sábado, 2 de maio de 2020

Aeroporto Central | Papo com Karim Aïnouz


Incerto Refúgio 


Disponível nas plataformas digitais, premiado filme de Karim Aïnouz aborda com humanidade o drama de refugiados de guerra na chegada e permanência indefinida em aeroporto alemão 

Por João Paulo Barreto

Da gigantesca e impressionante estrutura arquitetônica do desativado Aeroporto de Tempelhof, em Berlin, na qual a guia turística contextualiza os visitantes da importância histórica do local e da razão de sua imponência física relacionada à expansão bélica do nazismo na Alemanha da década de 1930, passando para uma panorâmica aérea do prédio e a um corte súbito para o ambiente fechado onde é feito o cadastro de homens e mulheres, todos refugiados de guerra. O local serviu por quatro anos como local de permanência de refugiados de guerra na espera por um visto de estadia na Alemanha. O modo abrupto e pontual como as duas cenas se contrapõem logo nos minutos iniciais de Aeroporto Central, documentário de Karim Aïnouz, denota bem a condição psicológica de muitas daquelas pessoas no aguardo incerto de um visto de permanência na Alemanha.

“O Tempelhof tem uma coisa que é muito singular. É a maior edificação nazista que ficou de pé depois da guerra. Uma cicatriz mal suturada do que foi o nazismo, do que foi a escalada da arquitetura nazista. É curioso como a história é irônica. O que foi um lugar destinado a consertar aviões que iam promover a guerra e a morte, virou um lugar de abrigo de pessoas que estavam fugindo da guerra”, pontua Karim.

O cineasta cearense, residente em Berlin, nos dá a perspectiva daquela sensação de espera através de duas daquelas pessoas, dois refugiados dos horrores da guerra: o jovem estudante sírio de 18 anos, Ibrahim Al Hussein, e o fisioterapeuta e estudante de medicina iraquiano, Qutaiba Nafea. O antigo aeroporto, que antes da chegada dos refugiados à Alemanha já tinha suas pistas sendo utilizadas como parques públicos de recreação e convivência, se torna a residência dos dois e de outras centenas de pessoas oriundas de países do Oriente Médio, onde as guerras religiosas, terroristas e milicianas seguem sendo travadas. Pela narração de Ibrahim, Karim Aïnouz concede ao espectador aquele aprofundamento na vida do jovem.

 Ibrahim Al Hussein e Qutaiba Nafea: refugiados à espera de um visto

LEMBRANÇAS URGENTES

Em certo momento, Ibrahim relembra um verão que teve que passar todo em casa por conta dos conflitos que aconteciam próximos ao rio Eufrates, onde costumava ir durante a estação. Também nessas lembranças, ele referencia o fato de que, onde morava, seu vizinho mais próximo vivia a um quilometro de distância. Logo, apesar de habituado ao isolamento, não se adaptava à distância familiar, uma vez que deixara pais e sete irmãos para trás, em Alepo. Naquela permanência de 15 meses no aeroporto, enquanto sua situação de residente na Alemanha era avaliada com o governo, criou vínculos e amizades, colocando a cada dia seus planos de futuro à prova.

Convivendo no mesmo lugar, mas ao menos com sua esposa ao seu lado, o fisioterapeuta Qutaiba teve a função de tradutor lhe atribuída, tendo em sua rotina algo que lhe ocupava a mente e lhe permitia focar em algo diferente da lembrança do conflito do qual fugiu no Iraque. Obviamente, esse otimismo soa como um eufemismo, uma vez que, lidando diariamente com os relatos que precisava traduzir para as equipes alemãs, qualquer possibilidade de escape mental dentro de uma rotina de trabalho lhe era quase nula. Nas conversas do homem com um profissional de saúde presente no lugar, conhecemos sua experiência médica no Iraque e sua vontade de conseguir aplicar aqueles conhecimentos em uma possível nova vida na Alemanha.

Através do dia a dia de Ibrahim e Qutaiba, Aïnouz leva à frente sua narrativa, colocando o aeroporto, também, como um personagem do filme, uma vez que, naquele momento, o lugar representa o porto seguro para aquelas famílias que fogem dos horrores da guerra. Nessa rotina, vemos refeições sendo servidas, pessoas a caminhar pelos hangares, conversar ao celular, consultar assistentes sociais, bebês recebem vacinas e crianças são examinadas por médicos, em um modo direto de observação daqueles dias. 

Os dormitórios situados no aeroporto

IGNORÂNCIA SOBRE O OUTRO

Em certos momentos, tal modo permite ao espectador um vislumbre da imagem que o ocidente tem da cultura oriunda do mundo árabe. Um exemplo surge na época de Natal. De maneira até ingênua, mas não menos patética, vê-se uma árvore de Natal instalada na área de convivência e alguém vestido de Papai Noel a interagir. “Uma coisa da Alemanha, que é muito fascinante, é uma certa ignorância sobre o outro. Quer dizer, se você estivesse em um país que tem uma história colonial como a França, que tem uma relação muito forte com o muçulmano, eles teriam consciência de que aquelas pessoas não são católicas”, explica Karim. Porém, observando a necessidade de se pontuar a passagem do tempo, nota-se até certo significado no ato. Porém, não menos nonsense. “Tinha até uma certa inocência ali. Crianças oriundas de uma população majoritariamente muçulmana brincando com o Papai Noel. Havia algo ali que era até um pouco patético. Mas era humano, também. Porque eu não acho que em momento nenhum existia uma força colonizadora naquele ato”, salienta o cineasta.

Ao nos colocar diretamente em contato com aquelas duas pessoas tentando nutrir uma esperança por um futuro diferente do trágico passado do qual escaparam, Aeroporto Central permite uma reflexão dolorosa acerca da necessidade de se despir de preconceitos quanto ao mundo árabe. “Se você pensa no que aconteceu em Berlin, no Mercado de Natal, em 19 de dezembro 2016, ou o que houve em Cologne na noite de ano novo daquele mesmo ano, você observa uma vilanização do jovem árabe. Ele se torna o grande vilão das narrativas migratórias. Quando eu conheci Ibrahim e Qutaiba, minha intenção era poder registrar que eles representam o oposto disso”, explica Karim.

Em uma das cenas mais simbólicas, Ibrahim, que passou 15 meses no aeroporto, observa a queima de fogos do réveillon daquele ano. Em sua postura, um anseio por um futuro seu e para sua família que ficou na Síria, é palpável. “Minha vontade era de construir uma narrativa que de alguma maneira fosse o contracampo dessa narrativa fascista de demonização do imigrante, principalmente do jovem árabe”, finaliza Karim.

*Texto publicado no Jornal A Tarde, dia 03/05/2020


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