(Nieve Negra, ARG,
2017) Direção: Martin Hodara. Com Ricardo Darin, Leonardo Sbaraglia, Laia
Costa.
Por João Paulo Barreto
Algumas feridas não se cicatrizam jamais, diz a frase
clichê. Essa definição é bem apropriada para a vida de Salvador, o atormentado
ermitão que vive isolado na propriedade de sua família localizada na patagônia argentina.
Remoendo um passado traumático, o homem sobrevive da caça e mantém-se aquecido
do modo como pode, mesmo que há muito suas magoas não possam mais deixar qualquer
calor penetrá-las. Tais sentimentos estão prestes a inflamar por conta da
visita de sue irmão, Marcos, que, junto com sua jovem esposa grávida, vai até
Salvador levando as cinzas do pai de ambos. A intenção é depositá-las no mesmo
local onde o irmão caçula deles foi enterrado quando criança. Tal intento, no
entanto, despertará mais dor e ódio do que qualquer possibilidade de uma recepção
calorosa por parte do ermitão.
Neve Negra cria em
seu ambiente inóspito de frio congelante e ventos afiados a metáfora perfeita
para o que rege a natureza familiar daqueles dois homens. Criados sob a régia
tirânica e sádica de um pai violento, os dois rapazes, o garoto caçula e a irmã
adolescente são apresentados ao público em eficientes flashbacks, inseridos em
cena de um modo surpreendente ao utilizar o som diegético de cada ambiente,
seja ele o ranger de uma escada, o barulho de uma surra de cinto sendo aplicada
ou simplesmente os passos na neve. O modo orgânico como as revelações são feitas
a partir do retorno de cada membro daquele ciclo a um passado doloroso, repleto
de culpa e arrependimento, leva o espectador a compartilhar com aquela família
desintegrada toda aquela mágoa.
Marco e sua irmã encaram as feridas da memória |
Aqui, o interesse em lucrar com as terras em uma possível
venda que deixaria todos milionários não passa nem perto das intenções de
Salvador. Para ele, o segredo escondido naquele inóspito ambiente e sua própria
permanência no lugar soam como uma penitência, algo pelo qual ele precisa pagar
por se considerar responsável pela morte do irmão caçula, baleado durante uma
caçada na floresta.
Para seu personagem, o sempre eficiente Ricardo Darin consegue
trazer uma densidade assombrosa, algo que, através de uma postura curvada e de olhar
cansado, mas sempre atento, coloca a construção de Salvador como a de uma besta
fera, quase que uma criatura animalesca, alguém que pode até se expressar
através de poucas palavras, mas cujo silêncio, mesclado a um constante senso de
observação e necessidade de viver isolado são mantidos justamente como um modo
de proteção de uma fúria que precisa ser sufocada.
Salvador: mágoas, arrependimento e ódio escondidos no isolamento |
Não demora, claro, para tal fúria explodir e as razões para
isso acontecer nos chega de modo a provar que o passado de um homem sempre
volta para assombrá-lo. A Salvador e Marcos não resta muita coisa a não ser o
lamento de uma vida que se preferiu levar tentando fugir dos próprios erros, da
própria inércia e de uma passividade supreendente. Para o homem a viver
solitário com seus próprios fantasmas e arrependimentos a assombrar-lhe, ao
menos, alguma recompensa lhe é concedida no final. Mesmo que não pareça assim
ao espectador, friso. Já para Marcos, mesmo com um filho a caminho e
possibilidade de fortuna a acompanhar-lhe, o que resta, surpreendentemente é
bem menos do que ficou para o irmão mais velho.
Com a licença da repetição, o passado sempre volta a assombrar o homem. No caso de Marcos, este não tardará.
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