quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Mostra Tiradentes 2020 - Antonio e Camila Pitanga


Pai, Filha e Cinema


Na 23ª Mostra de Tiradentes, que começa amanhã em MG, o baiano Antonio Pitanga, junto a sua filha Camila, são homenageados por suas marcantes carreiras no cinema brasileiro

Por João Paulo Barreto

O lendário ator baiano Antonio Pitanga, ao lado de sua filha, a também atriz Camila Pitanga, representam dois momentos bem singulares da história da representatividade no cinema brasileiro. Pitanga, o pai, despontou para as telas em 1960, com Bahia de Todos os Santos, filme dirigido por Trigueirinho Netto. Nos créditos iniciais, ele surge como Antonio Luis Sampaio. Seu personagem na obra, um membro do grupo de grevistas preso pela polícia, é quem detém esse nome: Pitanga. Era, então, seu primeiro trabalho no cinema.  Sua presença já se destacava por conta de tamanha energia em sua atuação. Há no olhar e postura do jovem de vinte anos uma maneira vigorosa de se portar, de se movimentar em cena, com sua expressão forte, com sua camisa listrada, marca que leva seu personagem. Seu sorriso amplo é aquele que mais se reconhece passados 60 anos desde o lançamento do longa de Trigueirinho. Era impossível o jovem Sampaio não se tornar o Antonio Pitanga.

Camila Pitanga, sua filha, já tinha o peso do nome adotado por seu pai quando, em 1984, aos sete anos, participou, ao lado do seu irmão, o também ator Rocco Pitanga, de Quilombo, obra emblemática de Cacá Diegues que trazia nomes como Grande Otelo, Zezé Motta, Antonio Pompêo, Tony Tornado, Léa Garcia, além do próprio Pitanga pai. Neste elenco, dois nomes centrais da presença de atrizes negras no cinema brasileiro se destacam através de Zezé Motta e Léa Garcia, símbolos da nossa cinematografia. A criança Camila, naquele momento, claro, não sabe da importância daquelas pessoas para o cinema de um país onde a intolerância religiosa e o racismo são, ainda, em pleno século XXI, notícias recorrentes. E pior: comportamentos preconizados por dementes que alçam ao cargo maior do executivo. Neste cinema de reconhecimento de um povo, as presenças de Camila e Antonio se encontram e, ainda bem, reverberam dentro de uma sétima arte que precisa ser de afirmação e inclusão.

Na pele de Firmino, de Barravento, clássico de Glauber
CINEMA CONSCIENTE 

Antonio, o ator nascido em Salvador há 80 anos, é um dos últimos remanescentes de um cinema brasileiro único. E isso é dito longe de qualquer preciosismo, mas reconhecendo a primeira metade da década de 1960, nos anos antes do golpe militar, como um dos mais simbólicos e profícuos para o audiovisual baiano e nacional. “Era um movimento de afirmação de uma cultura, de esculpir um Brasil que nós sonhávamos. Mas, não era o Brasil que a gente vivia. Nós vivamos aquele Brasil em que a gente era escravo da linguagem, de todos os movimentos do colonizador, de tudo. Uma colonização cinematográfica, literária, até no seu jeito de vestir e de conduzir. Tínhamos a necessidade de mostrar a cara negra, a cara indígena, a do negro brasileiro, a cara brasileira”, afirma Antonio Pitanga.

Esse reverberar da consciência da função artística alcança a geração seguinte. A de sua filha, Camila Pitanga. Influenciada não somente por seu pai, mas por nomes como o de Ruth de Souza, Léa Garcia, Zezé Motta e Luíza Maranhão, uma geração de mulheres atrizes que têm em suas identidades cinematográficas uma força motriz em suas carreiras, Camila Pitanga, aos 42 anos, segue esse trilhar desenhado por seu pai e por todas as grandes damas citadas. “Eu tenho um total pertencimento a esse grupo de mulheres. Esse movimento calcado em uma ancestralidade de resistência”, explica a atriz.

Sobre a importância dessa função do artista como figura de conscientização social, Camila faz um paralelo preciso entre a sua geração e a de seu pai. “Quando a gente fala de Malês, quando a gente fala de Ruth de Souza, quando a gente fala de Antonio Pitanga, a gente vai chegando perto da minha geração. E isso é como uma maré. Uma maré cheia de mulheres pensando, se colocando de uma maneira muito condizente na luta antirracista, na luta contra o machismo. E isso não tem como voltar atrás. Essa luta é como a tempestade de Barravento, primeiro filme de Glauber com meu pai. Essa tempestade, essa força da natureza, não tem como parar, não tem como voltar atrás,” pontua Camila.

Camila Pitanga em Eu Ouviria as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios

NOVO FILME E HOMENAGEM

Dono de uma presença constante, Pitanga esteve em obras pilares. Filmes como A Grande Feira e Tocaia no Asfalto, ambos dirigidos por Roberto Pires em 1961 e 62; O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte; Barravento, primeiro longa dirigido por Glauber Rocha, ambos em 1962. Já durante o período tenebroso dos anos de chumbo, interpretou outros personagens marcantes, como Calunga, na obra de Cacá Diegues, A Grande Cidade, onde tenta encantar Luzia (Anecy Rocha) quando esta chega ao Rio. Um contra ponto exato entre a desilusão de um tempo e o otimismo de um sobrevivente das ruas. Outro de seus grandes momentos a representar essa característica energia de atuação.

Pitanga em Escravos de Jó, de Rosemberg Cariry


Na edição desse ano de Tiradentes, além da homenagem pelo conjunto da obra e vida, seu mais recente trabalho, Os Escravos de Jó, dirigido por Rosemberg Cariry, será o filme de abertura. Entre sorrisos, Pitanga fala da honraria recebida: “A gente não só olha no retrovisor, mas faz uma revisitação da própria vida, aos 80 anos. É pensar em uma vida na afirmação da cultura, de uma cultura genuinamente brasileira. E a gente balança pensando nisso. Mas balança de alegria. Ainda bem que eu estou recebendo essa homenagem ainda em vida.” Sobre Rosemberg Cariry, Pitanga faz essa ponte da identidade: “Ele é aquele brasileiro, aquele nordestino brasileiro mesmo, que não nega a origem. E faz uma coisa com tanta beleza. Ele busca e revela justamente isso que eu falei sobre nossa identidade: que o que de melhor a gente tem é a cultura e a diversidade”.

Camila Pitanga fala da honra de também ser homenageada no evento e salienta a importância da Mostra de Tiradentes como um local de discussão de uma função da cultura como algo imprescindível: a de alimentar a imaginação e os sonhos. “O tema esse ano é ‘A imaginação como potência’. Um festival que já tem como característica falar de uma cena mais autoral, e que tem como temática falar sobre a imaginação.Isso é algo muito coerente,” explica.  “Um país que não sonha, onde o seu povo não sonha, que não consegue os explanar seus desejos, suas dores, é um país que acaba sem alma. A Imaginação como Potência, aqui,  é pautada não somente em uma preocupação artística, mas como expressão de cidadania. De vida. É a maneira que você tem de não ser gado. De não ser boiada. De não ser manipulado por uma ideia. E, sim, ter poder de escolha sobre seus próprios caminhos,” finaliza.   

De fato, algo necessário.

* Matéria originalmente publicada no Jornal A Tarde, dia 23/01/2020




Nenhum comentário:

Postar um comentário