sábado, 11 de maio de 2019

O Tradutor


A tradução da dor e a incapacidade de saná-la

Em O Tradutor, Rodrigo Santoro cria com eficiência a desconstrução física e emocional de um homem que perdeu seu pragmatismo

Por João Paulo Barreto

A desconstrução da vida do professor de literatura russa Manuel Barriuso Andino é o mote de O Tradutor. Malin, como é chamado, é cubano e leciona acerca dos livros russos na Universidade de Havana durante a segunda metade dos anos 1980. Sua desconstrução, aqui, rima não com um arrasar de sua trajetória, mas, sim, com um reconhecimento de uma nova maneira de encarar a própria existência como pessoa e, por consequência, como profissional. É ao perder tudo de material que considerava importante e perceber que pode usar sua competência em prol de outros, que o protagonista enxerga o que realmente tem valor em sua trajetória.

Vivido por um inspirado Rodrigo Santoro, o homem trabalha na Cuba governada por Fidel Castro e que conta com o suporte de Mikhail Gorbachev, então presidente soviético. Malin tem uma vida boa. Leciona uma literatura em cujo idioma é fluente, tem um trabalho fixo na universidade e possui benefícios empregatícios que lhe permitem gerar conforto para sua família, composta por esposa e filho pequeno, no período que antecede a crise econômica que se daria na ilha com a perda dos investimentos estrangeiros, fato oriundo do colapso da União Soviética que se extinguiria poucos anos depois, na queda do Muro de Berlim.

Malin e sua frustração ao perceber-se inútil diante da fatalidade

CRISE EMOCIONAL

Malin, após perder o emprego de professor, é, então, convocado para trabalhar como tradutor em um hospital que recebe crianças vitimas do desastre nuclear de Chernobyl. E é neste ponto que sua trajetória tem uma guinada. É aqui que a desconstrução de seu personagem se inicia. A produção, dirigida pelos irmãos Rodrigo e Sebastián Barriuso, filhos do Malin real que inspirou o filme, insere esse novo momento da vida do tradutor como um catalisador para suas emoções. Ao perder tudo, sua rotina, sua forma pragmática de encarar novos desafios, seu status acadêmico, suas pretensões profissionais, Malin passa a entender como a fugacidade de tudo o que lhe circundava perde sentido diante da fragilidade daquelas crianças vitimas do câncer causado pela irresponsabilidade humana. E o filme acerta em cheio ao construir aquele aspecto físico da perda em sua desoladora ambientação.

Com um inicio definindo bem o equilíbrio financeiro do jovem professor, que abastece o tanque do carro e faz compras no supermercado com vales oferecidos pelo seu trabalho, a obra gradativamente vai mudando sua atmosfera ao tornar palpável a crise que se alastra pelo país. Ponto para a apurada direção de arte, que, de modo simples, mas eficiente, acerta ao recriar o caos econômico representado por prateleiras vazias em supermercados, filas para abastecimento e o desespero de pessoas ao notar o confisco econômico de dinheiro em poupanças. O reflexo disso é perceptível nas obrigatórias mudanças de hábitos de Malin, que passa a se locomover de bicicleta por não mais conseguir colocar combustível no carro.

Esconder na fuga literária infantil a dor do câncer

FUGA LÚDICA

Mas é no aspecto psicológico que O Tradutor acerta prioritariamente a construção de seu personagem principal. Ao lidar com a dor real das crianças internadas, suas perdas se tornam ínfimas. Ao ser acusado pela esposa de negligenciar a família em detrimento do trabalho, tudo o que Malin faz é se dedicar com ainda mais força ao entendimento da dor daquelas pessoas. Na leitura de contos cubanos infantis, uma fuga efêmera e lúdica se dá tanto para os pequeninos quanto para o atormentado tradutor, que precisa comunicar em russo as notícias ruins referentes ao estado de saúde dos pacientes, algo que o afeta profundamente, levando-o ao desespero.

Ao se agarrar ao aspecto e possibilidades de sonho que suas histórias concedem à vida de pesadelos daquelas crianças, Malin abre mão até mesmo de sua tese de doutorado, quando, diante da escassez de papel em cuba, utiliza o verso em branco das páginas de seu trabalho acadêmico para que as crianças possam desenhar suas fugas em direção a algo que possa remeter minimamente a uma infância.
Rodrigo Santoro traz para sua interpretação de Malin uma contida expressão que condiz com seu perfil de intelectual acadêmico, que analisa fatos antes de se deixar levar pelo emocional. Essa acertada decisão de, em modo gradativo, inserir fisicamente o colapso mental de seu personagem, permite ao espectador perceber como o peso daquele contato afeta o homem em sua condição humana, sendo a necessidade básica dessa condição o principal ponto de reflexão da obra.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 11/05/2019



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