sexta-feira, 3 de maio de 2019

O Mau Exemplo de Cameron Post


Cameron Post e seu exemplo a ser seguido



Apesar de seu final esperançoso, o noventista O Mau Exemplo de Cameron Post 
encontra reflexos pessimistas no distópico 2019

Por João Paulo Barreto

A importância da reflexão que filmes como Boy Erased – Uma Verdade Anulada (com lançamento infelizmente cancelado no país) e O Mau Exemplo de Cameron Post trazem, principalmente a um Brasil que inicia a galope uma marcha em direção ao pensamento retrógrado e conservador (para não dizer religioso e politicamente oportunista), é imensurável. O segundo deles, O Mau Exemplo de Cameron Post, atualmente em cartaz, leva ao espectador uma crucial observação acerca da intolerância e do nocivo conflito psicológico perpetrado pelo citado oportunismo e pelo poder de dominação ideológica que a religião, prioritariamente de base cristã e atrelada a interesses políticos, possui. Em um momento no qual a liberdade individual do ser humano em ser o que ele quer deseja é caçada por instituições e por uma sociedade hipócrita, o poder de análise que a obra de Desiree Akhavan é palpável.

Mesmo com sua trama se passando em 1993, o filme, infelizmente, se adequa perfeitamente aos dias atuais. Na história, Cameron, uma jovem que aos poucos descobre sua sexualidade e preferências, é flagrada pelo namorado beijando outra garota. Após isso, é enviada pela família a uma espécie de “clínica de reabilitação” na qual sua opção sexual será orientada de acordo com preceitos religiosos e a “orientação errada” será subjugada através de uma série de ensinamentos esdrúxulos. Impossível não imaginar a trama do livro de Emily M. Danforth como oriunda de um futuro distópico no qual a religião e o estado buscam dominar o pensamento e as vontades de cada cidadão. Infelizmente, não precisa ser o futuro. Ao observar o nome do lugar, God´s Promise, a triste constatação é justamente essa. Em 2019, com “representantes” de Direitos Humanos oferecendo cura gay e ministros de estado atrelando toda e qualquer decisão pública a justificativas religiosas, é exatamente isso que já acontece.

A busca por horizontes na estrada que se descortina

RÓTULOS DESNECESSÁRIOS

Chlöe Grace Moretz constrói sua Cameron com uma precisa postura, repleta de dúvidas, mas sem necessariamente se manter submissa à manipulação alheia. É ela o guia que leva o espectador dentro daquela experiência que beira o surreal, na qual a individualidade e livre arbítrio de cada pessoa tornam-se elementos colocados em segundo plano diante de preceitos manipuladores. Em certo momento, a protagonista escuta da tutora do lugar o planejamento de que, como primeiro passo, ela deve parar de ver a sim mesma como uma homossexual. A resposta, o mesmo tempo precisa em sua segurança, mas ainda proferida por alguém repleta de dúvidas acerca de si mesma, é ouvida como um alento por quem assiste ao filme. “Não penso em mim como homossexual. Não penso em mim necessariamente como nada”. É justamente a cena que define Cameron Post. A compreensão de que o espaço pessoal de cada individuo não deve ser invadido pela necessidade de rotulação é plena. O Mau Exemplo de Cameron Post trata justamente dessa liberdade de escolha. Não a escolha do que cada um deve ser, mas a escolha intima de que cada um está à vontade com o que sente.

A partir de um desfecho libertador e simbólico em sua metáfora de estrada que se descortina, o longa dirigido por Akhavan cria essa ponte entre o período no qual se passam seus acontecimentos e o infeliz futuro que aquela estrada trará à frente. Impossível não pensar na infelicidade de se encontrar, ao final daquele caminho, um século XXI ainda mais retrógrado quanto o que se vê naquele distante 1993.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 03/05/2019

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