quinta-feira, 20 de junho de 2019

Graças a Deus


A omissão da igreja colocada em xeque 


Com o pungente Graças a Deus, diretor francês François Ozon 
cria teia investigativa contra a pedofilia no clero

Por João Paulo Barreto

Dono de uma filmografia diversificada e que não se atém a um único estilo (até um tanto irregular, mas não o caso aqui), o diretor francês François Ozon constrói em Graças a Deus uma estrutura quase documental de cinema. Ao trazer a investigação baseada em fatos reais que sobreviventes de abusos sexuais perpetrados pelo padre Bernard Preynant ( que nos anos 1980 era responsável por acampamentos de férias e catequeses com jovens de até 15 anos de idade), Ozon traz uma análise da dor e do trauma em diferentes níveis e marcas deixadas em cada vitima com que o pároco teve contato durante o período.

Trata-se de uma obra dolorosa, mas que se mantém lúcida por não se deixar levar pela manipulação do drama ou pelo maniqueísmo em sua abordagem. Do mesmo modo, consegue atrelar um equilíbrio curioso no adentrar nas questões de fé que seus personagens trazem consigo. A começar pela figura de Alexandre Guérin (vivido por Melvil Poupaud). Pai de cinco filhos, católico praticante, Guérin foi vitima de abusos sexuais por parte do padre e é ele quem inicia a avalanche de denúncias contra o representante da igreja. Ozon dedica seu primeiro ato quase todo à busca do homem em seguir adiante com sua luta por justiça e alertar em relação à presença atual de Preynant na instituição católica como um dos seus mais prestigiados membros.

Alexandre Guérin em sua busca por justiça

SOBRIEDADE E PRAGMATISMO

Ao abordar em sua queixa formal a omissão de bispos e cardeais diante da presença de alguém com o histórico do padre em questão, Guérin demonstra, em certos momentos, sua relação de afinidade com a religião na qual fora doutrinado, mantendo-se fiel aos seus preceitos e considerando a importância daquele legado para seus filhos, estando dois deles às vésperas de passar por rituais cristãos, como crisma. Personagem de maior profundidade dentre todos os construídos por Ozon, Guérin traz em sua relação com a religião uma separação, apesar de não muito digna aos olhos de um ateu como eu, compreensível perante a importância que o catolicismo tem em sua vida. E é pertinente observar a maneira sóbria e pragmática com que o homem separa o trauma sofrido da fé com que se alimenta através da igreja, mesmo tendo em sua vida uma chaga perpetrada por um de seus representantes (o momento em que este questiona os atos do padre, hoje um idoso, é um dos mais potentes do filme, inclusive).

Remetendo ao premiado Spotlight e dividindo o foco de seus 137 minutos com outras vitimas de Preynant, construindo, assim, um rico quadro investigativo, Ozon revela a reflexão que Graças a Deus propõe de maneira pungente, colocando cada personagem diante do encontro com o passado e da dor que se esforçavam para manter adormecida. Assim, quando vemos o atormentado Emmanuel Thomassin (vivido por Swann Arlaud) sofrer o choque representado por um ataque epilético na “simples” leitura de um artigo de jornal que aborda o caso de pedofilia, percebemos o quão dilacerante é aquele reencontro. E mesmo tendo uma subtrama descartável e mal desenvolvida que traz os problemas conjugais com sua namorada, seu arco se apresenta de maneira pesada para o espectador por perceber as marcas que seu futuro trouxe após o contato com o padre.

Da mesma maneira, quando François Debord (o conhecido rosto de Denis Ménochet, de Bastardos Inglórios e Custódia),um dos idealizadores do grupo de pessoas em busca de justiça, precisa desligar o telefone pedindo desculpas a uma das vitimas que perdera o controle emocional ao simplesmente ouvir o nome do padre Preynant, percebe-se como o inflamar daquelas chagas ainda perdura. Debord, inclusive, representa bem o modelo díspar de relação com a religiosidade que Guérin traz. Ateu, o homem não mede qualquer esforço para tornar evidente a negligência da igreja perante o caso, cogitando até mesmo desenhar um pênis com fumaça no céu sobre a catedral da cidade para propagar o caso para todos. Uma cena que prima pelo humor nonsense, mas pertinente.

O grupo de vitimas comemora uma vitória no caso

MANIQUEÍSMO AUSENTE

Em um ponto que pode causar certo desprezo ao espectador imediatista, mas que demonstra bem a citada ausência de maniqueísmo e parcimônia na construção do roteiro de Ozon, o cineasta insere, também, a figura do próprio réu naquele caso. Na presença do veterano Bernard Verley na pele do padre Bernard Preynant, uma oportunidade para se observar como a estrutura do texto de Ozon busca uma abordagem completa do caso, colocando, sim, a figura de Preynant como um pedófilo cuja punição é urgente, mas, da mesma forma, oferecendo ao espectador uma oportunidade de avaliar o homem distante de conflitos rasos entre bem vs. mal ou como um antagonista superficial.

Assim, quando ouvimos a fala de Preynant admitindo sua culpa e deixando claro sua “fraqueza” diante da presença de crianças, bem como o fato de que o mesmo chegou a informar sua impulsividade aos seus superiores na igreja, percebe-se que Ozon não busca suavizar as monstruosidades perpetradas pelo homem, mas, sim, permitir ao espectador adentrar, também, na mente daquela figura deprimente. E isso sem necessariamente se render a embates que relativizem os fatos ou construir seu personagem de maneira unidimensional. E, obviamente, de maneira alguma tornando menos graves tanto suas atrocidades quanto o silêncio oportunista do clero, brilhantemente representado pelo texto de Ozon ao ilustrar o título do filme em uma fala oriunda de maneira grotesca a partir de um dos seus membros.

Ozon entrega em Graças a Deus uma análise não somente dos traumas que os atos contra crianças perpetraram para sempre em suas vidas. Ao usar a fé alheia de pessoas com personalidades ainda em formação e de fácil manipulação, os crimes de Preynant, tendo o acobertamento da instituição religiosa que representa, denotam de maneira precisa o modo como a manipulação maligna através religião é um dos maus que qualquer credo pode possuir. E isso não atinge somente casos extremos como o visto aqui, mas o sequestro de opiniões e de mentes colocadas sob o cabresto do não questionamento e da aceitação. Diversos são os “lideres” e “mitos” que se sustentam através disso.   


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 20/06/2017

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