domingo, 19 de maio de 2019

Kardec


Codificando o espiritismo


Baseada na biografia do seu principal teórico, Kardec traz uma dicotomia entre fé e razão, mas também permite analisar o Cinema como meio de doutrinação

Por João Paulo Barreto

É curioso observar o cinema como veículo de evangelização. Os exemplos são diversos. Ao divulgar sua sádica e visceral abordagem dos últimos passos de Jesus em A Paixão de Cristo, por exemplo, o cineasta Mel Gibson disse, em entrevista concedida em 2004, que sua intenção com o filme era justamente a de espalhar o evangelho católico.

Corta para 2018 e Nada a Perder, cinebiografia de Edir Macedo, pastor evangélico e dono da Igreja Universal do Reino de Deus, chega aos cinemas em uma estratégia de lançamento até então inédita de manter-se em cartaz através da compra de ingressos em sua totalidade para que os cinemas mantivessem o longa disponível independente de haver público presente ou não nas salas. O filme contava até com uma pregação evangélica real feita pelo próprio pastor durante a sua projeção.

Entre uma abordagem religiosa e outra, nos casos citados, a católica e a evangélica, o espiritismo, que já havia tido, nos anos 1990, sua inserção midiática na TV através da Rede Globo e a novela A Viagem, trouxe em 2008 uma de suas primeiras incursões cinematográficas com a biografia do médico brasileiro Adolfo Bezerra de Menezes, um dos expoentes da doutrina. Seguiu-se com outra cinebiografia, a de Chico Xavier, maior símbolo da doutrina no país, passando por uma continuação intitulada As Mães de Chico Xavier e, finalmente, chegando a Nosso Lar, obra que abordava a ideia do paraíso pós- morte dentro da doutrina codificada pelo professor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, também conhecido como Allan Kardec, durante o século XIX, na França. Dirigida por Wagner de Assis, a produção trazia os preceitos espíritas acerca da vida após o desencarnar (para usar um termo específico da doutrina) na trajetória de seu protagonista, André Luiz, um homem que, ao falecer, acorda ainda experimentando sensações atreladas à vida. Sucesso de público, a obra viria a popularizar os ensinamentos da doutrina espírita através do cinema, o que nos traz à Kardec, novo filme do mesmo Wagner de Assis que, baseado na biografia escrita por Marcel Souto Maior, foca na origem do espiritismo através da história do seu maior teórico.

Conflito entre religiões 

EMBATE RELIGIOSO

Apenas no inicio deste texto, foi possível citar cinco filmes nacionais e um estrangeiro deste século com um recorte religioso no sentido de oferecer, a seguidores ou não, uma visão dos preceitos que defendem através de uma mídia de amplo alcance, como é o caso do cinema. Convém observar que todas as religiões citadas são de fundação judaico-cristã, preconizadas em sua maioria por uma classe que, hoje em dia e no Brasil principalmente, representa um domínio político e social em constante ascensão. Por essa razão, é pertinente observar que são bem raros exemplos de filmes que abordem a religião como símbolo de resistência, seja contra a influência cristã e eurocêntrica ou contra formas com origens colonizadoras em meios de criação de dogmas. Vale citar apenas duas, no caso Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro, ou filmes dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, como O Amuleto de Ogum, ambas abordando a religião de matriz africana como uma resistência a séculos de influência catequizadora.

Sendo assim, foi com curiosidade que observei em determinado momento de Kardec – o filme um embate entre o professor francês e um padre católico dentro de uma cela de prisão como um denotar exato da principal premissa de análise tanto do filme quanto dessa abordagem crítica. Na cena em questão, o representante católico afirma que os dogmas de sua religião hão de prevalecer fazendo cair no esquecimento a doutrina estudada por Léon Denizard.  Em sua réplica, o professor aposentado diz que encontrará o padre no pós morte, argumento ironizado pelo católico. Tal discussão simboliza de forma eficiente a ideia da religião como uma busca do domínio do pensamento das massas, uma vez que ambos crêem em suas verdades e não querem testemunhar a perda de força que estas verdades venham a possuir perante seus seguidores. Trata-se de um embate pelo o que eles acreditam como sendo definitivo no pensamento civilizado e perder fiéis não é um bom caminho para nenhum dos dois casos.

As mesas flutuantes, plot do roteiro

CIÊNCIA E FÉ

Vale observar, aqui, que é inegável uma tendência do cinema de cunho religioso em seguir uma linha de evangelização, raramente de questionamento. Por isso, filmes como A Última Tentação de Cristo geram incômodos em pilares religiosos. E esse fato torna o embate na cena em questão ainda mais curioso de se observar. Porém, ali, trata-se não de um questionamento da religião em si, mas de uma troca de farpas diante de ideias contrastantes, sendo que, na parte católica do embate, reside basicamente um medo da perda de território na ascensão de uma doutrina que, inclusive, adapta um mote católico de forma a lhe dar mais sentido. É fora da caridade, e não da igreja, que não há salvação. Nada representa melhor a voracidade católica do que o medo de ser contrastada.

Porém, em Kardec, perceber o personagem de Léon Denizard como alguém que deixa para trás seu pragmatismo racional tão facilmente ao se tornar espírita é algo que incomoda, mesmo observando o homem dentro de uma questão idiossincrática (e real) que o moveu em direção à codificação daquele estudo. Em um filme que se inicia com o enquadramento de uma mesa a flutuar e usa isso como na motivação do protagonista, esse incômodo se torna ainda mais palpável.

Para Wagner de Assis, aconteceu o contrário. Uma união entre fé e razão. “Para mim, a história é a desse homem que se permite ver o novo. Ele cria um método de pesquisa que está sintetizado no filme, algo vai trazendo para ele um processo de reconhecimento de que é possível juntar fé e razão. Isso na trajetória pessoal dele é algo quase de um arquétipo, meio de herói, mesmo. Ele vai lá para se desconstruir, e, depois, se reconstruir. Não busquei com que isso fosse facilitado. O fenômeno foi encarado do ponto de vista racional”, explica o cineasta.

Ainda sobre a função do cinema como meio de propagação religiosa, Wagner de Assis é categórico ao discordar desse perfil das obras dirigidas por ele, bem como da ideia de perda da razão em seu personagem principal em Kardec. “Não espero nada em relação ao filme além do fato de que as pessoas possam reconhecer ali um ser humano por trás de tudo. Nada mais”, finaliza o realizador.

* Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dua 19/05/2019


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