compositores. Há um momento em que você até brinca com essa rivalidade entre Paulo Coelho e Cláudio Roberto (parceiro de Raul na composição de, por exemplo, Maluco Beleza) colocando em um frame uma briga de galo, para apimentar ainda mais essa questão.
(risos) É, veja bem, o que o Paulo (Coelho) é? Ele é um escritor. O quê que eu fiz para perguntar ao Paulo sobre o Raul? Ao invés de chegar lá e perguntar assim “Como foi sua relação com o Raul?”, eu preferi ler os dois primeiros livros do Paulo e encontrei nas páginas relações, vieses, metáforas, analogias dele com o Raul. Então, toda pergunta que eu fazia para o Paulo Coelho, havia uma introdução dizendo “na página tal do seu livro, um personagem toma tal atitude. Essa mesma atitude, você tomou com o Raul em relação ao sistema. Por quê?” Então ele respondia com base no próprio livro. E o que ele faz, além de escrever? Ele é um arqueiro zen. O Cláudio Roberto, o que é? Ele é um cara que mora em um sitio, afastado do Rio de Janeiro duas horas, cheio de galinhas e outros animais, hortas, plantas, um cara que fica deitado numa rede e que cria galos. Ou seja, um atira flechas e o outro cria galos (risos). Então, eu perguntei para o Paulo: ”Paulo, quem é o parceiro mais importante do Raul?” E como ele é uma pessoa extraordinária enquanto inteligência, ele disse: “O parceiro mais importante do Raul é o próprio Raul“. O resto, que são essas analogias do galo e do arqueiro, fica por conta do espectador. Aí, bicho, aí você é o imponderável. Por que, eu lhe digo, se chega uma mosca em Genève, na Suíça (referindo-se à entrevista dada por Paulo Coelho em sua casa em Genève quando uma mosca interrompeu a conversa), onde, segundo o Paulo, não costuma haver moscas, eu imagino que é uma questão de sorte. Eu sempre digo isso. O documentarista precisa ter um pouco da sorte do goleiro na hora do pênalti. Isso, claro, é uma alusão ao filme do Wim Wenders, O Medo do Goleiro diante do Pênalti. No caso do documentarista, esse medo vem do que pode acontecer durante a entrevista. Algo que, por exemplo, venha a extrapolar sua própria capacidade de investigar.
A tal mosca durate o papo com Paulo Coelho foi, realmente, surpreendente.
(risos) Bom, imagina só: eu estou diante do Paulo Coelho, o maior vendedor de livros depois do Harry Potter. São mais de 500 milhões de livros vendidos. E, óbvio, existe uma música do Raul chamada “Mosca na Sopa”. Pois então, durante o papo com ele entrou uma mosca e passou a perturbá-lo. Bom, isso é a sorte do goleiro. Agora, o goleiro, além de ter a sorte de pegar a bola, ele tem que lidar com o acaso que é a escolha do lado certo onde a bola vai. Ou seja, o acaso daquele momento da mosca poderia passar despercebido por mim. Mas eu não permiti que isso acontecesse. Eu levei até as últimas consequências, porque eu fui muito ajudado pela sorte. Observe: primeiro apareceu uma mosca. Ele poderia ter assustado ela e continuado a falar, certo? No entanto, ele parou e falou: “Estranho, uma mosca. Não costuma ter mosca em Genève”. A mosca insiste. Aí ele faz o segundo comentário: “É o Raul”. Aí ele faz o terceiro comentário: “Não vou matar”. Ou seja, eu peguei vários pênaltis em uma partida só. Não é qualquer goleiro que pega três, quatro pênaltis em uma partida só. Eu peguei três pênaltis! Uma sorte! Foi algo que Deus deve ter falado assim: “Vou ajudar aquele cara, ali. Vou ajudar ele e o Raul” (risos). E ainda culminou com o Paulo fazendo aquele gesto de matar a mosca. Ele ainda ficou olhando para câmera com a boca aberta querendo rir durante uma fração de segundo suficiente para você não entender o que está acontecendo, algo que, claro, foi para a montagem final. São dessas coisas que o documentarista anda atrás.
Você tem a experiência de ter filmado a vida do Cazuza, e agora você filma o Raul. A vida de Gonzagão está sendo filmada agora pelo Breno Silveira (diretor de 2 Filhos de Francisco). Como um bom nordestino, você gostaria de ter assumido esse projeto?
Olha, eu gostaria muito de ter podido filmar essa história. Infelizmente não tive essa oportunidade (pausa). Curiosamente, estreia agora no final de março um filme que eu fotografei que é o Heleno. O personagem título é um ex-jogador do Botafogo que foi muito famoso e que morreu do mesmo modo que o Raul: cheirando éter. Eu sou o fotógrafo desse filme. Quando eu fotografei o Heleno, eu tinha acabado de terminar a montagem do Raul. E os dois vão ser lançados no mês. Parece coisa combinada com o diretor (José Henrique Fonseca), que é muito meu amigo, mas é uma coincidência curiosa. Dá até para fazer analogias porque os dois acabaram a vida cheirando éter.
Nos filmes que você fotografou, o espectador não consegue enxergar muito facilmente um estilo, uma marca. Eles são bem díspares em relação ao estilo. Para exemplificar, basta observarmos Amarelo Manga, Lavoura Arcaica e Central do Brasil, filmes que, no que se refere à fotografia, são trabalhos muito diferentes. Você costuma ter uma referência própria que sempre insere nos seus trabalhos, ou essa unicidade em cada filme já seria uma marca?
Eu acho que essas características são diferentes porque elas nascem de dentro do filme para fora. Eu, quando comecei a fotografar, ainda garoto, via uma coisa bonita em um filme e guardava aquilo. Aí quando eu ia fazer um filme, eu tinha aquilo em minha lembrança e queria fazer igual porque era bonito, era funcional. Eu estava trabalhando completamente errado. Um dia, eu saquei que era o contrário. Eu tinha era que entender e descobrir a fotografia que eu tinha que fazer dentro do próprio filme. E aí, quando o roteiro é escrito, de alguma forma, querendo ou não, existe uma luz ali dentro. Existe uma imagética ali dentro. As pessoas acham que a função do fotógrafo é iluminar a cena. Mas, não. Não é isso. A função do fotografo é descobrir dentro daquele roteiro, dentro daquele universo daquele argumento, qual é essa luz. Na mesma proporção que o ator tenta descobrir que personagem é aquele. Por isso que o Marlon Brando de O Poderoso Chefão é diferente do Marlon Brando de O Sindicato dos Ladrões.
Ou ainda mais impressionante a diferença dele em O Último Tango em Paris. Assusta ainda mais saber que ambos são do mesmo ano.
São do mesmo ano? Pois é, imagina só. Eu não tinha pensado nisso. Por aí você percebe. O cara em um filme é uma coisa e em outro é algo completamente diferente. Há profissionais que você observa a fotografia deles em algum filme e logo percebe que é um trabalho dele. Isso porque ela remete a ele os códigos que foram vistos em outros filmes. Isso não é uma crítica, friso. Mas é um caminho que eu não sigo. Nos trabalhos que fotografei não dá para acontecer isso porque cada filme tem uma fotografia própria que está dentro dele. Cabe a você descobrir qual é essa imagética. Às vezes eu descubro, às vezes eu chego perto e em outras eu nem chego a descobrir, realmente. Mas a minha busca é essa. Eu não penso na câmera, eu não penso na luz, eu não penso no filtro. Eu sou obsessivo dentro do roteiro. Por que? Bom, por exemplo, quando um ator entra em um ambiente, uma sala no escuro onde ele acende um abajur, o espectador é capaz de jurar que a luz exibida é oriunda dele. No entanto, aquela é uma luz cinematográfica. A luz do cinema é uma luz que você não vê. Ela está fora de quadro. É uma luz construída, mas, para mentir, por isso que o fotógrafo tem que ser um mentiroso, ele convence o espectador que aquela luz é realmente do abajur. Porque se ele for acendê-lo pura e simplesmente, aquela luz não será útil. Essa imagem, se for feita assim, ela não vale para o filme. Para valer, você precisará inventar uma luz que o filme entenda que aquilo é um abajur de uma sala e que vai clarear o ambiente. Aí é que está a questão da imagética, da visualização, da volumetria dos objetos em relação a sua captação e a sua representação aos olhos de quem assiste.
E o Lula (Carvalho, filho de Walter, fotógrafo do filme Raul – O inicio, o fim e o meio) está seguindo teoria semelhante?
Ah, o Lula está mandando bem pra caramba (risos). Agora mesmo ele está na Espanha fotografando um filme inglês, depois segue para os Estados Unidos. Mas o que eu acho bacana é filmar por aqui mesmo. Digo isso porque estou com saudade dele e não o vejo faz um tempão. Mas ele tá danado, sabe? (risos) O Lula acredita no cinema meio que de uma forma religiosa. Ele jogou a vida dele em cima disso e talvez por isso esteja mandando tão bem.
Na fotografia do Raul, você influenciou o Lula de alguma forma?
Eu influencio muito pouco os fotógrafos com quem trabalho. A minha teoria como diretor é semelhante a de um maestro em uma orquestra ou como um técnico de futebol: quem faz o gol não é ele, quem bate a falta não é ele, quem dá o drible não é ele. Quem sola, ou toca o piano não é o maestro. Mas todos eles estão sob uma regência. Sob uma estratégia, um comportamento que ele coloca para os seus comandados, sejam eles músicos ou jogadores. O diretor de cinema nada mais é do que isso. As pessoas falam muito que o cinema é uma arte coletiva. Não é porque tem muita gente no processo. Eu digo isso porque, por exemplo, eu já estive envolvido em projetos que tinha mais de cinquenta pessoas participando do processo, mas cada uma delas estava fazendo um filme diferente. Não é a quantidade de pessoas que faz o filme ser coletivo. O que torna o filme coletivo é a partitura ser tocada de forma harmônica e conduzida por um maestro que comanda o andamento, o diapasão, o ritmo, o brilho daquela orquestra. O diretor nada mais é do que isso. Portanto, o fotógrafo está para mim assim como o diretor de arte, o figurinista, o técnico de som, o montador. Então, a minha discussão com o diretor de fotografia é essa: nós temos uma série de elementos, certo? Como é que vamos circular entre esses elementos? Como diz o Godard, o cinema não é coisa nenhuma. O cinema é o que está entre as coisas. E essas coisas é o que vai eleger para o fotógrafo. Então, não adianta eu dizer assim para ele: “cara, clareia isso, escurece aquilo”. Eu posso estar até contribuindo de alguma forma, mas eu também posso estar tirando a possibilidade dele fazer uma coisa que eu não conheço. E, claro, eu não posso ser suficientemente capaz de dizer nada para ele naquele momento porque eu estou vendo todo o conjunto. Então é preciso que você ponha a bola para o cara chutar. Se não o filme não se constrói. O Andrey Tarkovskiy (diretor soviético de obras como Solaris, falecido em 1986) falou uma coisa muito interessante no seu livro, Esculpir o Tempo. Ele fala que enquanto o sangue não circular em uma mesma artéria por toda equipe, não haverá filme.
(Anderson Silva: Like Water, EUA, 2011) Direção: Pablo Croce. Com Anderson Silva, José Aldo, Júnior dos Santos, Ramon Lemos dentre outros.
Nos últimos anos, a mídia esportiva foi invadida por uma nova febre de mercado batizada de MMA (sigla em inglês para artes marciais misturadas). Bancada a peso de ouro pela UFC (Ultimate Fighting Championship), organização que promove os campeonatos de lutas livres em diversos países, essa alegoria do fascínio humano pela violência se tornou conhecida (e apreciada) por pessoas de todo o mundo, gerando um mercado que rende centenas de milhões de dólares para os organizadores.
Claro que Hollywood não ia demorar muito a perceber esse filão. Em tempos decadentes para antigos astros como Jean Claude Van Damme, Chuck Norris ou até mesmo Jackie Chan, abordar o dito “esporte” MMA se tornou razão de pressa para os produtores. Por sorte, os espectadores, até o momento, foram agraciados por duas produções que merecem uma atenção delicada. Guerreiro, filme de 2011 estrelado por Tom Hardy (provando talento antes da superexposição que terá com Batman) e Nick Nolte, indicado ao Oscar pelo papel. Acertando ao focar a relação pessoal e profissional que os lutadores têm com sua profissão, o longa ficcional se assemelha em parte à história apresentada nesse doc., Anderson Silva: Como água.
Comandado pelo estreante na direção de longas, Pablo Croce, vencedor do Festival de Sundance como revelação na categoria documentário, Como água apresenta o sereno e sorridente Anderson Silva, lutador brasileiro, campeão mundial, invicto há quinze combates. Considerado o melhor lutador da história do esporte (palavras do próprio criador da modalidade, Dana White), Anderson foge de muitos estereótipos que o espectador leigo de artes marciais (eu, por exemplo) está acostumado a ver. Sempre simpático e reflexivo nas próprias declarações, o lutador apresenta um perfil totalmente diverso de seu oponente, o estadunidense Chael Sonnen, cujo confronto pelo cinturão é apresentado como foco principal deste filme.
Silva e Sonnen se encaram na véspera da luta: parte do entretenimento
A produção acompanha o treinamento de Silva durante os meses que antecederam o combate, realizado em 2010. A partir de depoimentos do próprio Anderson e de sua família, amigos, empresário, treinador e colegas de profissão, vemos a construção de um novo ídolo para os aficionados por esse tipo de competição. Equilibrando de forma funcional as personalidades do lutador brasileiro e de Sonnen, o roteiro, escrito a quatro mãos, consegue manipular um antagonismo clássico nesse tipo de filme que, por mais que seja um documentário, possui o mesmo tipo de recompensa para o espectador que obras como Rock ou os filmes do já citado Van Damme trazem no final.
Deste modo, não é com surpresa que percebemos nossa torcida pelo brasileiro que se mantém impassível diante das provocações feitas por seu oponente. Curioso que basta uma reflexão mais aprofundada para percebermos que Soonen apenas cumpre sua parte no jogo de divulgação do evento, algo que, inclusive, é muito bem recebido por patrocinadores e pelo próprio White, dono da competição e que, diga-se de passagem, condena veementemente o comportamento introspectivo de Silva.
Batizados de forma espalhafatosa de “Gladiadores do Século XXI” por Galvão Bueno (bem de acordo com ideia mercadológica de sua empregadora), os lutadores desse dito esporte apenas refletem a psicopatia da sociedade desse mesmo século. Claro, não é necessário manter um discurso hipócrita em negar que a torcida pelo brasileiro é inevitável. No entanto, é o próprio filme que apresenta, através de sua imagem final, com Anderson saindo da luta em uma ambulância, e na declaração de sua mãe, que classifica como “imbecil” a forma do filho ganhar (muito) dinheiro, a melhor definição para esse “esporte”.
Observação: Apesar de bem justificado pela introdução de Bruce Lee no começo do filme, Como água acabou sendo uma péssima escolha para o título no Brasil. Já nasce como piada pronta.
Pina (Alemanha, França, UK, 2011) Direção: Wim Wenders. Com Regina Advento, Malou Airaudo, Ruth Amarante, Rainer Behr, Andrey Berezin, Damiano Ottavio Bigi.
No mesmo ano, os brasileiros foram agraciados com duas das melhores utilizações da tecnologia 3D que dois dos cineastas mais consagrados do mundo trouxeram para o cinema. A primeira, Hugo, dirigida por Martin Scorsese, inovou por conseguir aplicar a terceira dimensão de modo não gratuito, como em várias produções desde a popularização dessa tecnologia na década passada. O cineasta, de forma inteligente, percebeu que o 3D necessitaria de muita profundidade de campo para se fazer presente de forma ideal. O outro diretor a estrear nesse segmento é Wim Wenders, que trouxe para o 3D o primeiro filme-conceito da dança artística.
Pina é um tributo à alemã Philippine Bausch, ou apenas Pina Bausch, coreografa, dançarina e diretora da companhia Tanztheater Wuppertal, falecida subitamente em 2009, ocasião em que, em parceria com Wenders, organizava um documentário ilustrando o balé que dirigia. Com a inesperada morte de Pina, o diretor alemão precisou modificar a ideia central do documentário, mas declarou que a manteve do modo como havia imaginado junto a bailarina. O resultado acabou sendo um magnífico trabalho em homenagem a uma mulher que dedicou a vida à dança e modernizou o balé contemporâneo ao utilizar influências da vida dos próprios dançarinos na criação das coreografias.
A beleza do filme encanta e se valoriza pelo inteligente uso do 3D
Pina, o filme, mostra-se tecnicamente indefectível no conceito que Wenders almejou alcançar. Desde o primeiro momento do filme, quando somos apresentados a cidade de Wuppertal, na Alemanha, e ao local onde a companhia de dança realiza seus números, percebe-se o cuidado do diretor em explorar a profundidade de campo de seus takes de modo a valorizá-los ainda mais por conta do 3D. A presença dos dançarinos no palco torna-se ainda mais impactante. Logo no número inicial, The Rite of Spring, quando a questão da sexualidade é apresentada de modo simbólico e elegante, vê-se os dançarinos encenando o desejo carnal através de respirações ofegantes e do pertinente uso da cor vermelha para representar a libido. O modo como a movimentação da câmera através de travelings parece fazê-la dançar com os corpos dos dançarinos, juntamente com o 3D, tende a querer nos colocar no palco junto a eles.
O filme, também, trabalha de modo interessante as fusões de dentro para fora do palco e vice versa, como no momento em que uma das dançarinas possui o mesmo movimento em diferentes ambientes, tornando elegante o modo como o montador Toni Froschhammer resolveu unir as duas cenas a partir de um peça do figurino do espetáculo. No entanto, é a imaginação de Wenders que surpreende ao utilizar trucagens aparentemente simples de imagem para brincar com o espectador: vide a cena onde o corpo delicado de uma das dançarinas é confundido com o de um musculoso colega de dança. Ou até mesmo a bela referência à passagem do tempo que o número Kontakthof traz, com diversos bailarinos em diferentes faixas etárias que são confundidos em cena com versões mais velhas ou mais novas de si mesmos graças ao eficaz trabalho de montagem e à utilização de diversas câmeras.
O equilíbrio humano é sutilmente trabalhado pelas coreografias
Fugindo de forma intrigante da fórmula “cabeças falantes” que diversos documentários trazem em sua estrutura, Pina apresenta vários dançarinos da companhia trazendo suas impressões de sua falecida mentora através de expressões faciais e depoimentos em voz over. É surpreendente como, sem apelar para excessivas utilizações de imagens de arquivo ou depoimentos da própria Pina, conseguimos construir a personalidade da mulher idealizadora daquele balé. E é realmente triste perceber a falta que ela faz aos seus discípulos.
Ao final, a reflexão sobre a frase símbolo de Pina Bausch, “Dance dance, otherwise we are lost” é a de que é bem mais recompensador ser feliz através da própria arte e da dedicação que ela exige.
(EUA, 2011) Direção: Nicolas Winding Refn. Com Ryan Gosling, Carey Mulligan, Bryan Cranston, Albert Brooks, Ron Perlman, Oscar Isaac.
Em certo momento de Drive, o personagem anônimo de Ryan Gosling utiliza a velha metáfora do escorpião que pica outro animal que o havia ajudado e se justifica dizendo que não poderia evitar: aquela era a sua natureza. Ao sermos apresentados ao motorista sem nome, percebemos seus trejeitos calculados, sua personalidade monossilábica e a forma como ele parece esconder algo sobre si. E durante todo o primeiro ato do filme, ficamos esperando para que aquela máscara caia. Quando ele afirma, sem precisar aumentar o tom de voz, que vai empurrar os dentes de alguém garganta abaixo, não é com surpresa que descobrimos a verdadeira natureza do rapaz. E quando sua face ensanguentada toma toda a tela, temos a certeza sobre quem é aquele homem.
Drive apresenta-se como um filme lento não no sentido negativo da palavra. Longe disso. Muito longe. O ritmo do filme é conduzido pela constante postura de observador que o motorista mantém sobre a própria vida e sobre a vida de quem o cerca. Ao explicar como funciona seu método de trabalho e o quão irredutível é a sua ideia dos cinco minutos nos quais ficará disponível para seu contratante, já vemos mais uma prova do seu metodismo. Nas palavras do próprio, ele apenas dirige. Não porta armas, não entra em esquemas. Só dirige, levando ladrões do ponto A ao B exibindo com maestria o domínio da arte da fuga. Observar como ele prefere parar ao invés de seguir em disparada salienta o quão calculista é sua visão.
A delicadeza de Irene contrasta de modo gritante com a brutalidade de seu mundo
Ao se envolver com uma mãe solitária (Carey Mulligan), cujo marido está na cadeia, o motorista percebe-se inserido em um mundo que, até então, lhe era desconhecido. Sempre exibindo um olhar de curiosidade acompanhado por um sorriso tímido (a atuação contida de Gosling é mais uma prova de seu talento), sua personalidade encontra uma paridade em Irene e no pequeno Benicio. Os três parecem precisar dessa unidade que o convívio lhes traz. E ver o protagonista observando o trafego da janela do apartamento de Irene, nos faz perceber o quanto ele almeja não ter que voltar para aquele universo novamente.
Com uma trilha sonora setentista e créditos iniciais que parecem ter saído direto dos anos 80, o filme reinventa o gênero da violência urbana de modo a deixá-la impactante sem apelos gratuitos. A montagem econômica traz uma velocidade à trama que dispensa cenas desnecessárias. Observe o momento em que Irene precisa da ajuda do motorista. Em dois cortes e sem nenhum diálogo, entendemos toda a sequência. Usando de modo eficaz a edição de som, as cenas onde a brutalidade do filme é exibida causam ainda mais impacto. Principalmente a cena que se passa em um elevador. Vemos por apenas um brevíssimo momento o que está acontecendo, mas o som está presente de modo a nos fazer perceber exatamente o que ocorrera com o homem que cruzou o caminho do anti-herói.
Louvável ver um filme capaz de elevar a um patamar de qualidade tão notório o conceito de violência não estilizada. A sua presença consta como algo intrínseco à trama, não como uma alegoria. E quando vemos o motorista caminhando naturalmente na rua com seu habitual casaco branco tingido de sangue, percebemos como ela faz parte de sua natureza. O escorpião em sua costas lhe cai muito bem.
(The Artist, França, Belgica, 2011) Direção: Michel Hazanavicius. Com Jean Dujardin, Bérénice Bejo, James Cromwell , John Goodman, Penelope Ann Miller, Uggie.
“Eu não vou falar! Eu não vou falar!”, brada o herói vivido pelo canastrão George Valentin em mais um dos filmes mudos de sucesso estrelados por ele. E será esse o dilema pelo qual o próprio George passará em sua vida profissional. George acredita que o futuro do cinema reside não nos filmes falados. As pessoas não vão querer pagar para ouvi-lo falar, apenas para vê-lo. Afinal, George perderá o status de artista se aderir àquela nova forma de se fazer cinema? Ou aquele futuro é inevitável e só resta ao ator abraçá-lo?
Essa é a simples trama de O Artista, filme estrelado pelo carismático e sorridente Jean Dujardin e dirigido pelo cineasta francês Michel Hazanavicius. Uma ideia realmente simples, mas que o diretor resolveu contar de forma totalmente imprevisível e criativa. Sim, O Artista é um filme mudo. É um filme que parece, realmente, ter sido rodado em 1927, ano em que a história começa a ser contada. Todas as características que contextualizam o filme como sendo dessa época estão ali. Desde a razão de aspecto da tela até a utilização da trilha sonora presente em quase 100% da projeção, passando, claro, aos diálogos auxiliados pelos letreiros ilustrativos.
Os tempos áureos quando o nome de George Valentin atraia multidões
George vê sua fama e prestigio serem menosprezados a partir da ascensão dos filmes falados (“O futuro do cinema”, como prega o Al Zimmer, o produtor vivido por John Goodman). Orgulhoso e autoconfiante, George decide continuar como produtor e ator independente, dirigindo seus próprios filmes mudos. Claro que, como a história já conta, o cinema falado viria para ficar. O ano de 1927 foi, inclusive, o mesmo do lançamento de O Cantor de Jazz, primeiro longa considerado falado. A carreira de George entra em declínio. “A audiência quer carne nova, George”, explica Zimmer.
Uma dessas “carnes novas” é Peppy Miller (Bejo), atriz que galgou seu caminho em busca do estrelato de modo paciente e eficaz. Ganhou fama momentânea ao protagonizar um beijo dado no rosto de George durante a première de seu filme (uma cena que reflete bem as diferenças do século XXI para aquele começo do século XX no que tange ao comportamento dos fãs em relação aos seus ídolos). Talentosa, Peppy acaba se tornando o símbolo platônico de George e, também, o retrato daquela nova era que o ator tanto quer renegar.
Um dos méritos do filme foi o de trabalhar a relação entre George e Peppy de forma idealizada. Há, claro, uma típica tensão romântica entre ambos, mas o roteiro não se baseia nisso para desenvolver a história dessa amizade. Sim, é bem mais uma amizade do que um romance. Uma admiração mútua que os tornam fãs do trabalho de cada um. George, que esconde em seu sorriso a infelicidade de seu casamento falido, passa a observar em Peppy uma presença feminina que não possui em sua vida conjugal. Não que exista culpa em sua esposa Doris (Miller). Ela apenas não faz parte daquele universo do show business. E as cenas dos vários cafés-da-manhã que os dois tomam refletem bem como aquela relação está desgastada. Em uma brilhante referência a Cidadão Kane, vê-se a rotina corroendo ainda mais aquele relacionamento.
Doris, esposa de George, se faz a mesma pergunta sobre Peppy
Contando com uma ideia estupenda e realizada de forma inteligente, O Artista brinca com a evolução do cinema como ferramenta de entretenimento na época a qual se passa a trama. Curioso observar como os filmes mudam de contexto a partir de 1929, período notório pela depressão econômica nos Estados Unidos. Deixam de lado os romances e passam a ser feitos aventuras de capa e espada em filmes cujo herói realmente faz jus a esse adjetivo. É o público visando o cinema com um escapismo. O filme utiliza a ideia do som ambiente (ou diegético, oriundo da própria narrativa) como um modo de apresentar aquele novo universo não somente a nós, espectadores, mas, também, aos personagens da trama que são, afinal, espectadores de toda aquela revolução cultural e tecnológica.
Para tanto, Hazanavicius utilizou uma contagiante trilha original de Ludovic Bource (parceiro habitual do diretor), que consegue transmitir toda a emoção das cenas cujos diálogos ficam em segundo plano. Em primeiro plano acabam por ficar os olhares e os sorrisos. Principalmente os sorrisos, uma vez que boa parte da enérgica presença em cena de Bejo e Dujardin se faz pela capacidade que ambos têm usar seus carismáticos rostos para cativar os espectadores. E em um filme onde não é possível usar a própria voz para atuar, tudo se fixa na expressão. E, claro, o cãozinho Uggie, verdadeiro herói do filme, que com toda sua coragem acaba sendo o único amigo de George nos momentos em que ele mais precisou.
Amigos inseparáveis: George Valentin e seu cãozinho
Como homenagem ao cinema, O Artista é um filme indefectível. Uma obra que consegue colocar em apenas 100 minutos de projeção, toda uma profusão de detalhes relacionados à sétima arte que deixariam Harold Lloyd ou Charles Chaplin orgulhosos. Impossível não admirar um filme que brinca de modo tão criativo com a ideia de suicídio e o tal som de BANG! possivelmente proferido pela arma.
Em pleno 2011, um filme que trouxe de volta todo o encantamento de se ver uma apresentação de sapateado. Fred Astaire e Eleanor Powell sorririam entre palmas.
(Journey 2 - The Mysterious Island, EUA, 2011) Direção: Brad Peyton. Com Josh Hutchson, Dwayne Johnson, Michael Caine, Luis Guzmán.
Confesso que ao entrar no cinema para ver um filme de aventura com apelo infantil que tinha como Dwayne Johnson o protagonista, não esperava sair contente ao final da projeção. Quando os créditos subiram, precisei admitir que a produção conseguiu um bom resultado ao mesclar elementos da literatura de Julio Verne (A Ilha Misteriosa, 20 mil léguas submarinas), Jonathan Swift (As Viagens de Gulliver) e Robert Louis Stevenson (A Ilha doTesouro) em uma história enxuta que, abraçando a proposta do longa, não insulta a inteligência do espectador.
O filme, continuação da produção de 2008, Viagem ao Centro da Terra, que também contava com a presença de Josh Hutcherson, narra a história do jovem verniano (designação aos leitores fãs de Julio Verne) Sean, que decifra um sinal em código Morse a partir de uma estação meteorológica. Convencido de que a mensagem (que contem referencias às principais obras dos autores citados) vem de seu avô desaparecido, Sean, com a ajuda de seu tutor Hank (Johnson, que também assina como produtor executivo) descobre nela coordenadas escondidas que poderão levá-lo à ilha misteriosa do título e ao avô do garoto, um aventureiro vivido por Michael Caine.
O filme possui na figura sempre carismática de Luiz Guzmán , que interpreta Gabato, o piloto de helicóptero que levará a dupla até o local onde a ilha supostamente estará, sua variação cômica que, após algumas piadas, acaba cansando a paciência do espectador. A ilha, claro, repleta de perigos, segue bem as referências literárias, com os animais grandes que se tornam pequenos e vice e versa. Sendo assim, elefantes que cabem na mão, aranhas imensas, tubarões como peixinhos em aquários e lagartos gigantes (em uma cena chupada de Avatar), passam a compor a rotina dos aventureiros.
Claro que não convém levar muito a sério o perfil investigativo de Hank, que convenientemente como veremos no final do filme, é um ex-fuzileiro naval expert em submarinos. Mas não deixa de ser curioso ver os momentos de humor perpetrados por ele, como a cena da dança do peitoral (!?) ou perceber que a versão de What a Worderful World executada por ele mostra que, pelo menos, o cara tem talento como cantor.
Apesar de seguir a básica estrutura de “fuja do lugar antes que seja tarde demais”, Viagem 2 diverte por suas intenções não muito ambiciosas (o filme tem 90 minutos) e pelas cenas de ação bem construídas, como a já citada fuga do lagarto gigante, as passagens no fundo do mar ou o voo em cima de abelhas gigantes. Nessas cenas, o 3D acaba sendo bastante eficiente, tornando-as ainda mais divertidas.
Ao final, admito que fiquei contente ao notar o gancho para a continuação também baseada em Verne. Se mantiver o mesmo nível de diversão deste, será bem vinda.
(Jack and Jill, EUA, 2011) Direção: Dennis Dugan. Com Adan Sandler, Al Pacino, Katie Holmes.
Alguns filmes não merecem nem uma linha de reflexão a seu respeito. Falar de Cada um tem a gêmea que merece, novo “trabalho” de Adam Sandler, é chutar cachorro morto na sarjeta. Fato. No entanto, a participação de Al Pacino no longa me força a escrever alguma coisa sobre este filme. O roteiro é bem simples. Jack é um produtor de comerciais casado e que possui uma irmã gêmea desagradável que tenta evitar ao máximo. Quando descobre que, a convite de sua esposa, a gêmea Jill (também interpretada por ele) passará o feriado de Ação de Graças em sua casa, o homem tenta a todo custo expulsar a mulher de seu lar.
Com esse fiapo de história, que tem, claro, na figura de Sandler seu roteirista, veremos uma sucessão de piadas clichê envolvendo a suposta falta de adequação do “Sandler mulher” (não consigo chamá-la pelo nome da personagem) na vida romântica. Também, pudera, o modo grotesco como o roteiro a pinta, inserindo cenas envolvendo sudorese excessiva, roupas com manchas de suor nas axilas e (claro que não poderia faltar) o movimento intestinal e flatulento da personagem, exigiria de qualquer homem um árduo esforço para enxergar a tal “beleza interior” da mulher.
E é daí que surge a ideia nefasta de colocar na figura de Pacino a presença desse homem. Talvez enxergando como uma oportunidade de fazer piada de sua lenda ao inserir frases marcantes de personagens como Tony Montana ou Michael Corleone, Pacino topou interpretar a si mesmo como possível par romântico do Sandler mulher. Alguns momentos, como quando ele está no palco interpretando uma peça de Shakespeare e insere uma frase marcante de O Poderoso Chefão até geram certos risinhos, mas a repetição insistente dessas piadas de referência acaba cansando.
No final, ao vermos o próprio Pacino pedir para queimar todas as cópias e não deixar ninguém ver o que ele acabara de fazer soa como um pedido de desculpa proposital, uma forma de fazer piada da própria infelicidade. Creio que a infelicidade pertence a quem estava do lado de cá da tela.
Ps. Para quem já viu o filme, saliento que preferi não citar a participação de Johnny Depp que, de forma até inteligente, optou por restringir a alguns segundos sua presença em cena.
Inteligente? O linha entre o bom humor e a estupidez é bem tênue.
(We need to talk about Kevin, EUA, UK, 2011) Direção: Lynne Ramsay. Com Tilda Swinton, John C. Reilly, Ezra Miller.
Uma das frases clichê proferida a respeito da criação de filhos é aquela que diz que “quem não o faz chorar no presente, chora por ele no futuro”. Esse pensamento martelou minha mente durante boa parte da projeção de Precisamos falar sobre Kevin, novo filme protagonizado por Tilda Swinton. Será mesmo que uma criação calcada na punição através de castigos, palmadas, cintos ou retaliações mais duras ajudaria a manter uma criança mais centrada no bom comportamento? Muitos tenderiam a dizer que não. No entanto, a percepção de um problema de não adaptação social que migra da infância para adolescência requer um cuidado bem maior do que o visto na criação do pequeno Kevin. Algo que a violência não resolveria, como poderemos comprovar no filme.
Eva (Swinton) sempre possuiu o espírito aventureiro. As imagens que abrem o longa com ela na famosa festa espanhola da Tomatina, onde milhares de pessoas guerreiam com tomates até as ruas virarem um mar com a polpa do legume, classificam bem seu comportamento fora das convenções sociais. Quando conhece Franklin (John C. Reilly) e se apaixona, não tarda muito a engravidar. Kevin nasce em um lar feliz. Os pais se mudam para uma bela casa no subúrbio, mas é perceptível que Eva não possui vocação para ser mãe. Esse julgamento pode parecer precipitado, uma vez que é comum algumas mulheres perderem o controle emocional com a depressão pós-parto e as dificuldades para criar um recém nascido. Porém, as falas da mãe para com o bebê confirmam essa teoria. “Se você não tivesse nascido, mamãe estaria na França, agora”.
Eva em sua fase de liberdade antes do casamento
Kevin, apesar de ser um bebê saudável, chora o tempo todo, levando a jovem mãe ao desespero. Em uma cena non sense, ela pára em frente a uma britadeira no intuito de encobrir o barulho da criança com o som da máquina. Não tarda muito a desconfiarem de possíveis problemas auditivos ou de fala no garotinho. Até um possível autismo. Mas nada é diagnosticado. Kevin, excetuando o fato de não responder aos impulsos da mãe e ainda usar fraldas em uma idade já avançada, é uma criança normal. Ocorre que comportamentos maliciosos e provocativos, como o de já possuir controle de suas funções fisiológicas e, ainda assim, usar as fraldas para provocar Eva ou o de usar um momento de raiva de sua mãe (o que gera sequelas físicas no garoto) para chantageá-la emocionalmente, acaba por mostrar que Kevin possui um comportamento social que poderá evoluir para algo bem mais grave no futuro.
Mesmo ausente, Franklin, o pai, se esforça para manter um ambiente harmonioso em sua família. Apesar de ser manipulado por Kevin, que se comporta de maneira diversa na presença dele, Franklin não percebe a crescente psicopatia do filho para com Eva. Aliás, ele nem chega a perceber a segunda gravidez da esposa, algo que denota bem sua ausência. Quando ouve Eva culpar Kevin por certo ato que acaba levando a um acontecimento grave com a caçula do casal, Franklin se nega a cogitar que seu filho tenha alguma culpa no ocorrido.
Apáticos, Eva e Franklin tentam administrar os crescentes problemas domésticos
Utilizando de forma um tanto óbvia (mas eficiente) a cor vermelha como uma representação da trágica vida de Eva, a diretora Lynne Ramsay cria uma rima visual que torna esse simbolismo uma ótima maneira de mostrar como o ato final de Kevin impactou a vida de sua mãe. Desde a cena inicial, quando Eva se encontra imersa nos tomates, até sua obstinada limpeza da fachada de sua casa recentemente vandalizada (numa clara metáfora da necessidade de limpar sua própria vida), o vermelho se faz presente como uma lembrança dolorosa de Kevin. Deste modo, a relação entre mãe e filho é trabalhada de forma a torná-los dependentes um do outro, algo bem revelado pelas cenas onde vemos fusões nos rostos dos dois, por exemplo. E o filme, que mantém como surpresa a ação do adolescente até os seus momentos finais, torna perturbadora a ansiedade por esse desfecho, uma vez que os flashbacks e a narrativa fragmentada mantêm o espectador ciente de que algo muito grave está por vir.
O maior mérito da produção é o de exibir as sequelas que a ação do rapaz trouxe para sua mãe. É através dela que conhecemos a outra face de uma tragédia: a de quem fica. A de quem vai sofrer todas as ações de culpa pelos atos de seu descendente. Hostilizada pelas pessoas nas ruas e excluída socialmente através de uma ação que fugiu ao seu controle, Eva se vê sozinha em um mundo onde não conseguirá se readaptar. Curiosamente, é no abraço daquele que provocou sua desgraça que ela encontrará o único consolo para seus erros.
Após visitar a biografia do jazz man Charlie Parker e um dos momentos mais marcantes da trajetória do ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela, Clint Eastwood volta sua lente para outra figura que ajudou a compor o século XX. Dessa vez, o veterano diretor investigou a vida de John Edgar Hoover, chefe do FBI durante 48 anos. Na figura envelhecida (e ineficiente) de Leonardo DiCaprio, a produção começa com a imagem do homem revivendo suas memórias. E será através de diversos flashbacks que o filme focará a vida pessoal por trás da (perceptível) falsa fachada de durão que J. Edgar transpareceu durante toda sua vida.
O filme retrata a vida do jovem John Edgar desde o começo de sua carreira profissional, em 1919, no Departamento de Justiça dos Estados Unidos, local onde passou a investigar estrangeiros em solo americano seguindo toda a paranóia comunista que começava a rondar o solo ianque e que culminaria com a ascensão do senador Joseph McCarthy na famosa “caça às bruxa” dos anos 1950. Mostrando a motivação do protagonista contra os partidários bolcheviques de forma maniqueísta, Eastwood foca a origem desta dedicação anticomunista enquadrando-os como terroristas, uma vez que o longa já se inicia com um atentado a bomba na casa de um dos superiores de Edgar. Ou seja, o diretor acaba demonstrando certa preguiça ao exibir somente no lado americano das intenções políticas da época.
A ineficiente maquiagem transforma o jovem DiCaprio na figura idosa de Hoover
A partir das palavras do próprio Edgar, conhecemos sua trajetória profissional na caça aos famosos gangsters queridinhos da mídia, como John Dillinger, Pretty Boy Floyd e Baby Face Nelson. Em um dos melhores momentos do filme, vemos a decepção de Hoover ao perceber que os vilões da história, ou seja, os gângsteres, acabam se tornando os heróis com a ajuda do cinema. Após exibir um discurso de Edgar em uma sessão de cinema (onde foi vaiado, inclusive), Eastwood utiliza cenas de Inimigo Público, filme da Warner, de 1931, no qual James Cagney interpretava criminoso, o que acaba colaborando com a ascensão dos elementos como heróis da mídia.
Através de eficientes (porém previsíveis) elipses, o filme viaja durante todo o período em que Edgard esteve na direção do Bureau. Eastwood, através do roteiro de Dustin Lance Black (Milk) consegue captar bem toda a insegurança pessoal que havia por trás da fachada rígida e, supostamente, impenetrável de Hoover. Um homem inseguro, que cogita pedir a mão de uma garota em casamento após o primeiro encontro, pois precisa provar para si mesmo que é heterossexual. A garota em questão, Helen Gandy (Namoi Watts) passa a acompanhar o chefe do FBI durante todos os seus 48 anos de gestão.
Em uma atuação que, perceptivelmente, acaba se apoiando na maquiagem deficiente (algo que se estende para todos as versões idosas dos elenco principal), DiCaprio utiliza diferentes entonações na voz para demonstrar toda a fragilidade da personalidade do seu protagonista. E se soa deslocado ouvir a mesma voz jovial do ator em uma imagem plástica e envelhecida, é na versão jovem do chefe do FBI que ele consegue se destacar melhor. Procurando falar sempre rápido para que não percebam sua evidente gagueira quando está nervoso, DiCaprio consegue exibir toda a fragilidade do personagem ao inserir curtas pausas para recomposição antes de continuar seus discursos.
O atormentado Edgar entre conservadorismo materno e sua paixão
Contando com uma reconstituição de época e de figurino primorosa, J. Edgar apresenta o período de toda primeira metade do século XX de modo competente, algo que já é esperado nos trabalhos de época que o diretor decide realizar (basta observar o recente A Troca). E é realmente prazeroso vê-lo inserir na trama todos aqueles personagens históricos como o aviador Charles Lindbergh, que teve seu bebê raptado e o seqüestrador encontrado pela equipe chefiada por Edgar. Além dele, o filme trabalha bem figuras como a de Robert Kennedy e Franklin D. Roosevelt.
Claro que muito do mérito e ousadia da produção em trabalhar os conflitos internos do protagonista com suas preferências sexuais se deve ao trabalho de Black, conhecido também pelo seu ativismo na defesa dos direitos dos gays. É justamente a sutileza com que esse incômodo do personagem com sua homossexualidade não assumida é trabalhada que mostra a maturidade perceptível da direção de Eastwood. Ao manter todas as cenas entre Hoover e seu assistente, Clyde Tolson (Armie Hammer, de A Rede Social), com uma palpável tensão sexual, o diretor acerta em algo que, friso, denota o principal desconforto de J. Edgar em sua vida pessoal. Afinal, o que esperar de um homem repleto de problemas com sua personalidade, que devotou à sua mãe conservadora (Judi Dench) toda atenção e apego, uma mulher que afirmou preferir ver o filho morto a homossexual? E nesse ponto, o roteirista acerta novamente ao relacionar a progenitora do protagonista como uma das explicações do folclore por trás dos hábitos de Hoover em se travestir.
E é justamente esse o mérito do filme e do próprio Eastwood. Um diretor conhecido como conservador que soube apresentar de forma sensível o principal ponto a ser discutido da vida de um mito de caráter duvidoso e atitudes hipócritas: suas guerras psicológicas.
(The Girl with the Dragon Tattoo, EUA, 2011) Direção: David Fincher. Com Daniel Craig, Rooney Mara, Christopher Plummer, Stellan Skarsgard, Robin Wright, Ulf Friberg.
Adaptação americana do best seller The Girl With the Dragon Tattoo, escrito pelo sueco Stieg Larsson, Millennium- Os Homens que não amavam as mulheres é, definitivamente, um trabalho exato para o apuro técnico na direção que os filmes de David Fincher sempre demonstram. A começar pela brilhante introdução dos créditos iniciais que, ao som de Immigrant Song, apresenta um cenário high tech em uma eficaz analogia da podridão humana que o jornalista vivido por Daniel Craig e a hacker interpretada por Rooney Mara irão testemunhar. A versão da canção do Led Zeppelin, executada por Karen O e Trent Reznor (do Nine Inch Nails, em sua segunda parceria com Fincher), confere desde os segundos iniciais da produção, uma identidade soturna que veremos se desenvolver durante todos os 158 minutos do longa.
Ainda não li o livro no qual foi baseado o filme. Ele, inclusive, já teve uma primeira adaptação cinematográfica em 2009, com Noomi Rapace no papel da hacker Lisbeth. Com a versão de David Fincher e o roteiro de Steven Zaillian, houve a criação de uma atmosfera claustrofóbica com um crescente clima de tensão que se mantém até o surpreendente final. Apesar de bastante eficiente, faltou justamente essa ambientação à versão sueca. Enquanto o filme de Fincher investiu em uma fotografia propositalmente escura que, mesmo nas cenas externas onde a neve poderia gerar um cenário menos ameaçador, há um intenso clima de desconforto. Já o filme de Niels Arden Oplev possui diversas cenas em dias ensolarados, o que acaba não colaborando muito com as intenções de suspense que o longa almeja.
A história narra a investigação do jornalista sueco Mikael Blomkvist (Craig) na tentativa de desvendar o desaparecimento de uma adolescente ocorrido na década de 1960. Mikael, um dos sócios da revista Millennium, acaba de perder um processo judicial no qual foi acusado de calúnia e difamação ao investigar os negócios duvidosos do milionário Hans-Erik Wennerstrom (Friberg). Sua carreira como jornalista investigativo acaba sofrendo um impacto no qual suas finanças e reputação serão totalmente abaladas. Para piorar a situação, ele também é afastado do periódico pela sua editora (e amante) Erika Berger (Wright). É quando recebe o convite para sair de Estocolmo e viajar até Hedestead, também na Suécia, onde receberá do bem sucedido empresário Henrik Vanger (Plummer) o trabalho de investigar o desaparecimento de sua sobrinha Harriet, a quem ele procura desde o final dos anos 60. Com a possibilidade de conseguir um aliado no processo legal contra Wennerstrom e ainda ser bem pago pelo seu ofício de jornalista, Mikael aceita a proposta apesar de ter que se mudar para a cidade que, devido ao frio intenso, parece estar localizada no Pólo Norte.
Henrik Vanger (Plummer) coloca Mikael (Craig) a par do desaparecimento de Hanriet
A investigação de Mikael esbarra na dificuldade de coletar informações das principais fontes envolvidas no processo. Para seus familiares, Vanger inventou o álibi de que o jornalista está escrevendo sua biografia. No entanto, alguns deles sabem do interesse do empresário em desvendar o sumiço de sua sobrinha. Ele, inclusive, desconfia que um dos seus parentes, totalmente anti-sociais e, alguns, anti- semitas, foi o responsável pelo desaparecimento da garota, uma vez que, na ilha onde todos se reuniram para o jantar em família no dia do ocorrido, não havia como nenhum deles sair devido a um acidente que interditou a ponte que liga a propriedade de Vanger ao continente.
Diferente do estilo de diálogos acelerados visto em A Rede Social, dessa vez Fincher preferiu manter a narrativa menos frenética, desenvolvendo cuidadosamente cada um dos pontos da história. O filme, inicialmente, possui duas tramas paralelas. A de Mikael em sua busca e a da hacker Lisbeth Salander (Mara), que já havia sido contratada pelos advogados de Vanger para levantar a vida do jornalista. Intrigante e riquíssimo personagem, Lisbeth chama a atenção do espectador na trama de modo a suplantar até o desenvolvimento do personagem de Daniel Craig. Com uma aparência andrógena e instigante, repleta de tatuagens e piercings faciais, Rooney Mara merece colher os louros da sua indicação ao Oscar pelo papel.
Lisbeth Salander (Mara) :andrógina e ameaçadora
Sempre demonstrando uma segurança no olhar, como um animal acuado que, quando ameaçado, sabe responder na mesma ferocidade de seu predador, a jovem Lisbeth vive sob a tutela do Estado devido a seu violento e conturbado passado familiar. Desse modo, ela não pode ter acesso ao espólio de sua família sem a avaliação de um psicólogo e mediante a aprovação de um assistente social. Após seu tutor sofrer um derrame, ele é substituído por outro guardião legal. Cínico e ameaçador, Nils Bjurman, o novo tutor, chantageia Lisbeth na concessão de dinheiro à garota. Em uma cena ao mesmo tempo chocante e repleta de regozijo, a resposta dela a todo aquele processo humilhante faz valer a descrição de animal acuado respondendo ao abuso de predadores.
Mesmo mantendo os diálogos sem o frenesi já citado de A Rede Social, a montagem de Millennium se destaca. Remetendo ao quebra cabeça narrativo de outro trabalho de Fincher, Zodíaco, seus habituais montadores Angus Wall e Kirk Baxter, vencedores ano passado e novamente indicados ao Oscar esse ano, dão um ritmo ágil ao filme, mas sem apelar para a banalidade gratuita de rápidos e constantes cortes com intuito de causar um pretenso impacto no espectador. Observe, por exemplo, a cena em que Lisbeth é roubada na estação do metrô. Com uma pontual e impressionante velocidade, o trecho, que poderia possuir um decupagem simples, acaba tendo um ritmo ágil, mas não gratuito, onde os poucos cortes conseguem explicar toda a ação ao espectador.
Com a tensão constante mantida até o surpreendente e tocante desfecho da trama, algo digno de Agatha Christie (mas, claro, com pontos muito mais chocantes que qualquer conclusão escrita pela inglesa), a versão de Fincher perde força apenas no final anticlímax. Óbvio que as origens literárias da história exigem certa fidelidade para a trama. No entanto, não há como não perceber certo desequilíbrio no longa quando uma nova mini trama é inserida uma vez que todo o final da história já foi apresentado ao espectador e digerido por este.
Fica a chamada para a continuação, uma vez que na versão literária, a história é contada através de uma trilogia. E que David Fincher volte a encabeçar o projeto, obviamente.