terça-feira, 19 de junho de 2018

Fevereiros

Menina dos Olhos de Oyá


Exibido na Mostra de Cinema de Outro Preto e vencedor do Festival InEdit Brasil, documentário Fevereiros aborda com esmero a religiosidade e musicalidade de Maria Bethânia

Por João Paulo Barreto

Com projeção ao ar livre na bela Praça Tiradentes, durante a 13ª edição da CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, Fevereiros, documentário que aborda a história do clã Veloso, mais especificamente de Maria Bethânia, sua religiosidade e sincretismo, bem como a paixão mútua da cantora pela escola de samba Mangueira,  gerou comoção e emocionou o público presente no último domingo. Dirigido por Marcio Debellian, que também assina o roteiro ao lado de Diana Vasconcellos, o filme capta de modo preciso a relação da interprete com seus pilares tanto de fé quanto musicais e culturais.

Como o próprio nome já diz, o filme tem no carnaval e os festejos do mês em questão um mote central e ponto de partida em seu desenvolvimento. Mas, mais do que apenas abordar a dedicação da Mangueira e a conquista do título no desfile de 2016, Fevereiros aposta (e ganha) no esmiuçar da proposta da escola de samba no estudo da relação de Bethânia com suas influências dentro do catolicismo, do candomblé e do, como já dito, sincretismo que une as duas religiões.  Assim, é através dos depoimentos da imortalizada como “Menina dos Olhos de Oyá”, que adentramos nas raízes da cantora. Em sua dedicação a manter tradições, logo de inicio a ouvimos dizer que fevereiro é um mês que ela sempre busca passar em Santo Amaro, sua cidade natal, que, durante o período, realiza a secular festa em louvor a Nossa Senhora da Purificação. Entre sorrisos, Bethânia explica que muitos dos itens de vestuário que ela ganha ou compra durante o ano, ela reserva para usar em fevereiro, em sua estadia na cidade natal. E que isso é algo prioritário para ela, chegando a mudar compromissos profissionais e que, inclusive, nunca esteve na lavagem do Bomfim ou na festa do Rio Vermelho para Iemanjá por conta do choque nas datas dos rituais na cidade do recôncavo. O corte para a imagem de Bethânia, aos 70 anos, a correr pelas ruas de Santo Amaro denota essa importância de modo único. Em uma dedicação singular, a paixão da cantora se torna algo 
palpável para o espectador.

Caetano relembra os momentos da infância com a irmã


CAETANO É DEUS

Neste ponto, percebe-se a escolha da montadora Diana Vasconcellos em usar no filme três abordagens, que acabam por se misturar de modo fluído, sendo também perceptível o equilíbrio e ritmo alcançado no resultado. A primeira refere-se à influência da religião católica na sua vida como um todo, mas mais precisamente na juventude de Bethânia. Sua aproximação da novena de Santo Amaro, que tinha a matriarca Dona Canô como uma das principais organizadoras; a primeira comunhão sua e de seu irmão Caetano, cujo depoimento causa risos pelo receio do músico ao saber que “consumiria o corpo de Cristo” e, mais impactante ainda, a fala de Bethânia a explicar que tinha medo da dita onipresença de Deus, tão propagada pelos mais velhos em tom de ameaça e que, por isso, buscou conforto na figura feminina de Nossa Senhora. Tudo isso embalado pelo riso ao contar que a criança Caetano a acalmou dizendo que não precisava ter medo, pois ele era Deus.

Neste encaminhamento, Fevereiros segue em sua narrativa abordando a aproximação de Bethânia para a religião de matriz africana, que começara ainda na infância, quando uma irmã de criação teve experiências de incorporação espiritual na sua presença e de Caetano. Com inserções de imagens de arquivo, o longa ilustra bem essa relação, com ela ainda jovem a explicar a Chico Buarque a influência em sua vida (em um diálogo que prima pelo surreal), a importância de Mãe Menininha do Gantois, sua guia espiritual, e a tradição em Santo Amaro na presença da fala de Pai Poti e Pai Gilson, dois representantes da religião na cidade. Aqui, é quando o filme alcança o sincretismo em sua abordagem, que, mesmo presente desde o começo da projeção, se confirma na mensagem central da obra acerca da tolerância e do respeito pelas diversas crenças e credos existentes no Brasil. E, ainda, trazendo questões vinculadas com o ateísmo de Caetano, Chico e Jorge Amado em paralelo à admiração que têm pela religião candomblecista, a obra aborda um respeito até ao direito de não crença. Caetano, inclusive, explica a influência da letra clássica de Milagres do Povo como oriunda de uma fala de Jorge, algo que coroa o filme como uma revelação. O diretor Marcio Debellian explica que “Milagres do Povo é uma canção fundamental para o filme, pois ela acaba fazendo parte do roteiro. Nem a Bethânia sabia dessa história de que foi o Jorge Amado que influenciou o Caetano a escrever aquilo”, afirma

Chico e Bethânia em dueto mágico

PESQUISA MUSICAL

Sendo um documentário genuinamente musical, a pesquisa de canções representou uma parte crucial do trabalho. Desde o hino, Reconvexo, clássico de Caetano gravado por Bethânia, a abrir o filme como um anúncio da baianidade presente na tela, passando pelo samba de roda de Santo Amaro, que é algo que a própria Bethânia traz para a narrativa, até o marco inicial É de Manhã, primeira composição de Caetano a ser gravada por sua irmã no compacto que trazia Carcará no seu lado A, o longa é permeado por momentos símbolos dentro da história da musica popular. “Havia canções que eu já planejava colocar, coisas que eu amo da discografia da Bethânia. Mas houve outras que o filme pedia. Ao abordar a relação dela com Mãe Menininha, eu precisava colocar um Ijexá de Oxum, por exemplo”, explica o diretor. E não somente canções de Caetano se fizeram presentes, como o momento em que um dueto entre ela e Chico enche a tela ou quando a música de Gerônimo, Salve as Folhas, é utilizada. “Nesse caso, essa é uma louvação aos orixás. E como era um momento em que o filme falava da lavagem de Santo Amaro, a música de Gerônimo casou muito bem”, conclui.

TOLERÂNCIA RELIGIOSA URGENTE

Ao final, a mensagem de Fevereiros rima muito bem com a do próprio enredo da Mangueira, no carnaval de 2016, quando surgiu o esboço inicial do longa. No entanto, o que mais chama atenção é o modo como o tema, em pouco mais de dois anos e meio, se tornou tão urgente para o diretor Márcio Debellian e para o espectador. “Hoje, no Rio, temos um prefeito evangélico que impõe restrições ao carnaval e emite opiniões terríveis sobre as religiões de matriz africana. Casos de intolerância religiosa acontecendo novamente, samba sendo chamado de coisa de bandido”, contextualiza.  O documentário leva a uma conclusão ilustrada muito bem no exemplo dos Veloso, onde Caetano tem uma postura atéia, sua irmã, Mabel, católica e Bethânia, além de católica, é filha de Iansã, representando bem sua personalidade e sincretismo. “O papel do meu filme é levar uma reflexão, e não um juízo de valor. O mais importante é respeitar todas as religiões e conviver bem entre si. Ver as belezas que todas elas têm”, afirma o cineasta. Intento alcançado.

*Texto publicado originalmente no jornal A Tarde, dia 19/06/2018



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