sábado, 16 de maio de 2020

Um Crime Entre Nós | Papo com a cineasta Adriana Yañez e com a diretora do Instituto Liberta, Luciana Temer


A brutal perda 
da Infância 



DOCUMENTÁRIO Com estreia amanhã no canal GNT e disponibilizado na página do Facebook do Instituto Liberta, Um Crime Entre Nós traz à sociedade um urgente foco para o combate ao abuso e à exploração sexual infantil

Por João Paulo Barreto


Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que, a cada hora, no Brasil, quatro meninas de até 13 anos são estupradas. Além disso, segundo estudo do Ministério da Saúde, a maioria das vitimas de abuso sexual tem até cinco anos de idade. Um estudo trazido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública concluiu que 82% das vitimas de estupro são do sexo feminino, sendo a maioria delas negras e jovens, e que, segundo relatório de atividades da Childhood Pela Proteção da Infância, surgem, a cada ano, 500 mil casos de exploração sexual infantil. Diante de tais fatos e estatísticas, a urgência de uma obra como Um Crime Entre Nós, que será lançada on line amanhã, e o necessário alcance da mesma para o maior número possível de pessoas, é algo prioritário. Mas para além dos números e frieza das porcentagens e estudos citados, o que o filme dirigido por Adriana Yañez traz ao seu público é humanidade. Prioritariamente humanidade, mas, também, afeto e empatia para as crianças traumatizadas e que, por consequência, se tornam adultos para sempre marcados.

Amanhã, 18 de maio, é a data escolhida como o Dia Nacional do Combate ao Abuso e Exploração Sexual Infantil. A ação requerida por tal data, porém, necessita de uma conscientização de todo o país quanto ao peso e seriedade que tal alerta deve trazer à nossa sociedade. Sociedade essa que tem no machismo e no patriarcado características que a serem modificadas em suas raízes. Sociedade essa que tem nas palavras do seu atual chefe do Executivo a normalização na ideia de gastar verba pública para (sic) “comer gente”; a normalização de alguém que afirma em plenário não estuprar uma mulher parlamentar por ela ser feia, que define os casos de feminicidio como “mimimi” e que usa um pronunciamento público para falar das características de “pegador” do próprio filho como uma qualidade a ser vendida. Sociedade machista essa que elegeu tal cidadão e que tem em sua natureza a normalização do estupro, bem como da prostituição de adolescentes e, por consequência, de crianças que são tratadas como objetos em uma troca mercantil na rotina social, e, também, dentro do turismo sexual.

Referência no acompanhamento a mulheres no sistema carcerário, dr. Dráuzio Varella 


CONTRA A OBJETIFICAÇÃO

Parte fundamental de sua ação conscientizadora, o Instituto Liberta foi um dos produtores do documentário dirigido por Adriana Yañez. A diretora-presidente do instituto, a professora de Direito Constitucional, Luciana Temer, aponta as diretrizes do Liberta nas ações de conscientização. “Com o documentário, queremos sensibilizar as pessoas sobre esse assunto. A missão do Instituto Liberta é fazer o Brasil falar sobre isso. Buscamos criar uma empatia nas pessoas para com essa situação. Entender a dimensão do problema, que é gravíssimo. A violência sexual não é uma exceção. É uma regra no cotidiano do nosso país. Temos que apontar o que acreditamos ser um caminho, que é o da educação. É por onde caminha o filme. O caminho das boas práticas, que está em levar esses processos de discussão para as escolas, que é o que pode salvar nossa sociedade no final das contas”, afirma Luciana.

“A educação é uma chave fundamental para o combate à violência sexual infantil”, explica a diretora do documentário, Adriana Yañez, que traz, em pontual momento do filme, uma abordagem pedagógica em sala de aula. “A escola se mostrou, em todas as pesquisas, o principal espaço de denúncia e encaminhamento desses casos. Falar de sexualidade com crianças é dar ferramentas de autoproteção para que elas conheçam o próprio corpo; os limites que devem colocar para as outras pessoas; o que não devem aceitar e como pedir ajuda caso sentindo algo errado. A falta de informação e de atenção ao comportamento das crianças faz com que muitas delas sejam violentadas durante muitos anos sem que nenhum outro adulto saiba”, alerta.

A cineasta Adriana Yañez

A professora Luciana pontua, ainda, a urgência em se priorizar a infância. De não sensualizar crianças e adolescentes, algo que leva a uma consequente objetificação da mulher. “Crianças e adolescentes têm que ter direito ao desenvolvimento integral. Inclusive, o sexual. O desenvolvimento sexual tem que ser saudável e sadio. Essa sexualização precoce não tem, aqui, nenhuma conotação moral. Ninguém aqui está falando de moralismo”, explica a professora ao alertar para o risco de uma sociedade calcada no machismo e patriarcal. “A questão é a naturalização, e isso tem menos a ver com a questão da sexualização, e muito mais com o machismo. É a objetificação do corpo da mulher, que independe da idade que ela tem. Essa conotação de que a mulher é um objeto a servir ao homem. Isso é uma mentalidade muito machista e que está enraizada na nossa sociedade. Esse contexto machista, e que tem a ver com feminicidio, reflete o modo como a mulher é vista na sociedade. E a criança já é vista dessa forma, sexualizada, como propriedade do homem. Isso é algo que vai se construindo ao longo de todas as idades. Desde a menina até a adolescente, a jovem e a mulher”, finaliza.

A diretora do Instituto Liberta, a professora Luciana Temer


HUMANIZAÇÃO E EDUCAÇÃO

Como observado, a urgência em se encarar e resolver o problema do abuso e da exploração sexual vai além das estatísticas e números trazidos. É preciso que a sociedade se incomode com isso. Enxergue a situação tal qual o absurdo que ela representa. No processo de entrevistas e leitura dos casos de abusos e explorações sofridas, o filme de Adriana Yañez nos traz uma angústia necessária. No uso das animações para ilustrar as vidas trágicas daquelas pessoas, bem como na força da leitura de depoimentos, algo além da reflexão é alcançado. O filme lhe traz um ímpeto de mudança. De ajudar naquela causa. E isso denota muito da missão alcançada pelo longa nessa conscientização. “As entrevistas com as pessoas da rede de proteção oferecem um panorama muito profundo da questão e olhares muito sensíveis às histórias das vítimas. Mas acredito que as histórias individuais, as experiências vividas com todas as suas particularidades, nos fazem nos aproximar de qualquer tema de uma outra maneira. É como melhor podemos compreender a dor, o alívio, o medo, o desamparo. Conecta com a nossa humanidade,” explica a cineasta acerca do aspecto de captação dos depoimentos para o filme.

Ao final, Um Crime Entre Nós nos deixa em uma posição de urgência, de nos fazer refletir e agir naquela mudança. Além de fazer valer a lei, que pune crimes de abuso e exploração sexual, a mudança também deve vir da sociedade como ser consciente e humano. Mudar a sociedade a partir da preservação das crianças. E isso somente a educação, distante de qualquer dogma religioso ou moralista, consegue. A diretora Adriana Yañez finaliza: “Outro ponto elementar é o papel da educação na transformação do pensamento machista, racista e misógino que rege nossa cultura. Desde muito cedo, é preciso que as relações de gênero, a história, a cidadania e o respeito sejam trabalhados com as crianças, despertando questionamentos e consciência para pensar e fazer diferente. São conteúdos tão importantes quanto português e matemática, sem os quais não será possível transformar as desigualdades e violências estruturais”.

Este é o norte a ser seguido.


*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 17/05/2020




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