(Brasil, 2016) Direção: Paula Gomes. Com Jonas Laborda.
Por João Paulo Barreto
Em seu último momento, Jonas
e o Circo sem Lona traz uma pergunta feita pelo pequeno protagonista à
diretora Paula Gomes: “O final do meu filme vai ser assim, triste?” Ao ouvi-lo,
Paula lhe concede um cafuné e uma resposta confortadora: “Esse é o final desse
filme, não do seu filme.” Um carinho que denota justamente a cumplicidade de
projeto com o seu sujeito de análise. E durante os breves 81 minutos de
projeção, é justamente perante a isso que o público se vê. A construção precisa
de um personagem de um modo em que a equipe de produção se insere naquele
ambiente. Ao subir dos créditos, percebemos ter estado diante de um
documentário de criação no qual as barreiras que separam Jonas de seu destino
nos são apresentadas, mas é justamente o superar delas o principal intento a
ser demonstrado aqui.
Existe uma identificação plena do espectador com Jonas. A câmera
de Gomes nos coloca dentro do dia-a-dia do garoto. Convida-nos a participar de
sua rotina de férias escolares, quando decide montar um circo no quintal de sua
casa. Um circo feito com material oriundo do antigo local onde sua família
viveu, e onde sua mãe, que naturalmente se preocupa com o fato de que dedicação
do filho é grande com o espetáculo e não tanto com a escola, trabalhou durante
a juventude. Não que ela imponha sua vontade de modo ditatorial. O que acontece
aqui é o receio natural de pais pelo futuro de seus rebentos. E para ela, o
circo não trará nenhum para o seu garoto. Jonas, no entanto, possui aquela arte
em seus genes. Algo do qual ele não foge, sendo aquilo o que realmente o move.
Jonas e sua mãe: conflitos e a natural preocupação materna |
O esmero do olhar de Paula Gomes ao registrar toda a
trajetória do menino Jonas é notável. Desde a não adaptação a uma escola que o
restringe de sua paixão, demonstrando um modelo educacional falho, cujas
prioridades, claro, são determinadas pelo mercado de trabalho (o momento em que
a diretora da escola se queixa perante a câmera é um achado para o filme), passando
pelas experiências marcantes daquela fase, como paqueras e o primeiro beijo, o
registro tanto das alegrias quanto das frustrações do rapazinho trazem para o
longa metragem um equilíbrio essencial. Isso é perceptível, também, pela opção
em não se render ao romantizar da arte circense. A discussão oferecida em Jonas e o Circo sem Lona não visa fantasiar
com escapismos lúdicos oriundos daquela arte. Mas, claro, isso não significa
dizer que sua magia não se faz presente. No entanto, tal percepção é destinada
ao espectador, sem a necessidade que a narrativa venha lhe impor. O que
percebemos é o contar de uma história na qual os percalços da infância são colocados
em evidência.
Jonas e o local onde consegue se encontrar |
Trata-se de uma fase de descobertas. Uma fase na qual a
percepção de uma vocação se fez presente. Jonas se entrega àquilo com tudo o
que pode. Seu interesse não é fugaz. Não se trata de algo que logo será
suplantado por outra coisa. Seu foco é perceptível. Enquanto outros de sua
trupe logo se vêem diante de cobranças e interesses que os fazem se distanciar
daquela diversão, para Jonas aquilo é algo que se situa em outro patamar de
prioridades. Talvez por isso a decepção o atinja de modo tão doloroso. E, por
consequência, ao espectador. E nisso está mais um acerto de Paula Gomes e de
seu coletivo no entregar de sua história. Ao atingir o público de modo tão
certeiro, ela nos coloca diante do anseio do pequeno Jonas. E o sentimento
passa a ser compartilhado. Poucos filmes conseguem esse intento. Jonas e o Circo sem Lona, felizmente e
dolorosamente, é um deles.
É para esse tipo de entrega que o cinema existe.
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Entrevista com a diretora Paula Gomes
Paula, Jonas e parte da equipe do coletivo Plano 3 Filmes |
Jonas e o Circo Sem
Lona é daqueles tipos de filme que ficam com você. Eu o assisti em setembro
de 2016, durante a projeção do Cachoeira Doc. Foi exibido no último dia do
festival, na décima mostra competitiva. Lembro-me que, durante a cobertura da
mostra, escrevi sobre todas as nove competitivas. Fiquei devendo a Paula Gomes
um texto acerca de seu filme. Mas não porque não quis fazê-lo, mas, sim, pelo
fato de que o impacto do longa, após uma semana intensa de festival, foi por
demais intenso. Precisei parar para refletir sobre o filme mais a fundo. Durante
a correria da curadoria do Panorama Internacional Coisa de Cinema, não
consegui rever o filme, muito menos escrever sobre ele. Mas, volta e meia,
voltava a pensar naquela história. Jonas
e o Circo sem Lona tem esse poder. É um filme que acompanha o espectador após
o término da sessão. Digo isso não somente como um clichê para florear um texto
crítico, mas por perceber a identificação que ele gerou. Na infância, muitos
sonhos nos motiva. Muitos planos nos frustram. Ao crescer, a nostalgia acaba
por nos invadir e, às vezes, machucar. O registro da rotina do pequeno Jonas
pelo olhar atento de Paula me fez refletir acerca das escolhas que fazemos e
como elas nos acompanham por toda a vida. Para o bem ou para mal (ops, mais um
clichê). Perceber que Jonas escolheu bem seu futuro, resolvendo seguir aquilo
que realmente o motivava, nos incentiva a seguir passos semelhantes. “Não tem
como não ser Jonas e não se identificar neste sentido dos desafios e do que
você escolheu para você. Como eu estou conseguindo manter meu sonho vivo, o
filme, ao mesmo tempo, é um ato de desejar que ele, Jonas, consiga também. E
ele está conseguindo. E isso é muito bom”, afirma Paula Gomes em um dos trechos
desse papo. De fato, não tem como não ser
Jonas.
Confira abaixo a conversa na íntegra.
PAULA, APÓS VÁRIOS
FESTIVAIS, O FILME FINALMENTE CHEGA AO CIRCUITO COMERCIAL E AO PÚBLICO GERAL.
QUAL A SENSAÇÃO?
É uma emoção enorme. A gente fica muito feliz por vários
motivos. Porque a caminhada foi longa, foi difícil, mas, também, porque a gente
sabe que o nosso problema ainda é essa parte da cadeia. A parte da distribuição.
No drama da produção, a gente meio que conseguiu ter um fluxo de uns anos para
cá. Com todas as políticas, com a forma como a gente aprendeu a fazer. Então,
estrear comercialmente nos deixa realmente muito felizes. Também pela
trajetória do filme, porque ele vai poder chegar em vários lugares. São vinte
cidades no Brasil. A gente está muito emocionado com isso. E esperamos que as
pessoas possam assistir, possam dividir um pouco dessa história com a gente.
VOCÊ ENCERRA UM
CICLO. TERMINA A CORRERIA COM FESTIVAIS E ENTRA NO CONTATO COM O PÚBLICO GERAL.
VOCÊ TOCOU NO PONTO QUE A DISTRIBUIÇÃO FOI UM DOS PONTOS MAIS DIFÍCEIS EM TUDO
ISSO. QUAIS FORAM OS PARCEIROS DE DISTRIBUIÇÃO?
O filme está sendo distribuído pela Vitrine Filmes, através
de um projeto que eles têm chamado Sessão Vitrine Petrobras. Um projeto muito
bacana que reuniu mais ou menos vinte filmes brasileiros que tiveram destaque
no ano passado em festivais. Filmes que foram premiados. Então, eu acho que ir
de grupo, ir de galera (risos) fortalece todos os filmes. Eles são lançados um
de cada vez neste circuito de vinte cidades. Isso é muito legal.
VOCÊ ACERTA AO FUGIR DE
UM FORMATO CONVENCIONAL DE DOCUMENTÁRIOS, ALGO QUE JÁ É BEM BATIDO NO USO DE
CABEÇAS FALANTES. VOCÊ, NO ENTANTO, PREFERE ABORDAR A HISTÓRIA DO JONAS DENTRO
DA SUA ROTINA, DENTRO DA SUA REALIDADE. COMO FOI ESSE PROCESSO DE ESCOLHA?
Então, eu acho que o filme se encaixa muito bem em um gênero
que é o documentário de criação,que ainda não é tão popular aqui no Brasil. No
filme, a gente opta por trabalhar muito com o encontro. O documentário ele
acontece não porque existe um objeto, mas porque existe um objeto e um sujeito.
E em algum momento esses dois se encontraram, as histórias se cruzaram, e, por
algum tipo de gesto, de amor, de ódio, do que for, a gente decide viver uma
história juntos. Então, a partir do momento em que a gente encara o filme como
um documentário de criação, muita coisa fica para trás. Uma suposta
objetividade, uma imparcialidade, que a gente sabe que não existe. Eu estou
pessoalmente interessada em fazer filmes onde eu esteja envolvida, sabe? Onde
muito claramente há um ponto de vista. Onde muito claramente há uma
interferência. O filme trabalha isso de uma forma muito honesta. Porque esse
era o pacto com Jonas. Porque esse era o pacto com os personagens. Então, a
gente entra para viver essa aventura juntos, que a gente não sabe como vai
terminar, mas sabe o ponto de partida. Conhece os conflitos que podem surgir,
porque foi feito uma pesquisa antes. O Jonas
trabalha muito por essa linha. Eu acho sempre mais honesto, mais bacana. Acho
até filmicamente mais interessante que quando a gente vá fazer um doc, possamos
assumir a equipe. Assumir a interferência. Porque aquela história só aconteceu
naquele tempo e naquele espaço daquela forma porque estávamos filmando. Se a
gente não estivesse ali, era outra história. Então, nada mais honesto que possamos
compartilhar o processo, também.
Sim, existe uma cumplicidade muito forte. Eu conheço o Jonas
há muitos anos. Minha relação com a família
dele tem dez anos. Desde que eu
conheci a mãe dele, fiquei muito próxima.
COMO FOI QUE VOCÊ
DESCOBRIU O JONAS?
Há dez anos, a gente ia filmar um curta de ficção junto com
o meu coletivo (N.E. O coletivo Plano 3
Filmes). E o curta tinha ver a ver com o universo do circo. E todo mundo
perguntava para gente: “Ah, vocês vão fazer um curta felliniano?” E a gente
começou a descobrir que tinha uma visão do circo muito presa a Fellini. Muito
presa a um universo mais fantástico e a gente queria retratar um circo mais
real, nordestino, mais da gente. E aí entramos no carro e viajamos para
pesquisar. Íamos visitar três circos em um final de semana. Meio que procurando
locações, procurando informações. E foi tão incrível que essa viagem de três
circos em um final de semana virou três meses e trinta e cinco circos
pesquisados. Na época, eu escrevi muito. Pelo fato de eu reunir muito material,
acabei sendo convidada a assumir o Núcleo de Artes Circenses aqui da Secretaria
de Cultura. E a família de Jonas morava em um desses circos que eu visitei. Foi quando conheci a família dele,
acompanhei quando eles deixaram o circo e se estabeleceram na Região Metropolitana
de Salvador. De certa forma, eu vinha acompanhando o crescimento de Jonas. Até
que um dia ele me liga e fala: “Olha, eu tenho uma novidade. Agora eu sou dono
de circo. Tenho meu próprio circo e queria te convidar para assistir ao
espetáculo.” Aí eu fui com os meninos do
coletivo à casa dele e, nos fundos, tinha um circo armado que ele construiu com
o que sobrou desse antigo circo da família. Aquelas arquibancadas velhas, pedaços
de lona, uns figurinos. Quando eu cheguei, fiquei muito encantada e já senti
que naquele quintal ali tinha um filme. Só não sabia ainda qual era esse filme.
Isso eu só descobri depois. Mas tive imediatamente essa sensação de que havia
uma história muito legal ali.
HÁ UMA RIMA
INTERESSANTE AO OBSERVARMOS O JONAS COMO UM ARTISTA LIBERTÁRIO AO FAZERMOS UMA
COMPARAÇÃO DELE COM OS ARTISTAS ORIUNDOS DO AUDIOVISUAL BRASILEIRO E,
PRINCIPALMENTE, BAIANO. O MODO COMO ELE É REGRADO PELAS AUTORIDADES DE SUA
FAMÍLIA E ESCOLA, QUE TENTAM IMPEDI-LO DE SEGUIR SUA ARTE. VOCÊ TEM ESSA IMPRESSÃO,
TAMBÉM?
Tenho, sim. Eu tenho, sobretudo, uma identificação muito
profunda com ele. Com a sua história. E me inspira muito no sentido que ele tinha
um sonho que era o circo. Ele saiu do circo e conseguiu, sozinho, mantê-lo vivo,
ali no quintal de sua casa. E isso não tem como não me inspirar. Porque é a
mesmo no meu lugar, no cinema que eu faço. Aqui, eu também dependo, como eu
falo no filme, dos meus amigos para fazer. Também é um sonho que sempre tem
conflitos, que sempre tem obstáculos. A gente brinca aqui no coletivo que somos
todos Jonas. Porque também somos esses meninos que sentavam no fundo da sala de
aula. E que também eram cobrados dessa forma. E que até hoje, fazendo cinema em
um mundo que te diz todos os dias: “seja médico, seja advogado, faça concurso,
tenha um emprego.” Não tem como não ser Jonas e não se identificar neste
sentido dos desafios e do que você escolheu para você. Como eu estou
conseguindo manter meu sonho vivo, também, o filme, ao mesmo tempo, é um ato de
desejar que ele, Jonas, consiga também. E ele está conseguindo. E isso é muito
bom.
A CENA DO CONFLITO
COM A DIRETORA DA ESCOLA DE JONAS FAZ AQUELE SERMÃO É BEM SIMBÓLICA NESTE
SENTIDO.
Sim. O tempo todo a gente enfrentava algum conflito. Porque
como a gente estava na escola todos os dias, nós viramos os intermediários. O
Jonas aprontava muito. Então, toda vez que isso acontecia, ao invés de ligar
para a mãe dele, a diretora ligava para mim, porque eu estava ali, mais
próxima. E estes conflitos, ao invés de nos afastar, nos aproximaram muito da dela.
Porque ela estava dentro de uma lógica que eu, naquele momento, não concordava,
mas que eu conseguia entender. Porque também é muito difícil para o professor,
dentro do sistema em que ele está, ser o único individuo que enxerga, que não
quer castrar, que quer libertar. Então, também, é difícil quando você entende o
sistema inteiro. Foi uma surpresa muito gratificante. Porque a gente filmou
muito tempo. Foram dois anos. Quando terminamos, dois anos e pouco depois que
tínhamos começado, os personagens já não eram mais os mesmos. Todo mundo tinha
amadurecido. Todo mundo tinha um ponto de vista diferente. E teve um dia que
ela falou para mim que ela percebia naquele momento, naquele tempo ali, que não
só Jonas era ruim para a escola. Mas que, também, a escola era ruim para Jonas.
E isso foi maravilhoso. Porque Jonas se transformou, ela se transformou, a
gente se transformou. Foi um filme muito intenso e muito transformador para
todo mundo.
QUAL É O PRÓXIMO
PROJETO AGORA, PAULA?
A gente acabou de filmar um longa de ficção chamado Filho de Boi. É do nosso coletivo. Neste,
eu sou produtora e co-roteirista, porque a gente se alterna nas funções. E quem
dirige é o Haroldo (Borges) e o Ernesto (Molinero). Filmamos no sertão da
Bahia, um processo que foi muito modificado depois de Jonas. É um roteiro mais antigo. Mas depois filmamos Jonas, transformamos o projeto inteiro.
A gente está muito apaixonada pelo documentário e buscamos ferramentas para
deixar essa ficção com um perfil mais relacionado com documentário. Por
exemplo, optamos trabalhar com não atores. Fizemos uma pesquisa enorme para
encontrar o protagonista. Entrevistamos 1500 meninos, todos do sertão da Bahia,
todos de escola pública e moradores de áreas rurais. E trabalhamos com Fátima
Toledo (conceituada preparadora de elenco
que se destacou em filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite). Fátima
super topou o projeto. Ela veio e fez uma super preparação neste sentido. E o
mais legal é que o Jonas fez o filme. Dessa vez, como ator. E também aprendendo
uma nova função. Ele quer fazer Cinema após terminar seu último ano da escola.
Ano que vem quer fazer vestibular para Cinema. Aqui, ele quis aprender mais e trabalhou, também, como segundo assistente de câmera.
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