domingo, 27 de outubro de 2019

Fight Club

A Primeira Regra do Clube da Luta 


Há 20 anos, a cultuada obra dirigida por David Fincher estreava e elevava 
o patamar do Cinema como reflexão filosófica 

Por João Paulo Barreto

Em determinada cena de Clube da Luta, o anônimo personagem interpretado por Edward Norton vê imagens publicitárias de modelos masculinos vestindo apenas roupas de baixo e indaga o “amigo” Tyler Durden, vivido por Brad Pitt, se é aquela a representação do “ser um homem”. A réplica: “Auto-desenvolvimento é masturbação. Agora, a auto-destruição...” e a resposta é deixada no vazio, acompanhada por um riso irônico de Durden e por um olhar de percepção (quase um insight) por parte do anônimo Norton. O riso irônico de Tyler Durden é a autoconsciência de que a sua sapiência é mais importante que qualquer estética. Sapiência essa que, 20 anos depois, em um 2019 dominado pelos símbolos alvos do Project Mayhem idealizado por Tyler dominando políticas públicas e pessoas através da desinformação das fakenews, torna-se imensurável. “As redes sociais deram voz aos imbecis”, disse Umberto Eco. Imbecis e, também, oportunistas. Valorizar a própria inteligência, hoje, é um desafio.

Essa semana, a obra dirigida por David Fincher em 1999 completa 20 anos desde sua estreia nos cinemas brasileiros. Voltar os olhos para a capacidade de uma análise filosófica em Clube da Luta é um modo precioso de entendermos melhor o poço onde estamos afundando. Por exemplo, em outro momento do longa, Tyler Durden diz que “apenas após perder tudo, é que você estará livre para fazer o que quiser. Nada é estático. Tudo está desmoronando. Esta é a sua vida. E ela está terminando um minuto por vez”. Com tal frase, ele confirma a certeza de que sabe o caminho que a sociedade está seguindo. Seja na necessidade simplista de se existir e “lacrar” em redes sociais, ou na dedicação do preenchimento do vazio da vida com objetos comprados no shopping, ele sabe para qual buraco fétido caminhamos. Mas, o mais importante, é que ele está fazendo o que pode (e ele pode muito!) para resolver tal situação. “Apenas após estar em equilíbrio consigo, é que você estará livre para fazer o que quiser” complementa Tyler enquanto exibe a mão queimada e cicatrizada por lixívia. 

"Autodesenolvimento é masturbação..."

ESTOICISMO LIBERTADOR

O narrador Norton é a representação do modo de agir e pensar da atual sociedade capitalista. Fechada num mundo de consumismo, egoísmo e falsa segurança, ela é habitada em cada um de seus integrantes por Tylers escondidos e loucos para sair. Aproxima-se do conceito platônico de conhecimento intimo: o conhecimento habita cada um, basta percebê-lo. Remete ao filósofo grego Zenão de Cítio, que trouxe em sua doutrina o equilíbrio humano separando o corpo da razão. É como se Tyler representasse a figura de Zenão hoje: alguém ciente da necessidade de perder as amarras que o prendem ao mundo para alcançar o foco de sua própria sapiência (olha ela de novo). Assim, os homens do Clube (e, por que não, nós mesmos) perdem(os) as amarras. Alcançam o ideal de perceber o quanto suas mentes merecem ser valorizadas. “Vejo aqui reunidos os mais bravos e inteligentes homens do mundo. Uma lástima o fato uma geração inteira estar servindo mesas, enchendo tanques, entregando pizzas”, lamenta-se Tyler em um monólogo que colocaria qualquer “coach” oportunista no chinelo.

O estoicismo pregado por Zenão de Citio trazia em sua essência o desprendimento de tudo o que é inútil (incluindo nisso a importância de seu próprio corpo) para alcançar o equilíbrio do espírito. Nesse desprezo ao material, mesclou-se (ou confundiu-se) o conceito pregado por Cristo, onde o martírio pode levar ao equilíbrio do conhecimento. Negado pelos cristãos como uma influência para sua religião, o estoicismo é encarado pelos seguidores de Jesus como um desprezo do homem por si mesmo. Nada mais do que um desespero do ser humano ao constatar, no mundo e na sua própria existência, a ausência de um Deus por ele rejeitado. Ver esse mesmo Deus estampando slogans políticos não ajuda. 

O narrador anônimo "como ele mesmo"

Impossível não relacionar esse fato a outra declaração de Tyler Durden: “Deus foi incluído em nossas vidas como um modelo de nossos pais. Se eles (os pais) nos abandonaram, Deus fez a mesma coisa. Somos os filhos indesejados de Deus. Provavelmente, ele nos odeia”. E é neste momento que pensamos em outro grego, Epícuro, e sua declaração de que o homem foi feito para a felicidade. O conceito do epicurismo traz limites para os exageros da vida. Para Epícuro, a doença que acomete uma pessoa é um aviso do corpo. Um aviso de um exagero cometido. A análise do epicurismo, relacionada à sociedade atual do século XXI, possui uma libertação interna do homem capitalista preso ao modo de vida imposto pelo trabalho. “Só trabalho, sem diversão, fazem de Jack um bobão”, profetizou Kubrick em O Iluminado.

E, por fim, lembramos de João Cabral de Melo Neto e pensamos na morte diária “de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. Sendo essa fome também intelectual ao vermos tantos imbecis ascendendo ao poder por estarmos distraídos sendo manipulados diante de tantas timelines, stories e a necessidade de aparecer e “lacrar”. “A mídia nos faz correr atrás de empregos inúteis para comprar coisas que não precisamos. A televisão nos fez acreditar que um dia seríamos astros do rock ou milionários. Mas não seremos. E estamos, aos poucos, percebendo isso e ficando muito, muito zangados”, profetiza Tyler. 

Acordar é preciso!

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 27/10/2019

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