sábado, 17 de abril de 2021

O Amor Dentro da Câmera


Tempo Rei  



CINEMA O Amor Dentro da Câmera, de Lara Beck Belov e Jamille Fortunato, registra o afeto de uma vida inteira compartilhada nas artes e na celebração do amor entre Conceição e Orlando Senna

Por João Paulo Barreto

A casa nos convida a entrar e a nos sentir à vontade e confortáveis. Aconchegante, a luz do sol toca os cômodos do mesmo modo vagaroso como nossos olhos tocam aquele ambiente anfitrião de boas vindas. As paredes, com quadros, livros e memórias vivas, nos abraçam. Memórias vivas, aliás, define o caráter tenro como as lembranças afetivas de duas almas gêmeas serão desnudadas e compartilhadas com a audiência. Tempo e memória. Tempo não linear, mas circular, como define Orlando Senna ao falar de sua relação com a passagem dos anos. Passar das décadas que é ilustrado pela lente das diretoras Lara Beck Belov e Jamille Fortunato, que, a partir da rotina de Conceição Senna e seu companheiro de vida, surge em uma colagem de momentos marcantes em fotos antigas. Registros que destacam a cumplicidade de ambos tanto no aspecto pessoal, quanto dentro da identidade de cinema brasileiro que ajudaram a construir. É nesta brecha que revive momentos que adentramos.

Conceição e Orlando Senna rememoram suas vidas


Orlando Senna, ao aprofundar essa impressão do transcorrer do tempo como um modo circular de passagem, relembra um momento familiar. "No último almoço que eu tive com a minha mãe, pouco antes dela morrer há alguns anos, quando estávamos todos festejando seu aniversário, ela disse, de repente: 'A vida é curta.' E aí, imediatamente, ela repensou e disse: 'Aliás, não. A vida não é curta. A vida é longa, mas é muito veloz.' É essa sensação que eu tenho com relação ao tempo. É que ele é de uma velocidade incrível para a gente. Jovens não notam isso, por exemplo. Para os jovens, o tempo é uma coisa que tem uma velocidade, digamos, normal", explica o cineasta, às vésperas de completar 81 anos de idade, no próximo 25 de abril.

O documentário O Amor Dentro da Câmera permite essa constatação de uma maneira cuja velocidade citada por Orlando se faz perceptível, mas a placidez com que a audiência absorve tal trajetória, nos momentos de revisitas pelo próprio casal, suaviza tal fugacidade dos anos. Orlando e Conceição Senna se conheceram em 1961, quando ele gravava seu primeiro curta-metragem, Feira. A paixão imediata os levaram a uma vida juntos. Nesta vida, participaram de movimentos como o Cinema Novo, o Cinema Marginal, o Nuevo Cinema Latino Americano. Cultivaram amizades com nomes como Fernando Birri e Gabriel Garcia Marques, com quem Orlando co-fundou a Escola de Cinema de Cuba, da qual foi diretor. Nos anos 1970, Orlando co-dirigiu, ao lado de Jorge Bodanzky, Iracema - Uma Transa Amazônica, além de Gitirana, outro marco. Conceição atuou em obras fundamentais do cinema baiano, como O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreira, de Glauber Rocha, e Caveira my Friend, de Álvaro Guimarães. Como diretora, tem três documentários na sua filmografia, além de dois livros, tendo atuado, também, como apresentadora na TV de Cuba, além de lecionado na escola cubana.  

O casal ainda nos anos 1970
 

DESPEDIDA

Conceição Senna, infelizmente, faleceu em maio do ano passado, aos 83 anos. Com sua partida, o filme de Lara e Jamille passa a carregar ainda mais importância como o registro de momentos que se tornaram os últimos da atriz e diretora captados por uma câmera. Em um deles que, por conta dessas coincidências inexplicáveis, se tornou o ultimo registro tanto de todo o processo de produção quanto a última cena na montagem final do longa, o casal se abraça, sentados no sofá de sua casa, pouco depois de Conceição brincar sobre a sensação de, "como peteca", ser jogada para o passado e para o futuro em sua trajetória de vida.

Para Orlando, revisitar, sem Conceição ao seu lado,  O Amor Dentro da Câmera foi uma tarefa difícil, mas que ele, após um tempo, conseguiu fazer.  "São as artimanhas da vida que constroem isso na gente. No início, logo quando ela se foi, eu não conseguia nem ver o filme, porque me emocionava muito. Mas agora eu já posso vê-lo com tranquilidade. E exatamente essa cena... Não só a cena, mas também essa informação que está no filme. Informação que está lá de uma maneira muito sutil. No momento em que ela aparece, agora que eu já consegui ver o filme sem toda a melancolia em cima de mim, eu acho uma coisa muito bonita que tenha acontecido. Principalmente isso (de ser) a última cena do filme, a última cena gravada, a última cena da vida dela," salienta Orlando.

O casal junto às diretoras Lara e Jamille

DOC INTIMISTA

O Amor Dentro da Câmera passou por um processo de construção delicado até se consolidar como um trabalho que capta com esmero a intimidade e a cumplicidade de seus protagonistas. Contemplado pelo edital Rumos Itaú Cultural, o filme recebeu Menção Honrosa Especial na edição desse ano do BAFICI. Mas quando ainda era apenas um embrião, o projeto representou um desafio para Lara e Jamile em se lançarem no registro da vida de Conceição e Orlando. Amigas de longa data do casal, elas se propuseram a captar aquela trajetória, mas sabiam que a história de ambos (que passou por décadas e diversos países, além de nomes de peso do cinema, literatura e teatro), se seguisse por uma estrutura convencional de documentários, poderia se tornar uma tarefa árdua e quase impossível de captação. Além disso, tal mergulho em uma história de vida tão repleta de profundidade poderia trazer para elas, que já tinham uma amizade com ambos, certa insegurança.

Jamille explica: "Nós nutríamos a vontade de fazer um filme sobre eles. Só que as histórias que ouvíamos dos dois, sabíamos que passavam pela América Latina, por outros países, por diversas pessoas e personalidades. Era muita gente e muitos lugares.Ficávamos nos perguntando como iríamos fazer um filme sobre eles tendo que falar com tantas pessoas e ir para tantos lugares. E até que em 2016, ao invés de ficar pensando em como, decidimos começar fazer. Falamos: 'Vamos começar a fazer? Vamos dar um ponta a pé inicial? Acho que quando a gente começar, vamos entender qual filme temos que fazer'", relembra a co-diretora e acrescenta: "(Decidimos) fazer do particular para o geral. Fazer um filme só com eles dois dentro da casa deles. E se formos sair dali, saímos através de imagem de arquivo, de memória".

Lara aborda esse possível sentimento: "A insegurança faz parte da vida. É uma mistura de vontade e medo ao mesmo tempo, mas que, nessa equação, a vontade é muito maior. Então, existe um frio na barriga no fazer. Acho que não só no fazer desse filme, mas é algo do próprio viver, mesmo. Na vontade de realizar, de fazer algo na vida. E, na vida, decidimos contar a história de Conceição e de Orlando. Essa história de amor, essa história do cinema. Para mim, uma coisa que eu sinto, é que essa insegurança e esses medos possíveis foram resolvidos a partir do afeto. A partir do amor. Eu sinto que, para mim, este foi o caminho de resolver isso", finaliza Lara.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 18/04/2021





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