sexta-feira, 8 de maio de 2020

Antologia da Crítica Pernambucana – Discursos sobre cinema na imprensa (1924 – 1948)

Pilares do Pensamento Crítico Nordestino



LIVRO Com importante reunião de textos da primeira metade do século XX, escritos de cinema que corriam risco de se perder ganham longevidade merecedora e valiosa à prolífica cena de Pernambuco 

Por João Paulo Barreto

Dentro de uma atual realidade de apagamento proposital e canalha da História do século XX no Brasil, a urgência em se registrar movimentos como o da crítica de cinematográfica no prolífico estado de Pernambuco, a partir dos anos 1920, demonstra-se, através da leitura do livro Antologia da Crítica Pernambucana – Discursos sobre cinema na imprensa (1924 – 1948), como uma ação crucial e enérgica de salvamento da memória de um país que se perde na fugacidade e futilidade de uma era de aparências digitais. Organizado pela realizadora e pesquisadora, Gabi Saegesser, e pelo também pesquisador e crítico de cinema, André Dib, o material tem como esmero fundamental a reunião de escritos que se encontravam dispersos, perdidos em arquivos de jornais e revistas que se esfarelavam e em microfilmagens de difícil acesso ao público interessado.

O livro passa por quatro períodos centrais na história dos discursos sobre cinema na imprensa tanto de Pernambuco quanto na do sudeste, cujas revistas Cinearte e A Scena Muda, bem como o jornal O Fã, trouxeram diversas publicações de autores oriundos de Recife, como Mário Mendonça, Evaldo Coutinho e Josué de Castro, nomes de grande importância para o pensamento crítico no nordeste. Iniciando pelo Ciclo de Recife, período que abrangeu 1923 a 1931, quando diversas produções ficcionais foram lançadas no estado, o livro adentra na chegada do cinema sonoro em Recife, com as diversas correntes pró e contra a inovação que tomaram conta dos escritos na imprensa. Após esse fato, vem a repercussão do lançamento do filme Coelho sai,em 1942, primeiro longa sonoro realizado no nordeste. Em seguida, aborda-se a histórica passagem de Orson Welles por Pernambuco, ocasião em que o diretor de Cidadão Kane captou imagens para o documentário It´s All True (1943), fato que alimentou muito do imaginário cinematográfico no estado. Encerrando com o surgimento dos primeiros cineclubes no estado, o livro traz registros na imprensa de Pernambuco para os principais acontecimentos cinematográficos durante a primeira metade do século XX.

Co-organizador do livro, o pesquisador e crítico de cinema, André Dib

Co-organizador, o crítico André Dib salienta a importância do registro de toda uma época que a obra traz. “Elegemos estes momentos principais, divididos em quatro capítulos no livro, para que possam mostrar como se pensava também a produção do cinema no Recife e a produção do cinema no mundo”, explica. Na questão crucial da preservação, Dib pontua ainda que “o esforço, quando foi definido esse recorte, ficou claro de que a ideia inicial ainda estava presente: preservar as formas de pensar cinema daqueles períodos. Se a gente não reúne o que estava disperso, talvez não ficasse tão claro como um patrimônio, mesmo. Um patrimônio que é o pensamento sobre cinema”, esclarece.

RECIFE E SUDESTE

Dentro dos quatro capítulos trazidos pelo livro, os aspectos da trajetória da crítica de cinema, que começou a ser produzida em Pernambuco a partir dos anos 1920, permitem ao leitor uma percepção da construção dos modos de observação da arte cinematográfica pela imprensa que se familiarizava com aquele tipo de expressão artística surgida em 1895. Inicialmente, como bem salientam os organizadores, os textos têm um perfil mais informativo acerca das produções. Após um período, surge o que é definido como textos reflexivos em um perfil “laudatório e ufanista”. As publicações de textos sobre os filmes do Ciclo do Recife, no decorrer daquela década, são destaques em impressos do sudeste, como os citados Cinearte e A Scena Muda. 

Co-organizadora, a pesquisadora e realizadora, Gabi Saegesser Foto: Hans Santos

“A Cinearte, no Rio de Janeiro, pertencia ao Adhemar Gonzaga, que tinha uma produtora, era exibidor e estava envolvido em diversas áreas da atividade cinematográfica. Ela publicava muitos escritos do Mário Mendonça sobre o Ciclo do Recife. Adhemar, com toda essa atuação na área, tinha um desejo genuíno de que o cinema nacional fosse forte. Que fosse uma indústria. Ele tinha essa visão de empresário, visionário, de amante do cinema brasileiro”, contextualiza Dib.

KANE EM RECIFE

A visita do diretor Orson Welles a Recife e Olinda, em 1942, é um daqueles acontecimentos que, quase 80 anos depois, ainda alimenta o imaginário de muita gente, cinéfilos ou não. De passagem pela capital pernambucana na vagem de ida e volta do Rio para Fortaleza, o cineasta pôde se aproximar da cultura nordestina, tendo contato com jangadeiros, conhecendo o frevo e dando a opinião definitiva sobre a questão do cinema falado vs. mudo.

“Ele deu muitas entrevistas. E apesar de nada disso ter gerado textos críticos, incluímos na coletânea por conta dessa força do imaginário cinematográfico que representa essa presença de Orson Welles no Recife. Ele declarou vontade de dirigir um filme de cangaceiro e com ele no papel de Lampião. Ele assistiu a um espetáculo de frevo. Antes de ver, comentou que o frevo parecia uma tarantela. Uma coisa meio ofensiva para os pernambucanos. Não se sabe o que ele achou do espetáculo. Mas há textos na coletânea dizendo que a especulação é que ele teria mudado de opinião”, explica Dib. Sobre a questão do cinema mudo vs falado, o comentário de Welles “That’s a lero lero” ficou imortalizada. “O que importa é a liberdade do artista. E esse That´s a lero lero virou o título do filme do Lirio Ferreira e Amin Stepple”, relembra. 

Orson Welles, em 1942, desembarca no Recife
  
PRIMEIRO FILME SONORO

Um dos importantes pontos do livro, algo que salienta justamente essa necessidade do resgate de publicações, é o fato de que, perdida em um incêndio, a única cópia de Coelho sai, primeiro filme sonoro produzido no nordeste, só pode ter suas imagens acessadas através do registro da imprensa da época, que trouxe a produção, também, em uma versão filme-revista. “Hoje, só é possível conhecer o filme pelos textos que o descreveram e pelos anúncios, fotos de bastidores. A Scena Muda publicou fotos e textos sobre Coelho Sai. É curioso que é, também, uma adaptação musical. Coelho sai é um frevo de Nelson Ferreira, e virou essa revista, o filme-revista de atrações musicais e de performances. Envolveu toda a classe artística da época”, explica André Dib, que lamenta a perda trazendo um alerta: “É realmente uma pena que o filme se perdeu. Mas aí a gente vê a importância do registro da imprensa, e também dessa preservação desses registros. Porque, da mesma forma que se perdeu o filme, esses jornais também estão indo embora. Eles estão se esfarelando nos arquivos”, finaliza.

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 09/05/2020


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